Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A professora de Gabo

Um amigo acabara de comprar uma casa junto à praia em Mangaratiba (RJ) e chamou-me para passar lá uma semana. Aceitei o convite. O ano era de 1971. Na pressa de partir acabei esquecendo de levar alguma coisa para ler, na cidade não tinha livraria e os jornais do Rio chegavam no ônibus da tarde. Estava nesse ponto quando encontrei numa gaveta da cômoda um livro, era de um autor que jamais ouvira falar, como não tinha nada mesmo para ler fui com este. Pois é, tratava-se de Cem anos de solidão, do escritor colombiano Gabriel García Márquez, o ‘Gabo’.

Depois disso tornei a ler o livro diversas vezes, de tão marcante que me foi. A cada relida encontrava algo novo, algo que me havia escapado dentro da enorme riqueza do romance. Outros trabalhos do autor foram sendo lidos, contos, novos romances: Crônica de uma morte anunciada, O amor nos tempos do cólera, uma estupenda biografia de Simon Bolivar.

Mudando para a Itália encontrei em casa toda a obra de Gabo, e os reli em italiano. A mesma qualidade inigualável. Li também seus dois últimos trabalhos, o autobiográfico Vivir para contarla e Memoria de mi putas tristes.

Todavia, nesse intervalo me chegaram dois artigos de Gabo publicados em la Repubblica. O primeiro, de 2001, conta a história de como escreveu Cem anos de solidão e tem como título ‘Cem anos de solidão, a odisséia de um romance. História secreta de uma obra-prima’. O outro é de 1966, ou seja antes que ele escrevesse Cem anos… e o título diz tudo: ‘Desventuras de um escritor de livros’ (la Repubblica, 2004).

Na quarta-feira (23/11), sempre em la Repubblica, o jornalista Omero Ciai publica um pequeno artigo cuja íntegra segue devidamente traduzida.

Coloquei a caneta na mão de gabo

Morreu com mais de 90 anos a professora de Márquez

‘Gabo a citava sempre em seus livros e ela ficava feliz, lembrava-se de quando fora seu aluno na escola Montessori’, contava ontem um dos filhos de Rosa Helena Fergusson, a professora que há 70 anos ensinou García Márquez a ler e escrever e que morreu na noite entre domingo e segunda feira passados, em Medellín. Tinha 96 anos e teve um infarto durante o sono. Debaixo do colchão – disseram os filhos – Rosa deixou um pequeno testamento de oito páginas sem data nem assinatura. ‘Foi sempre uma mulher muito alegre – disse ao diário El Tiempo, de Bogotá, Marcela, a mais nova de seus sete filhos – e não obstante fosse já muito velha nos fazia ainda rir com suas histórias.’

Segundo os filhos, não teria gostado muito da publicidade tida graças as citações nos livros do famoso prêmio Nobel. Contudo nos últimos anos sublinhava sempre os parágrafos dedicados a ela. Soube pela primeira vez ser personagem de um conto de García Márquez em 1993. O livro era Ninguém escreve ao coronel. Foi então que tomou coragem e se diz que tenha escrito e enviado uma carta ao presidente da Colômbia e a numerosos ministros, pedindo uma bolsa de estudos e uma casa para uma de suas filhas. Não recebeu resposta.

Rosa Helena Fergusson era filha do cônsul inglês e de uma colombiana. Nasceu em Riohacha e começou a ensinar na escola Montessori de Aracataca, onde o pequeno Márquez começou um pouco tarde – tinha oito anos – a ler e escrever. Em 1995 García Márquez a definiu uma das melhores professoras do país e a descreveu como a mulher que, com um estilo ao mesmo tempo autoritário e carinhoso, tinha lhe ensinado a amar a poesia e a literatura.

Rosa é citada na obra prima de Márquez, Cem anos de solidão, mas ela jamais conseguiu lê-lo até o final porque ‘era muito complicado’. O livro do famoso aluno que ela mais gostava era Ninguém escreve ao coronel porque – dizia – era evidente naquelas páginas que García Márquez fora sempre apaixonado pela sua professora.

Rosa Helena pediu para ser cremada e que suas cinzas fossem espalhadas no Oceano Atlântico. No momento da morte a família da professora Fergusson não teve a possibilidade de avisar García Márquez a fim de evitar que ele ficasse sabendo do fato pelos jornais, mas ainda lembram que Rosa Helena sempre foi muito orgulhosa da vez em que o prêmio Nobel disse: ‘Todos meus triunfos literários são mérito seu’.

O curioso nessa história é que me considerando um conhecedor do romancista, acima da média, tenho Cem anos de solidão como sua mais importante obra, sem dúvida uma das melhores da literatura ocidental, mas não consegui, por mais que tentasse, ler Ninguém escreve ao coronel.

Quanto ao gostar ou não de um trabalho literário, me envia por carta o jornalista e escritor Moacir Japiassu seu conceito muito proficiente, referindo-se ao que foi dito sobre seu último romance Quando alegre partiste:

‘É questão de gosto, claro, mas não é legal hierarquizar a obra de ninguém. Cada livro tem sua gestação, sua própria linguagem, segue o planejamento do autor, essas coisas, né mesmo? O diabo é que a gente costuma dizer: ‘Gosto mais de A Cidade e as Serras que de Os Maias… de Dom Casmurro mais que de A Mão e a Luva‘.

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Jornalista