Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A primeira década do século passada a limpo

Contar a história da primeira década do século 21 é uma empreitada de risco, não só pela proximidade dos fatos, mas também por sua proporção, a começar pelos atentados de 11 de setembro de 2001 em Nova York. O período foi pródigo em rupturas e transformações aceleradas que mudaram a estrutura do nosso cotidiano. Afinal, quem pode hoje em dia prescindir de um computador em sua profissão ou nas tarefas mais simples? Como viver sem lançar mão de pelo menos um dispositivo eletrônico, seja um celular ou um simples pen drive? E como não levar a sério toda a discussão em torno do aquecimento global e outros problemas ambientais?

Olhar em retrospectiva para os dez primeiros anos do século 21 e analisar suas principais tendências é o objetivo do novo livro do jornalista Daniel Piza, Dez anos que encolheram o mundo (Ed LeYa).O título é uma alusão ao livro Dez dias que abalaram o mundo, do jornalista americano John Reed, sobre os acontecimentos de outubro de 1917 que resultaram na Revolução Russa.

Ao longo dos últimos dez anos, o mundo se aproximou mais, se tornou mais conectado, mais interdependente, “encolheu”, segundo a ideia do livro. Porém, esse encolhimento não eliminou as especificidades culturais. “O acesso a outras tradições e visões de mundo só fez aumentar, o que, por sua vez, também colocou em xeque os sistemas que não permitem esse acesso”, escreve o jornalista na introdução.

Atuante e prolífico

Os últimos dez anos viram surgir também dois fenômenos políticos que soariam improváveis, ou impossíveis, se vaticinados vinte ou trinta anos atrás: as eleições de Lula, no Brasil, e de Barack Obama, nos Estados Unidos. Com a crise de 2008, viram estremecer ainda a crença na “mão invisível” como reguladora das forças do mercado e promotora da racionalidade econômica, provocando a quebradeira de instituições financeiras e pondo em risco a economia de vários países, chegando a evocar, por sua gravidade, o crash de 1929.

Dividido em cinco partes, o livro traz uma visão abrangente das principais transformações do período, cobrindo desde política até gastronomia. Cada capítulo traz também considerações sobre o Brasil e os principais fatos que moldaram o país nesses dez anos. O livro inclui ainda uma cronologia dos acontecimentos mais importantes de 2001 a 2010.

Daniel Piza é colunista do jornal O Estado de S. Paulo e um dos mais atuantes e prolíficos jornalistas da área de cultura do país. É autor de vários livros, entre eles Machado de Assis – um gênio brasileiro (2005), Contemporâneo de mim (2007) e Amazônia de Euclides (2010). Por e-mail, ele concedeu a entrevista que se segue, na qual fala do seu novo livro.

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“O apocalipse não veio”

As tendências abordadas no livro cobrem uma gama muito ampla de fatos relacionados à primeira década do século 21. Alguma dessas tendências poderia ser apontada como a mais marcante? Por quê?

Daniel Piza– O livro é dividido em temas subdivididos em tópicos, mas algumas tendências costuram quase todos os textos. A mais forte, no sentido de que se manifesta nos mais diversos assuntos, é a presença da tecnologia em nosso cotidiano. Não apenas na explosão dos meios virtuais de comunicação e informação e na interpenetração dos mercados financeiros, mas também em vários outros aspectos. Por exemplo, muitas profissões foram transformadas por isso. De um balconista de loja a um biólogo do Genoma, todos precisam de computadores para desempenhar seu trabalho. Outra tendência, relacionada a essa, é a participação crescente da indústria do entretenimento – gadgets, esportes, games, artes, TV etc. – no PIB dos países. Em alguns, já é uma indústria maior que a automobilística. Mais uma tendência: a ascensão dos emergentes na economia mundial, China à frente.

As pesquisas para o livro lhe proporcionaram uma nova perspectiva sobre essa década? Reforçaram seus pontos de vista? Fizeram você mudar de ideia sobre um dado assunto?

D.P.– Na maioria, reforçaram meus pontos de vista. Afinal, meu trabalho como colunista é tentar entender o tempo presente. Mas em alguns casos percebi conexões que ainda não tinha percebido em todas as implicações e, em outros, renovei com certo espanto a noção de que as profecias quase sempre erram. Quem diria, depois do 11 de setembro de 2001, que um Barack Obama seria eleito – um presidente democrata, jovem e negro – e que as populações em regimes autocratas árabes se movimentariam por liberdade? Fiz ampla pesquisa e não encontrei nem sequer um analista que tenha considerado essas hipóteses. O apocalipse, de “esquerda” ou de “direita”, não veio. Por sinal, eis outra tendência: a conversão ao centro político, a fuga aos extremos ideológicos, se viu na maioria dos países, inclusive o Brasil.

“A ‘morte das distâncias’”

O livro é dividido em cinco partes. Alguma parte foi mais desafiadora do que a outra?

D.P.– Cada parte teve seu trabalho. A cultural, por exemplo, embora seja minha especialidade, exige uma série de escolhas – quais filmes foram mais representativos, o que não necessariamente são os que mais apreciei – e também muita checagem de nomes, datas etc. Alguns lapsos sempre passam na primeira edição. O capítulo da ciência e tecnologia foi o mais desafiador, porém, pois ali se trata de não apenas descrever fatos, mas também condensar conceitos, não raro complexos. Muitos textos sobre esse tipo de assunto enviei a conhecidos meus, especialistas, para ver se não tinha deixado nada relevante de fora.

Os últimos dez anos transmitem a impressão de uma avalanche, tantas foram as rupturas e descobertas. Podemos imaginar uma hierarquia entre essa década e as que a precederam?

D.P.– É difícil, porque muitas das coisas começaram já nos anos 80 – eu me lembro de jogar Atari quando adolescente e depois ganhar um pequeno computador pessoal – e sobretudo nos anos 90, com a chegada da internet e o fim dos regimes socialistas. Por isso meu livro não se chama “Os Dez Anos que Encolheram o Mundo” nem “Os Dez Anos que Mais Encolheram o Mundo”, e sim, Dez Anos que Encolheram o Mundo. Foram dez anos em que aquelas novidades se acentuaram e aceleraram, como a internet de banda larga, o aumento da interdependência econômica, a chamada “morte das distâncias”, a questão do aquecimento global etc.

“Mudanças agudas”

Uma das tendências descritas no livro diz respeito à expansão das narrativas de não ficção – livros de história, ciências, ensaios, reportagens e biografias –, devido talvez ao esgotamento da ficção. Esse declínio poderá se acentuar nos próximos anos?

D.P.– Ainda há muita ficção sendo escrita e lida, seja best-sellers, como os infanto-juvenis de bruxos e vampiros, seja romances de alta qualidade, como os de Philip Roth, Ian McEwan, Jonathan Franzen, Milton Hatoum etc. Mas, de fato, a narrativa de não ficção parece chamar cada vez mais atenção do público, com livros de história, biografia, ensaios, inclusive de ciência etc. O mesmo vale para o aumento do número de documentários nos canais de TV e salas de cinema. Acho que isso tende a crescer, sim. Talvez porque histórias e personagens reais às vezes são mais interessantes do que os da ficção, talvez sobretudo porque em nossa dita era da “informação” as pessoas sintam necessidade de mais contextualização, hierarquia, aprofundamento.

Não falta ao livro uma boa dose de visão crítica sobre o Brasil desses últimos dez anos, embora reconhecendo avanços aqui e acolá. Quais desafios você imagina como os mais difíceis para o nosso país nos próximos dez anos?

D.P.– O principal desafio é este: que a sociedade brasileira entenda que há muitos desafios adiante e se disponha a enfrentá-los. Pois me parece haver uma forte inclinação cultural para achar que “estamos quase lá”, como dizia o ex-presidente Lula, como se fosse uma questão inercial de seguir o que se faz até atingir o primeiro mundo. Precisamos mudanças agudas, a começar pela mentalidade. A China, por exemplo, tem uma população mais de seis vezes maior que a nossa, mas 80% dos jovens estão no ensino médio; no Brasil, apenas 50%, ou seja, metade dos alunos entala nesse gargalo aos 14, 15 anos. Investir em geração de tecnologia é outro desafio e cito a China mais uma vez, já que visitei na província de Chengdu uma espécie de Vale do Silício deles, só de empresas pontocom.

“Opiniões claras”

A mídia brasileira teve um papel decisivo nas denúncias do “mensalão”, e chegou a ser acusada de “golpista”. Como você analisa a atuação dessa mídia nesses dez anos?

D.P.– Ela ainda faz pouco seu papel; é muito mais chapa branca do que se imagina – e do que ela mesma se imagina. Ainda assim, o pouco que faz é revelador. No caso do mensalão, tratou de mostrar que ele envolvia dinheiro público, que era manipulado desde as altas esferas do poder, que derrubava 24 anos de suposta credibilidade ética do PT. Golpismo é usar o poder como todos os partidos brasileiros usam, como se fosse coisa privada, e não pública. O PT se mostrou tão patrimonialista quanto as oligarquias mais antigas.

O livro traz um capítulo sobre Barack Obama. Ele foi o maior fenômeno político surgido nos últimos dez últimos? Em sua opinião, até onde irá o prazo de validade desse fenômeno?

D.P.– Sem dúvida. Além da novidade que representou, ele fez um discurso de conciliação que significa tudo menos “ficar em cima do muro”, pois é homem de opiniões claras. Ele se comportou bem na crise econômica, não aderindo a soluções radicais, como a nacionalização proposta por gente como Paul Krugman, mas também enviando um projeto de reforma do sistema financeiro, para ser mais regulado e menos irresponsável. Também retomou pesquisas como a da célula tronco, criticou Israel por sua expansão de fronteiras, aprovou a reforma do sistema de saúde. E isso com uma oposição que diz que ele só faz discursos e até que ele nem americano seria… Acho que vai ser reeleito em 2012.

“Alienadas e imaturas”

Os Brics representaram um fato novo na economia, na primeira década do século 21. Outros países poderão se juntar a esse clube nos próximos anos?

D.P.– Alguns já estão aí, como Coreia do Sul e México, mas seus PIBs não têm dimensão para merecer o rótulo… Dos Brics, o Brasil é o que menos cresce, mas é também o que tem melhor renda per capita. China e Índia têm o problema da superpopulação, em grande parte muito pobre, e a Rússia tem um sistema político corrupto e centralizado demais. Mas todos devem ter importância cada vez maior na economia mundial. Mas acredito também que países como EUA, Alemanha e até o Japão podem se recuperar bastante.

A partir das transformações analisadas no livro, dá para imaginar quais tendências marcarão os próximos dez anos?

D.P.– Não sou dado a futurologia, mas já falei aqui de várias tendências que acredito que continuarão nos próximos anos, como a própria interpenetração financeira, comercial e cultural, a chamada globalização. E também tendências não muito inspiradoras no comportamento, como a cultura de celebridades e das aparências, em prejuízo do senso crítico e do conhecimento. Na era da informação, as pessoas estão mais alienadas e imaturas… Espero que novas gerações reajam contra isso.

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[Paulo Lima é jornalista e escritor, editor da revista eletrônica Balaio de Notícias]