Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A leitura é ainda possível?

Acabo de publicar uma coletânea de ensaios, Ler por dentro, em cujas páginas desenvolvo duas linhas de reflexão: a literatura e o problema da leitura na época da mídia e da informática. Informo, desde já, que não defendo a leitura como lazer hegemônico. Isso ela foi no século 19, pelo menos para o grande público, que não dispunha de tempo e dinheiro para frequentar óperas, teatros, salões e outros divertimentos.

Naquela época, a leitura preenchia o tempo que sobrava (quando sobrava!) do trabalho. Com a invenção da iluminação a gás e, décadas após, da lâmpada incandescente, as noites encompridaram-se e as insônias também se multiplicaram. O fato é que, no tempo dos folhetins, publicados nos jornais diários ou semanais – refiro-me aos folhetins de Balzac ou Machado de Assis –, as pessoas dedicavam enorme tempo à leitura, que se converteu numa sorveteria pessoal, num café (foi a época em que os cafés começaram a enxamear nas cidades) a domicílio. É óbvio que, naquela época, também se lia por desfastio, para enxotar o tédio, como ocorre hoje, quando os leitores mergulham nos best-sellers quase como se mergulhassem numa piscina num dia tórrido. Afinal, que se busca em tais volumes de consumo? Suponho que se espere deles o que, em outros momentos de irritação e mal-estar, esperamos de um comprimido de paracetemol, ou de um papo descontraído no bar: alívio e entretenimento.

Após as mudanças de ritmo na leitura, no século 19, seguidas pelo monopólio das imagens em desfavor das letras, a leitura tornou-se ‘chata’. Chata? É lógico que os jovens entendem por isso a assimilação lenta e meditativa, que não se coaduna totalmente com cachorros quentes e coca-colas devorados às pressas. A leitura exige um certo distanciamento, aquilo a que os teóricos da Estética chamam ‘distância psíquica’.

Os neurônios preferem fontes que borbulham

Eis por que a leitura teve de suportar, com suas duas outras irmãs, a música clássica e a contemplação dos objetos visuais, em especial a escultura e a arquitetura, um verdadeiro exílio. Pergunto: que atitude tomar perante tal fenômeno? Ficaremos a chorar o leite derramado? Replico: deixemos de lado tal atitude derrotista! É preciso propor aos jovens um novo tipo de leitura. Persuadi-los de que a leitura, apesar das incríveis modificações pelas quais passou nossa psicologia pós-internet, ainda vale a pena.

Começo por dizer que a leitura é, primeiramente, um espaço de liberdade.

Quando lemos – sem pressa, ou com a pressa que o autor impõe, de acordo com a observação de Blaise Pascal –, exercemos a nossa liberdade. Somos obrigados a posicionar-nos perante o autor. O autor expõe algo ao leitor. Este, durante algum tempo, escuta o que é proposto. Depois, tem plena liberdade de discutir, de interpelar, de contestar. Mas é preciso notar que, na balbúrdia em que vivemos, poucos ouvem. É lógico que a leitura se torne um monólogo.

Em segundo lugar, a leitura, mais do que a televisão e outras formas de diversão assemelhadas, é um exercício neuronal. Os neurocientistas sabem disso. Nossos neurônios não se harmonizam nem com a falsa paz das cisternas nem com os redemoinhos de nossa frenética mobilidade. Preferem as fontes que borbulham, os rios que correm – os mesmos de Heráclito, que não passam duas vezes debaixo das mesmas pontes.

Em favor da leitura: o prazer!

Em terceiro lugar, a leitura é uma criação pessoal. Em vez de recebermos imagens pré-formadas, reformadas ou deformadas, somos obrigados a produzir nossas imagens, a produzir imagens originais, tiradas de nosso próprio fundo de garantia, de nossa imaginação-moinho que, desde a mais recuada infância, é coagida a moer sua própria farinha, a fazer o seu próprio pão. André Leroi-Gourhan, paleontólogo e historiador da Arte Pré-Histórica, sustentava que a imaginação das pessoas do século 20 não era maior do que a das costureiras de Paris no século 19! Tenho a impressão de que ele exagerou, mas não excessivamente.

A maioria de nossos contemporâneos vive de ‘descarregamentos’ da internet, de pilhagens sistemáticas e até de clichês saqueados de todos os armazéns digitais do planeta.

Poderia apresentar outras razões em favor da leitura. Prefiro concluir com uma razão irresistível, a melhor delas: o prazer! Meu Deus, se a humanidade deixasse de ler, o mundo tornar-se-ia muito tedioso! As pessoas iriam recorrer a soníferos para alargarem as noites… Até o sexo iria sofrer as consequências disso. O sexo, sem algumas pitadas de especiarias de legítimo amor cortês, poderia cansar. Pior do que isso: poderia não funcionar, nem com o arranque turbinado do Viagra e de outros estimuladores da função erétil.

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Poeta, professor e crítico de arte, autor de Como Apreciar a Arte (1990), A Poesia, Uma Iniciação à Leitura Poética (2000) e O Rosto de Cristo (2003), entre outros