Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A sociedade das fórmulas e o culto à incompetência

O corpus escolhido para análise é a capa e a matéria correspondente da revista Veja datada de 13 de julho de 2011, que estampa o título: “Concurso público: as lições dos campeões”. O subtítulo traz a seguinte frase: “10 vitoriosos ensinam como conquistar um dos cobiçados cargos oficiais com salário inicial de até 21.000 reais”. Tomando como ferramenta teórica a análise do discurso, é preciso nos debruçarmos um pouco mais a fundo sobre alguns conceitos inerentes a este tipo de análise, ao mesmo tempo em que vamos revelando pouco a pouco as características intrínsecas à matéria analisada, até que se possa fundamentar o recorte proposto no título deste trabalho.

Partindo de uma análise ainda superficial, percebe-se que títulos como esses, assustadoramente, remetem a lembranças das revistas femininas que prometem beleza e magreza a qualquer custo, tentando reinventar, a cada edição, novas fórmulas mágicas para a felicidade. Afinal, só é feliz quem é magro. Não apenas magro, mas sim, aqueles que alcançam os padrões de beleza (inatingíveis) preconizados pela mídia. Parece que além da magreza, a receita de felicidade está também em tornar-se servidor público. E o melhor… já existe uma receita para isso.

Ao prosseguirmos nossa análise, há ainda que se atentar para os elementos parafrásicos, que reafirmam o caráter positivo que o jornalista parece querer dar ao assunto em questão, tais como “campeões” e “vitoriosos”. Assim como encontramos este mecanismo de repetição nas palavras “lições” e “ensinam como conquistar”, que, por sua vez, parecem revelar as características de uma sociedade que tenta criar uma fórmula para tudo, condicionando o sucesso à sua estrita observância.

Imagem positiva

Se partíssemos de uma visão hermenêutica, baseada na interpretação, pareceria arriscado e prematuro iniciar uma analise com tamanha antecipação. A antecipação a que nos referimos não se trata do sentido entendido por Orlandi (2010), a qual refere-se ao direcionamento do discurso de acordo com seu público, antecipando-se às suas expectativas. Trata-se aqui, portanto, da antecipação vista como um julgamento prévio de ideias, onde Gadamer (1988), retomando preceitos de Heidegger, afirma: “Toda interpretação autêntica deve se precaver contra a arbitrariedade de ideias barrocas que afloram ao espírito, bem como as limitações provenientes de hábitos inconscientes do pensamento”. No entanto, este é um desafio e ao mesmo tempo um risco que optamos por correr, apontando, portanto, para uma clara afinidade com os métodos de compreensão de sentidos produzidos pelos objetos simbólicos preconizados na análise do discurso, em detrimento da simples interpretação.

Ao analisarem-se os elementos gráficos da capa, observa-se que o termo “concurso público” aparece com uma marcação em vermelho dentro de uma caixa de seleção, da mesma forma como as questões são dispostas em provas, a fim de que se escolha uma opção, simbolizando que concurso publico é a opção correta a ser escolhida. Além disso, a personagem da capa é uma mulher jovem, magra, vestida como executiva, com cabelo e pele bem tratados, braços cruzados, inspirando confiança e sucesso. A legenda informa que ela passou em segundo lugar para a Procuradoria Geral de São Paulo.

A imagem e a ilustração da capa, em consonância com o texto, constituem-se em discurso à medida que estão repletas de simbolismos e criam a harmonia perfeita para construir a imagem positiva do concurso público e endossar a existência da receita para o alcance do sucesso.

Uma vontade de verdade

Pode-se ainda identificar nesta formação discursiva, apontada acima, um dos mecanismos presentes na formação do discurso descritos por Orlandi (2010), que é o do esquecimento ideológico: “Por esse esquecimento temos a ilusão de ser a origem do que dizemos quando, na realidade, retomamos sentidos pré-existentes”. Transpondo para o nosso objeto de estudo, o que se quer dizer é que a forma como a revista dispõe os elementos gráficos e textuais em sua capa remete à ilusão do ineditismo, quando, na verdade, já existe uma corrente ideológica a respeito dos concursos públicos consolidada em um determinado nicho da população, em que os mecanismos para se obter aprovação também já são conhecidos. Esta corrente ideológica encontra seu lugar nos jornais e cursinhos especializados, por exemplo. Colocando-nos como analistas de nossa própria análise, poderíamos identificar os referidos nichos da população como sendo parte de sociedades discursivas, as quais Foucault (2010) considera como compostas por um ambiente delimitado de produção e circulação do discurso. Agora estes discursos passam a ser disseminados em uma parcela maior da população, por meio de um veículo de abrangência nacional, sob a ótica da receita do sucesso e da conquista. Estaríamos falando, portanto, de uma transposição do tema do patamar de uma sociedade do discurso para o de doutrina, baseando-nos ainda no entendimento de Foucault (idem) a respeito do assunto: “Doutrina (…) tende a difundir-se; e é pela partilha de um só e mesmo conjunto de discursos que indivíduos, tão numerosos quanto se queiram imaginar, definem sua pertença recíproca”.

É preciso ainda levar em consideração o sujeito que fala e em que circunstâncias ele fala. Ora, temos um discurso proferido por uma das maiores revistas brasileiras que, apesar do repúdio de vários profissionais da área de comunicação, constitui-se como veículo de credibilidade perante a sociedade. Caso contrário não teria a grande tiragem que possui, superior a um milhão, segundo dados da própria revista. Há ainda que se considerar o contexto histórico vivenciado em capitais como Brasília, por exemplo, que aponta para a formação de uma cultura do concurso público, que além de ter se tornado um mercado lucrativo, tenta se colocar cada vez mais como a única realidade possível para quem deseja ser bem sucedido. Portanto, temos como sujeito discursivo uma das maiores revistas do país, que parte de uma dada realidade, trazendo o discurso da fórmula que tirará o leitor da condição de espectador para tornar-se ator dessa realidade maravilhosa.

Diante deste contexto, há que se fazer uma reflexão à luz de dois questionamentos. A revista Veja constitui-se em mais um veículo que tenta manipular a realidade, contribuindo para criar a ilusão de que os concursos públicos são a força motriz, o oxigênio da sociedade e que esta é a melhor opção para a obtenção de sucesso? Ou a matéria em questão nada mais é do que fruto de uma realidade já estabelecida, colocando-se, portanto, na condição de interdiscurso, ou seja, apenas retoma falas pré-existentes, conceitos preconcebidos? Se não encontramos uma resposta imediata para esta questão, podemos ao menos afirmar que no transcorrer da matéria jornalística, existe a manifestação de uma vontade de verdade que busca fundamentar-se nos discursos daqueles que passaram em concursos públicos, nos fatos históricos e nos dados estatísticos.

A “realidade” da sociedade

Se tomarmos como base o primeiro questionamento, então há de se supor que vender sonhos é um negócio rentável, mesmo apesar da atual realidade política de corte de verbas públicas e, consequentemente, concursos públicos, a qual a revista parece ignorar. Diríamos que seria a presença do não dito no discurso. Não podemos deixar de considerar que tal realidade “ignorada” poderia fazer parte de uma estratégia para encher os bancos dos cursinhos novamente, em um período de baixa de concursos. Mas não nos alongaremos nesta questão para, uma vez sem provas, não cairmos em uma armadilha da conspiração. Dentro desta perspectiva, agora sim, podemos retomar o conceito de antecipação preconizado por Orlandi, entendido neste contexto, como a revista colocando-se no lugar do público desta reportagem, antecipando-se às suas expectativas e adaptando o discurso de forma a atender tais expectativas. Encontramos dispostos pela reportagem vários elementos capazes de fundamentar esta formulação, a começar pelo título “Como chegar lá”, que nada mais é do que, coloquialmente falando, tudo que um concurseiro precisa ouvir. Uma fórmula, uma receita, um atalho para a obtenção da aprovação. Fato que reforça a ideia presente na composição de elementos gráficos e textuais contidos na capa da revista, já discutidos anteriormente.

Aprofundando um pouco mais nossa análise, ao isolarmos determinadas palavras-chave, que se repetem por todo o texto, nos tornamos capazes de identificar o ponto focal do discurso proferido pela revista e a ideologia contida em seu discurso. São elas: altos salários, estabilidade, processo de seleção democrático e oportunidade para recém formados e pessoas de meia idade que desejam voltar ao mercado de trabalho. Somem-se a tudo isso as estatísticas apresentadas, que indicam o crescimento do número de servidores públicos e de candidatos a concursos no país nos últimos anos, e tem-se a realidade construída. Há de se atentar, no entanto, para o fato de que apesar dos grandiosos números apresentados, 10,2 milhões de servidores públicos no país, a revista não revela que a população brasileira é composta por mais de 190 milhões de pessoas, segundo dados do IBGE. O que equivale dizer que, na verdade, o número de servidores públicos corresponde a pouco mais de 5% da população brasileira. Portanto, podemos afirmar que encontramos, na matéria analisada, elementos que comprovam a definição da formação discursiva como “aquilo que …– a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada – determina o que pode e deve ser dito” (ORLANDI, 2010, p. 43).

Por outro lado, se considerarmos o segundo questionamento, de que a matéria em questão nada mais é do que fruto de uma realidade já estabelecida, colocando-se na condição de interdiscurso, então seria preciso avaliar melhor as condições que levaram a essa realidade. Daí, voltamos à questão da vontade de verdade que embasa o discurso presente na revista. Chegamos a uma percepção, portanto, da tendência da adoção de um posicionamento do veículo em pauta voltado para responder a este segundo questionamento. É a partir deste ponto que encontramos presentes na reportagem os discursos histórico e político que levam ao entendimento da evolução da carreira e do status do servidor, assim como os depoimentos daqueles que já se encontram no serviço público. Estes podem ser considerados os elementos que procuram chancelar a “realidade” da sociedade brasileira, aliada às contraposições entre o setor privado, colocado como vilão, e o setor público, elevado ao patamar de local onde estão os empregos mais cobiçados do país.

Processo (nada) democrático

Apesar de todos os fatos estatísticos, históricos, sociais e políticos que Veja apresenta, na busca da coerência e da fundamentação daquilo que se pretende endossar como sendo a realidade ideal, há de se atentar para as contradições presentes na construção discursiva e que nos levam ao questionamento de que tipo de sociedade está-se preconizando, que tipo de profissionais queremos e até que ponto o serviço público evolui. Logo em seu primeiro parágrafo encontramos a seguinte afirmação: “O serviço público passou a ser um celeiro de talentos e carreiras promissoras”. No entanto, no decorrer do texto, nos deparamos com a frase: “O fato de que a vitória nos concursos seja apenas do candidato faz com que eles atraiam cada vez mais jovens recém-formados, que, na iniciativa privada,esbarraram na falta de experiência para conseguir emprego.” Esta última afirmação, revestida numa pretensa aura de positividade, pode contrariar não só a frase contida no primeiro parágrafo, como contraria a si mesma. Ora, se o serviço público constitui-se em celeiro de talentos, como pode ser a porta de entrada de recém-formados, que, não é difícil de se deduzir, ainda são, em sua maioria, inexperientes e profissionalmente imaturos? Além disso, afirmar que concurso público seria a solução para aqueles que, por falta de experiência, não conseguiriam uma vaga no setor privado, mais nos leva a crer que o setor privado ainda se constitui em um setor mais sério, profissional e criterioso na escolha de seu quadro de funcionários do que o setor público, partindo-se do pressuposto que, neste último,qualquer pessoa, independentemente de habilidades para exercer o cargo, poderá atuar. Uma última afirmação da revista fecha o pensamento aqui apresentado: “… mais da metade do conteúdo que cai nas provas é comum à maioria dos concursos – apenas uma pequena parcela dos exames exige conhecimentos específicos de determinada área”. Mais uma vez a revista dá seu toque positivo à não exigência de conhecimentos específicos, comprovando, desta forma, o culto à incompetência chancelado pela mídia.

Infelizmente, concepções como essas acabam por incentivar recém-formados a se aventurarem pelo campo dos concursos públicos antes mesmo de terem algum tipo de experiência profissional, dedicando-se apenas ao estudo preparatório para concursos, abdicando-se de uma oportunidade primeira de experiência, maturidade e crescimento profissional. Muitos acabam nem atuando na área para a qual se formaram, apenas pela promessa de dinheiro fácil, não servindo bem nem aos propósitos de sua formação acadêmica, nem aos do serviço público. A fim de complementarmos este raciocínio, há que se apontar mais um recorte do texto: “O que mais atrai tantos candidatos para os concursos, primeiramente, são os salários cada vez mais polpudos”. O que temos a partir desta afirmação é a preconização de uma sociedade cujos valores se invertem a cada dia, onde se perde a noção do dinheiro como consequência do trabalho e do mérito, mas sim o contrário, o trabalho virou uma consequência do dinheiro.

Outro elemento contraditório está no apontamento a respeito do caráter democrático dos concursos públicos, que, segundo a revista,permitem acesso universal, independentemente, entre outros fatores, de condição social. No entanto, logo mais à frente, Veja aponta como sendo necessário para a tentativa de ingresso em um cargo público, um investimento do candidato de aproximadamente 12 mil reais num ano para custeio de cursos preparatórios, material didático e inscrições. Não é difícil de supor, portanto, que concurso público está longe de ser um processo democrático, no tocante à classe social, ao levarmos em consideração o baixo poder aquisitivo de grande parte da população brasileira.

Discurso historicamente construído

Ao utilizarmos a metodologia da análise do discurso aplicada à matéria da revista Veja, somos capazes de captar algumas características de uma sociedade imediatista, em que tempo é dinheiro e fórmulas mágicas são bem-vindas, à medida que representam atalhos para se conquistar mais rapidamente aquilo que exigiria um caminho mais logo e penoso. Da mesma maneira, subentende-se que há de fato uma parcela da população mais preocupada em ganhar dinheiro rapidamente, onde formação acadêmica e construção de uma carreira sólida, baseada no conhecimento e na experiência, deixaram de ser prioridade. Por outro lado, percebe-se que a forma como o discurso da revista é construído acaba por superdimensionar o que seria o comportamento de um nicho da sociedade, criando a ilusão de uma realidade universal onde todos estariam inseridos. Da mesma forma, a postura adotada pela revista acaba por chancelar, por meio de fatos e dados apresentados como vantajosos, o culto à incompetência, à falta de preparo e às soluções práticas para a garantia de um futuro sinônimo de sucesso. Fica claro também que parte dessa percepção constitui-se em produto de um interdiscurso, baseado na apropriação de falas anteriores do culto à estabilidade, aos altos salários e todos os outros benefícios que o setor público oferece àqueles que passarem em uma prova, a qual não exige conhecimentos específicos, mas sim conhecimentos em como se fazer provas de concurso.

Apesar do pretenso esforço em contrapor os setores público e privado e buscar revelar os fatos históricos que levaram o setor público a ser o paraíso que se coloca, a formação discursiva cria algumas ciladas para si própria, caindo em contradição, deixando transparecer a fragilidade de sua argumentação, ao mesmo tempo em que deixa de apresentar alguns dados da realidade, com a intenção de tornar mais verossímil a sua versão dos fatos, apresentando, desta maneira, uma realidade mascarada.

Trazer à tona estas reflexões faz com que possamos adotar uma postura mais crítica em relação à realidade colocada diante de nós pela mídia. Se existe o certo ou o errado, isso é uma questão difícil de ser respondida, uma vez que o discurso é historicamente construído, está sempre em movimento e sua compreensão torna-se refém de fatores como as condições de sua produção e as características intrínsecas ao próprio analista.

Referências bibliográficas

FOUCALT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução de Laura fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edição Loyola, 2010

GADAMER, Hans George. O problema da consciência histórica. Tradução de Paulo César Duque Estrada. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998

ORLANDI, Eni P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes Editores, 2010

Periódico analisado

MELO, Carolina e WESTIN, Ricardo. “Como chegar lá”. Veja, São Paulo: 13 de julho de 2011, p. 116-125 e capa.

Consulta eletrônica

IBGE. Online: Censo 2010: população do Brasil é de 190.732.694 pessoas. Acessado em 18 de julho de 2011

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[Ana Carolina de Oliveira é publicitária, Brasília, DF]