Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A reportagem do pesadelo

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Seu editor informa que Tirando o capuz foi o primeiro relato de um ex-preso político publicado no país depois da ditadura instaurada em 1964. Em que circunstâncias foi produzida a edição? Como decidiu-se por escrever o livro e quanto tempo levou para dar o ponto final no texto?

Álvaro Caldas – Não foi o primeiro livro. Saíram outros antes. O que ele informa é que se trata da primeira obra escrita por um ex-preso político que descreve, em toda sua crueza e crueldade, os horrores da tortura. De fato, este é um aspecto importante no livro, porque nele deixei documentado, no capítulo intitulado ‘O preço da dor’, o cenário e a tragédia que decorre numa câmara de tortura. Identificando o local, quartel do lº Batalhão de Polícia do Exército, sede do DOI-CODI no Rio, e os personagens, dando nome aos torturadores. O grotesco e absurdo da situação são tais que alguns críticos identificaram no livro vestígios de um texto kafkiano. Mas é real. Doloroso e infame, mas é real. Este relato faz do Tirando o capuz um livro incômodo e perturbador, em especial para mim, que o reli agora para a nova edição. Tive noites de insônia, pesadelos terríveis ao penetrar novamente o cenário do horror.

Escrevi o livro em menos de seis meses, em 1980, época em que trabalhava na sucursal Rio da Folha de S.Paulo. Saiu quase que de um jato, numa espécie de catarse. Porque estava tudo na minha cabeça, as emoções foram muito fortes. Acho que ele se impôs a mim. Fiz poucas anotações antes, não cheguei a fazer um diário de cárcere, mesmo porque ele me seria tomado pelos carcereiros. Estávamos sujeitos a revistas e controles a todo momento. O livro foi editado pela Codecri, a editora do Pasquim, em junho de 1981, e fez quatro edições sucessivas, tornou-se um best-seller. Depois de esgotado, virou raridade de sebos.

Por que motivo reeditá-lo agora? O livro não envelheceu?

A.C. – Vários motivos justificam a permanência do livro. Primeiro, ele adquiriu com o tempo o status de um clássico, um livro de referência. Um historiador ou pesquisador que for estudar a época encontrará nele informações que ajudam a reconstituir não só os fatos, como o clima de tragédia vivido pelo país. Figura entre fontes citadas por Elio Gaspari na série ‘As Ilusões Armadas’. Seu retorno não se deve apenas à sua integridade como documento de valor histórico dos tempos de terror, revividos agora com a passagem dos 40 anos do golpe militar de 1964. Se antes chamou a atenção por desvendar o que estava encoberto e por seu caráter de denúncia, nesta sua volta ele se torna um livro de História viva, destinado especialmente aos jovens, que pouco ou quase nada sabem sobre o que se passou. Minha ambição maior é que o livro seja lido pela juventude, pelos filhos e até netos dos que tomaram parte naquele confronto. Ou não. Tirando o capuz narra a trajetória política e existencial de minha geração, da militância estudantil à opção pela luta armada. De uma geração.que resistiu ao golpe, que não se conformou com a imposição da ditadura.

A quinta edição de Tirando o capuz é ‘revista e ampliada’. O que de mais relevante os dois novos episódios incluídos no livro acrescentaram ao texto original?

A.C. – A princípio, havia pensado em dar continuidade à primeira história narrada no livro, ‘Uma fantástica viagem’ – um seqüestro que sofri depois que cumpri dois anos e meio de cárcere e saí da prisão. Passei uma semana sumido, quase fui morto, tornando-me mais um desaparecido. Esse episódio até hoje não foi esclarecido, não sei para onde fui levado. Desvendar este mistério seria uma grande novidade. Mas não consegui. Sem que eu esperasse, surgiram informações novas envolvendo dois personagens do livro, militares que tiveram alguma ligação com a tortura, que me estimularam a escrever.

Cheguei a ter um diálogo com o livro, consultando-o sobre as novas histórias que pretendia acrescentar. Sua única exigência foi de que eu respeitasse sua integridade. Garanti que respeitaria, que não mexeria em seu conteúdo, que os dois novos relatos que iria incluir na verdade podiam ser considerados seus filhos, porque saíram de suas páginas. Convenci-o, e acho que esta quinta edição ganhou um sabor especial. As novidades foram trazidas por filhos de militares que partiram para desvendar o passado de seus pais, com o temor de encontrar lá atrás o fantasma de um torturador.

Esta nova edição corrige uma injustiça, retirando da lista de torturadores citados no livro o nome do capitão-de-mar e guerra João Alfredo Poeck, vítima de calúnia de outro militar da Marinha, e ali injustamente colocado. A outra história desvenda o que estava por trás do ‘bravo tenente Elias’, expulso na época das fileiras do Exército, acusado de envolvimento com os subversivos. Ambas, curiosamente, derivadas de iniciativas de filhos dos militares e ao mesmo tempo parte das raízes espalhadas pelo livro. Renderam um novo capítulo, intitulado ‘Sem capuz’.

A 4ª capa do livro traz comentários de leitores importantes, cujo tom varia do elogio à admiração – Leandro Konder, Fernando Sabino, Flávio Rangel, Walter Salles, Augusto Nunes e Marcos de Castro. Entre eles, o crítico Franklin de Oliveira informa que: ‘Caldas recompõe com uma impressionante distância a sua experiência de prisioneiro – e é essa distância, paradoxalmente, uma das fontes de emoção que nos envolve ao lê-lo. (…) Da leitura de seu livro extrai-se um ensinamento de capital importância: a ninguém é dado brincar impunemente com os fatos sociais.’ O que pode comentar sobre esta afirmação? 

A.C. – Essa questão do distanciamento do autor-protagonista na narrativa foi apontada por vários críticos com um dois pontos altos do livro. Porque se trata, no caso da tortura, de uma situação extremamente pessoal, ultrajante, limite, de vida ou morte. A tortura é algo pornográfico, indizível. Quando me pedem para contar o que ocorreu eu fujo, primeiro porque não quero relembrar, depois porque temo as conseqüências de abrir o baú. Peço então para que leiam o que está no livro.

Acho que minha formação de repórter contribuiu para esse afastamento, para uma narrativa sem adjetivos heróicos, num tom até certo ponto sereno. Um bom repórter narra, dá o clima, transmite emoção, mas não entra nela. Isso deu ao texto um tom kafkiano, porque é um relato do absurdo, da condição humana vilipendiada, mas disposta a resistir. Grande crítico e intelectual, Franklin de Oliveira acertou em sua observação. De certa forma, quem ‘brinca’ com os fatos sociais acaba pagando por isso. Nós não brincamos, mas avaliamos errado, de uma forma precipitada, o que estava se passando. Queríamos o apocalipse, era tudo ou nada. Acontece que estávamos no olho do furacão. Pagamos caro por isso. Com a prisão, tortura, morte, desaparecimento, banimento, fora as seqüelas incuráveis para muitos dos sobreviventes. 

Você passaria por tudo isso de novo?

A.C. – Às vezes, quando conto alguns desses fatos para os meus alunos na PUC, vejo que eles ficam horrorizados. Muitos não têm noção da dimensão da tragédia que ocorreu, mas sinto que eles se interessam, que o assunto atrai sua atenção. Acho que temos a obrigação de proporcionar essa discussão, de trazer essa memória, daí meu interesse em fazer com que a nova edição do livro seja lida em especial pelos jovens. De fato, vivemos uma fase dura e sofrida, mas ao mesmo tempo muito rica e perturbadora, que deixou ensinamentos. Minha geração despontou para a vida num momento político e histórico especial, no qual a indiferença política não era admitida. Nem dava para ficar de fora. Os que não foram para a guerrilha foram para a estrada, para as comunidades hippies, que de uma outra forma também era uma maneira de protestar..

Não tenho arrependimento do que fiz. Até para desgosto de alguns críticos, que vêem os fatos pela ótica de um enquadramento puramente lógico e político. Fomos levados por um sentimento utópico-revolucionário que beirou o misticismo. Sabíamos que a disparidade de forças era enorme. Só que o mundo vivia uma conjuntura política que nos encorajava. Partíamos de uma concepção revolucionária marxista-leninista, mas mais que a ciência foi a paixão que nos conduziu. Daí o sectarismo, as disputas internas, os inúmeros rachas dentro das organizações, decorrentes do sentimento de que cada grupo era dono da verdade. Estávamos também encapuzados.

Metáfora das trevas impostas pela ditadura e da crença inabalável e irreal da esquerda armada, o capuz foi a marca daqueles tempos no Brasil.