Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A senhora fala português?

Cada macaco no seu galho, reza um dos mais queridos e sábios ditos populares brasileiros. E como se diz isso em sonoro e fluente espanhol mexicano, o mexicanês? Cada chango a su mecate. Filho de peixe peixinho é? De tal palo, tal astilla. E como fica quem não tem cão caça com gato? A falta de pan, tortillas.

Temos aí três bons exemplos, casos de uma tradução o mais aproximada possível, roçando o literal – um desafio para o tradutor no trato com expressões populares – que ilustram, com bom humor e eficácia, a parte final do livro de português para estrangeiros há pouco lançado no México pela professora e tradutora piauiense Laís Viegas de Valenzuela, junto com outro, também de sua autoria, sobre a conjugação dos verbos portugueses.

Atenta ao interlocutor, olhar e fala serenos, um pronunciado sotaque nordestino mesmo depois de mais de 20 anos no exterior, Laís, especializada em línguas neolatinas, apresenta seus livros sem nenhuma pose acadêmica ou ambiciosos objetivos educacionais. Simplesmente, diz, reuniu em dois volumes todo o conhecimento armazenado e refletido ao longo de anos de estudos, ensino e pesquisas sobre a língua portuguesa, para facilitar a vida daqueles, jovens principalmente, que querem – e precisam – aprender o nosso idioma. ‘É grande ainda a dificuldade para encontrar no mercado latino-americano, México incluído, livros e manuais para o aprendizado do português’, diz a autora.

De forma usual, na triste pobreza que caracteriza a promoção cultural brasileira no exterior, o que fazem os abnegados professores é elaborar o material didático, imprimir, copiar e distribuir aos alunos. ‘Senti que já era necessário juntar tudo num livrinho mais estruturado, uma gramática mais prática e funcional, ensinando a usar (falar e escrever) corretamente a língua portuguesa, sobretudo por parte de estrangeiros – esclarecendo dúvidas comuns, corrigindo pontuação e pronúncia, chamando a atenção para erros cometidos com freqüência, por exemplo, na linguagem coloquial.’

Ela visa também, no seu jeito descontraído de explicar nossa nada fácil gramática, passando de um idioma a outro com exemplos do dia-a-dia, eliminar resquícios de um ensino ainda meio lusitano, um falar formal e rebuscado. Coisas do tipo ‘por favor, meu senhor, dê-me um guaraná’ ou ‘posso fazer algo por si?’ ‘Meu trabalho é um grãozinho de areia, ficarei feliz se atingir e beneficiar algum tipo de público interessado em nosso idioma’, diz Laís.

Sutilezas e armadilhas

Na verdade, a professora não corre riscos de ver seu trabalho desperdiçado, mal compreendido, pior utilizado. O livro, embora de produção modesta, é bastante abrangente, evitando a chatice ou o hermetismo comuns ao gênero. Mais: vai além de seus propósitos, digamos, didáticos, quando a autora se preocupa, num plano mais refinado, com as sutilezas de dois idiomas tão parecidos e, portanto, campos férteis para confusões e erros bobos, ou posturas do tipo ‘moleza falar espanhol ou português’.

Assim, em 19 capítulos a autora abarca grande parte da estrutura gramatical da língua portuguesa, cabendo ao capítulo 19 um dos mais importantes aspectos do tema: como um estrangeiro pode – e deve – escrever corretamente o português.

No México, a noite de autógrafos é uma minifesta literária, quando críticos e escritores debatem com o autor e o público a obra apresentada; depois, na hora do vinho branco e dos canapés, o autor autografa os exemplares comprados – nada de filas ou longas esperas. Em conversa com o público na noite de autógrafos dos dois livros, na quinta-feira (3/6), Laís se divertia ao falar sobre a clássica armadilha dos cacófatos – tanto em português como em espanhol.

Exemplo bem conhecido em português: ‘ela tinha saído desde manhã cedo’ (ella había salido desde la mañana temprano). E recomenda ouvido esperto aos futuros redatores no nosso idioma: latinha = lata pequena. Nunca comi carne de baleia (jamás he comido carne de ballena). Caco: pedazo de algo que se rompió.

Sons estranhos e desagradáveis, às vezes constrangedores, também aparecem no espanhol. ‘Como pode uma família dar a uma filha o nome de Veronica quando o sobrenome é Gaona?’, pergunta a autora.

No delicado e imprevisível campo das emoções e estados de espírito, quando o brasileiro se expressa de uma maneira peculiar com interjeições do tipo ‘puxa!’, ‘nossa!’, a autora orienta o neófito estrangeiro, por exemplo, no uso de uma palavra comum, de aparência inofensiva: ‘droga’.

‘Droga! Já está chovendo de novo! (Que porquería. Ya está lloviendo otra vez!) O que parece óbvio para nós, é novidade para o estudante de fora: ‘Droga é um remédio, o componente de um medicamento que pode também causar dependência, mas nessa frase é usada como forma de expressar uma sensação de desagrado.’

Nessa área onde o idioma assume uma cor ou um significado muito pessoal, a professora adverte os alunos sobre o uso dos pronomes pessoais em forma de sujeito (eu, você, nós): são usados com muita freqüência, mesmo quando a forma verbal possa identificar a pessoa. Eu vou comprar um vestido em vez de ‘vou comprar um vestido novo’ (me voy a comprar un vestido nuevo). Por outro lado, se usam muito menos que em espanhol os pronomes átomos, objeto (me, se, nos). ‘Eu acordei às oito horas’, em espanhol me desperté as las 8. ‘Tomei um suco de laranja’, ao contrário de me tomé un jugo de naranja.

Muito comum em espanhol também são as redundâncias relativas ao objeto indireto – me toca a mí, se lo dije a él. Observa a professora aos seus leitores: ‘Em português nunca se usa o mesmo objeto duplamente. Dizemos ‘é a minha vez de…’, ‘eu disse a ele ou eu lhe disse’’.

Ainda no campo dos pronomes, no caso do objeto átono, a autora lembra a força expressiva, no português, de um recurso de expressão, de estilo, que mostra o grande interesse ‘em que a ordem emitida ou a súplica feita seja de fato executada’. Por exemplo: ‘Não vá me rasgar a capa do livro’ (no vayas a romper la portada del libro).

Português para mexicanos

Diante da situação pouco animadora da língua portuguesa no continente, debatendo-se bravamente no oceano hispânico – somos, por conta de fatalismos geográficos, históricos e lingüísticos, quase 200 milhões contra mais de 400 milhões –, o enorme esforço intelectual da professora brasileira tem uma dimensão respeitável, é inegável. Mas ela própria prefere não entrar nesse tipo de discussão.

Quando lhe perguntam por que o governo brasileiro não exige reciprocidade em questões lingüísticas (o espanhol é agora matéria obrigatória nas escolas secundárias brasileiras), ela se esquiva: ‘Sou uma técnica do idioma, não penso em termos políticos ou ideológicos. Sou positiva: o que vier de todo esse empenho considero lucro, e dos bons’, afirma em sua maneira tranqüila, com jeito de querer encerrar o assunto.

Contudo, uma das participantes do debate, a paulista de Rio Claro Regina Crespo, professora de pós-graduação em Estudos Latino-Americanos da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Nacional do México (UNAM), vai um pouco mais fundo, começando por considerar o livro um ‘importante trabalho de aproximação entre os dois idiomas, duas culturas, duas formas de ver e sentir o mundo, sobretudo porque nesse campo, o das publicações em português, ainda estamos num deserto’.

Falta material didático bom, mas não gente jovem interessada, por uma ou outra razão, em aprender português. Os números desse interesse e procura de fato não são nada desprezíveis: nas unidades do Centro de Estudios de Lenguas Extranjeras, da UNAM, 2 mil alunos estudam português. Também no Centro de Estudios Brasileños, da Embaixada do Brasil, e no Instituto Politécnico Nacional funcionam cursos de português em diferentes níveis.

‘Esse número de estudantes é de fato excepcional se considerarmos a ainda baixa utilidade do idioma português frente ao inglês, o francês e o próprio espanhol’, diz a professora Regina Crespo. ‘Aprender português é como aprender italiano, quase um luxo, puro gosto pessoal, mas não dá status como o francês nem é útil como o inglês. Mais excepcional ainda se considerarmos também a especificidade da gramática portuguesa, mais complexa que a espanhola. Por exemplo, para os hispanos não é fácil lidar com o nosso infinitivo pessoal, tempo que só existe no português e assume a forma flexionada (ou conjugada). Exemplo: ‘Chegou o momento de [nós] apresentarmos nossas conclusões (Llegó el momento de presentar nuestras conclusiones [nosotros]).

Seja como for, ambas as professoras, apesar dos obstáculos e dificuldades nesse trabalho de ensino e difusão do português no exterior, no México sobretudo, mantêm uma atitude otimista e produtiva porque, percebem, os dois países mais e mais se aproximam. Pelo menos em termos comerciais, com crescentes investimentos mexicanos (caso do magnata Carlos Slim no campo da telefonia e sua recente compra da Embratel).

Pouco a pouco, elas acreditam, não será mais efetivo nem prático apelar ao portunhol ou o espanguês. O exército de jovens executivos que logo chegará ao Brasil ‘terá que falar e escrever português brasileiro direitinho’, conclui, esperançosa, Laís Viegas de Valenzuela.

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Jornalista e escritor brasileiro radicado no México