Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A origem do gaúcho do pampa

[do release da editora]

O jornalista gaúcho Delmar Marques, atualmente radicado em São Paulo, lançou em Porto Alegre o livro Os minuanos – O resgate das índias sagradas. Depois de montar um documentário que produziu sobre a tribo, vai preparar o lançamento do livro no Rio e em São Paulo. Com esse duplo projeto, Delmar espera dar fim ao processo de ‘esquecimento’ articulado em torno dessa comunidade indígena que as sofisticadas pesquisas sobre o genoma do gaúcho apontam como fundamental na formação das famílias do pampa. Se cerca de 50% do DNA de ramos ilustres do povo rio-grandense são dessa etnia que ocupava a região do extremo-sul do estado, em torno da Lagoa Mirim, sua contribuição, segundo o autor, vai muito além da carga genética: ‘A tribo matricial e xamânica, comandada por um conselho de ‘viejas brujas’ deixou um legado extraordinário em seus ensinamentos baseados nos princípios do feminino.’

Para seu documentário, Marques recolheu muito material sobre o papel das índias minuanas na filosofia de vida dos gaúchos do pampa. Em seu retorno a Santa Vitória do Palmar e Chuí, contudo, constatou que persiste a depredação dos cerritos, sítios arqueológicos onde foram encontradas ossadas, pontas de flechas, cerâmicas e outros vestígios da passagem pelo Rio Grande do Sul da tribo minuana, extinta em meados de 1832. ‘Importantes áreas de pesquisas estão sendo destruídas pelas lavouras de arroz e mesmo pelo gado’, diz.

Marques informa que seu romance, embora inteiramente ficcional, tem por base dados das pesquisas que desenvolveu no Brasil, no Uruguai, em Portugal e na Espanha, durante mais de 30 anos. ‘Fiz as primeiras matérias sobre as descobertas dos cerritos por uma equipe de arqueólogos do Instituto Anchietano de Pesquisas, da Unisinos, como Pedro Ignácio Schmitz e Ítala Becker, e a partir das informações deles continuei a levantar dados’, conta. ‘Afinal, eles sugeriam que minha ascendência paterna, a família Corrêa, de Santa Vitória do Palmar, era de origem minuana.’

A estrutura matricial dos minuanos, que nunca foi uma tribo muito grande – não se contaram mais de 600 pessoas em acampamentos em que se misturavam com seus co-irmãos charruas –, indicava a prevalência de princípios que ainda permanecem na índole dos gaúchos, sustenta Marques. A influência dos colonizadores sempre procurou apagá-los, assim como exterminou deliberadamente a tribo em sucessivos massacres. ‘Fiz um esforço literário para recriar o ambiente em que se deu o primeiro contato dos minuanos com os conquistadores, a partir de 1530, com ênfase nos princípios que regem uma civilização matricial, ou seja, em que os valores femininos sejam preponderantes’.

No matriciado, diz Marques, imperam os valores da mãe, para quem todos os filhos são igualmente amados, sejam primogênitos ou caçulas, homens ou mulheres. ‘A paz, a harmonia, a competição construtiva são alguns desses valores.’ O livro, aprovado pela Comissão Nacional de Incentivo à Cultura do Ministério da Cultura, deverá ser o primeiro de uma trilogia que esgote todo o farto material recolhido nas pesquisas. A obra tem o patrocínio, pela Lei Rouanet, do BRDE (Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul) e do Banco Daycoval, além de apoio da GM do Brasil.

Delmar Marques trabalhou nos jornais Zero Hora – pelo qual ganhou o Prêmio Esso em 1975 –, O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo, Gazeta Mercantil e revistas Veja e IstoÉ. Também é autor de Ascensão e queda dos coronéis, sobre os crimes financeiros dos militares, e Os novos Farrapos.



Prefácio / O mundo perdido

Nei Duclós (*)

De mãos dadas, sonho e memória buscam o que História deveria revelar. O segredo está no sangue e no coração, instrumentos desta literatura que não faz distinção entre pesquisa e aventura, entre descoberta e catarse, entre biografia pessoal e perfil da raça. Delmar Marques segue a pista do vocabulário cevado em família para chegar à raiz do esquecimento e de lá retirar a luz que, contrariada, continuava oculta.

Agora que a ciência descobre o óbvio – que a herança genética dos minuanos e charruas continua viva nos povos da fronteira –, é hora de seguir o passo do autor na recomposição de uma realidade que pulsa nas pedras, nos rios, no pampa e nos cerros. Ele precisou abrir mão da sua contingência de tempo e espaço para reconquistar o mundo destruído parcialmente pela barbárie civilizada. Reencontra assim, intacto, o tesouro cifrado que lhe foi entregue quando criança e que sua coragem decidiu revisitar.

Seu livro mostra que essa passagem não é feita sem dor. As feridas físicas respondem pelo esforço do espírito na busca do que nos é negado. O diferencial em Delmar é que ele não se acostuma com o silêncio, não aceita o resultado da guerra, não se adapta às imposições de uma ordem injusta. Seu heroísmo vem da teimosa fragilidade diante da surra compacta do inimigo. Correndo o risco de assumir a vestimenta que tentaram lhe impor, ele faz do seu deslocamento pessoal o insumo de uma revelação.

Para isso, não se desfigura: não pensem em encontrar nele a falsa humanidade de quem se expõe só para chamar a atenção, a abertura fajuta da pseudo modernidade. Ele continua o garoto da estância que não abre mão das suas raízes. Mas expõe essa personalidade para apresentar o homem construído por uma vivência de luta, onde a trajetória individual está cruzada com o andamento de um país grande demais para ser compreendido pelos sinais expostos na superfície.

Decidido, Delmar consegue fazer a literatura que o País precisa. Uma arte que reiventa o passado, que desvela o quadro insosso das certezas datadas, que reencontra a emoção do andar, que não refuga a briga e que por isso mesmo bate-se pela paz.

Ninguém sairá imune da leitura deste livro, que não pede nem dá quartel para quem quer que seja. O mundo perdido que Delmar Marques revela é a presença em carne e osso de um fantasma escondido no mato. Dele sai sangue, mas a dor é apenas um detalhe. O importante é passar por esta experiência que nos assalta como se um avô armado estivesse há séculos nos preparando uma tocaia.

(*) Historiador, jornalista, escritor e poeta gaúcho



Romance transdisciplinar

Pedro Ignacio Schmitz (*)

Os Minuanos é uma enorme surpresa. Um trabalho acadêmico, disciplinarmente enquadrado, seco e sem vida, reunião de velhos textos dispersos, se transformou num fantástico romance, quando uma cabeça transdisciplinar deu forma e vida àqueles ossos ressequidos.

Na hora lembrei do profeta Ezequiel 37, 1-11, onde fala da restauração do povo de Israel destruído pelos Caldeus e arrastado para a Mesopotâmia.

‘A mão do Senhor veio sobre mim e me tirou para fora em espírito do Senhor, e deixou-me no meio de um campo que estava cheio de ossos, e fez-me dar uma volta em roda deles; eram muito numerosos, estendidos sobre a superfície do campo e todos extremamente secos. Então disse-me: Filho do homem, porventura julgas que estes ossos possam reviver? Eu respondi-lhe: Senhor Deus, tu sabes. Ele me disse: Profetiza acerca destes ossos e dir-lhes-ás: Ossos secos, ouvi a palavra do Senhor. Isto diz o Senhor Deus a estes ossos: Eis que vou infundir em vós o espírito e vós vivereis. Porei sobre vós nervos, farei crescer carnes sobre vós, sobre vós estenderei pele, dar-vos-ei espírito e vós vivereis, e sabereis que eu sou o Senhor.

Eu, pois, profetizei como o Senhor me tinha mandado, e, enquanto eu profetizava, ouviu-se um ruído, depois fez-se um reboliço; os ossos aproximaram-se uns dos outros, pondo-se cada um na sua juntura. Olhei e eis que se formaram sobre eles nervos e carnes para os revestir e a pele se estendeu por cima; mas eles não tinham espírito. Então disse-me o Senhor: Profetiza ao espírito; profetiza, filho do homem, e dize ao espírito: Isto diz o Senhor Deus: Espírito, vem dos quatro ventos, sopra sobre estes mortos, e revivam. Profetizei, pois, como o Senhor me tinha ordenado; o espírito entrou neles, e viveram; levantaram-se sobre seus pés; era um exército numeroso em extremo.

Disse-me o Senhor: Filho do homem, todos estes ossos são da casa de Israel.’

Todos esses ossos são o povo Minuano.

Cada arqueólogo brasileiro sonha que um dia apareça um escritor que dê vida a seus dados e os faça compreensíveis e excitantes para o povo, a quem se destinam.

Os próprios arqueólogos não sabem onde mora o velho Miguel com seu pozinho que faz sonhar.

Delmar não poderia ter-me proporcionado maior satisfação.

(*) Diretor do Instituto Anchietano de Pesquisas da Universidade do Rio dos Sinos (Unisinos), São Leopoldo, RS