Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A palavra como aspecto da realidade regida pela publicidade

Hoje, com o crescimento vertiginoso da internet, existe grande preocupação
com o seu controle, tornando-se não só instrumento de democratização da
informação, mas eficiente meio de domínio da opinião pública.


Esta discussão do controle da informação é antiga e logo depois da Segunda
Guerra Mundial refletia-se na literatura e no cinema com obras como o
romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, lançado em 1953 e adaptado
magnificamente para o cinema em 1966, sob a direção de François Truffaut. Esta
época também ficou marcada pelo romance 1984, escrito por George Orwell em
1949. Nestas obras, a cultura era perseguida implacavelmente, realidades
imaginárias tornavam-se verdades e tudo era controlado por meios eletrônicos. Em
certo sentido, a nossa televisão exerce um enorme controle sobre a opinião
pública, favorecendo versões de interesse dos seus patrocinadores, sejam marcas
comerciais ou forças políticas que dominam a sociedade de uma maneira não
democrática.


O segmento cultural mais vulnerável


Com o avanço da internet, as coisas podem piorar, já que assistimos entre as
novas gerações a um acentuado declínio dos hábitos de leitura de documentos
impressos – sejam livros, revistas ou jornais –, ficando fortemente dependentes
das informações que chegam às suas mãos, muitas vezes de uma forma passiva, pela
internet. Com o desprestígio das obras escritas e com a ausência de reflexões
mais profundas, o domínio dos patrocinadores tende a ser absoluto, ditando a
moda, dizendo o que comer, favorecendo preconceitos, elegendo políticos e assim
por diante, já que tudo terá maior credibilidade sob o manto de alguma grande
empresa telefônica que promova espetáculos com superstars do que na
palavra de um pensador independente e pouco conhecido que usa como arma apenas o
apelo para a reflexão.


Isto pode ser visto com o abandono criminoso da nossa cultura, dos museus,
centros culturais, bibliotecas, universidades e total ausência de políticas
sérias de educação e promoção social. Essa situação de terra arrasada na área
cultural – uma das tristes marcas dos governos populistas de hoje, que acabam se
aliando às elites mais atrasadas do país em sua busca, sem pudor ético, pelo
poder e controle de opinião – pode agravar estes processos.


Essa pobreza cultural ainda é agravada pela campanha midiática que
transformou, por exemplo, o que deveria ser uma feira literária em Paraty, em um
grande programa de auditório, onde o mais importante eram os ternos de famoso
jornalista americano, desavenças conjugais entre escritores ou o assédio por
admiradoras de um famoso compositor-cantor eleito pela crítica dita ‘séria’ como
o maior escritor deste início de século.


Neste sentido, vamos falar um pouco das preocupações que a literatura, o
segmento cultural mais vulnerável a um possível controle de opinião, tem desta
problemática.


Uma biblioteca infinita


Para isto, convido-os a ler, ou reler, o conto Biblioteca de Babel de
Jorge Luis Borges, escrito em 1941 (publicado em Ficções, Companhia das
Letras, 2007), e o ensaio ‘Uma Carta para Borges’, escrito em 1996 por Susan
Sontag (publicado em Questão de Ênfase, Companhia das Letras, 2005).


Borges usa a imagem de uma biblioteca como uma metáfora do universo, da
humanidade e de sua criação. Após dez anos da morte de Borges, Susan Sontag fez
uma grande homenagem à sua genialidade com este ensaio, em forma de uma carta
pessoal, onde deixa transparecer as suas preocupações com os livros, a cultura e
a liberdade de expressão. Abaixo transcrevo algumas das palavras desta escritora
que conseguem falar muito mais do que os meus comentários.




‘… Se os livros desaparecerem, a história desaparecerá, e os seres humanos
também. Tenho certeza de que você tem razão. Livros não são apenas a suma
arbitrária de nossos sonhos e de nossa memória… Eles nos dão também o modelo
da autotranscendência…


… Lamento ter de dizer a você que os livros, hoje, são tidos como uma
espécie ameaçada…


… Em breve, nos dizem, invocaremos em `telas-livro´ quaisquer `textos´ que
quisermos e poderemos alterar seu aspecto, fazer perguntas a eles, `interagir´.
Quando os livros se tornarem `textos´ com os que `interagiremos´ segundo o
critério da utilidade, a palavra escrita terá se transformado simplesmente em
mais um aspecto da nossa realidade televisual regida pela publicidade. Esse é o
glorioso futuro que está sendo criado e prometido para nós, como algo mais
`democrático´. É claro, isso significa nada menos que a morte da interioridade –
e do livro.


… Mas, esteja certo, alguns de nós não abandonaremos a Grande Biblioteca. E
você continuará a ser o nosso patrono e o nosso herói.’


Há cinco anos, Susan Sontag partiu de nosso mundo para juntar-se a Borges na
‘Grande Biblioteca Celeste’, deixando-nos estas belas palavras para
refletirmos.


Espero que esta reflexão contribua para que a sociedade brasileira, em
particular a sua intelectualidade, saia de seu vergonhoso silêncio e encontremos
uma solução para continuarmos, semana após semana, construindo volumes para esta
infinita biblioteca.

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Físico e escritor, Rio de Janeiro, RJ