Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A verba dos répteis

Acaba de sair a reedição de um livro muito oportuno: A imprensa e o dever da verdade [Editora Papagaio, 128 páginas], de Rui Barbosa. Constituiu-se originalmente em conferência, publicada pela primeira vez em 1920, quando os direitos autorais foram doados ao Abrigo dos Filhos do Povo, de Salvador, entidade encarregada de dar assistência a crianças pobres. Esta é patrocinada pela Caixa Econômica Federal, tem apresentação do jornalista Gabriel de Barros Nogueira e prefácio do advogado Manuel Affonso Ferreira, ex-Secretário de Estado da Justiça de São Paulo e ex-conselheiro federal da OAB.

O apresentador lembra que a Caixa foi fundada por Dom Pedro II, no Rio, em 12 de janeiro de 1861, e que era na Caixa que os escravos depositavam seus recursos para comprar a liberdade. Diz que tal linha de depósito era mostra da missão social da Caixa…

Já o prefaciador começa aludindo à concepção de que ‘somente as crianças e os loucos dizem a verdade. Por isso, às primeiras se educa; aos segundos, interna-se…’. E segue lembrando o que acontecia em 1920 no Brasil e no mundo. ‘Entre nós, nasciam Celso Furtado, João Cabral de Melo Neto e Anselmo Duarte.’ E os livros de autores nacionais lideravam as vendas, desbancando os franceses, até então imbatíveis, como hoje acontece com os best sellers, quase sempre vindos dos EUA, mas de todo modo sempre traduzidos do inglês.

Em Berlim, os dadaístas, avós de hippies e punks, inauguravam uma feira internacional ‘onde os visitantes entravam por um banheiro e eram recebidos por uma menina que, trajada para a primeira comunhão, recitava poesias obscenas…’. A Rússia legalizava o aborto, Roma canonizava Joana D’Arc e uma enfermeira do exército britânico lançava o primeiro romance policial de uma longa lista que a consagraria, fazendo a narrativa girar em torno de um detetive belga chamado Hercule Poirot, tão pernóstico quanto competente. Nascia literariamente, pois, Agatha Christie. O autor de A imprensa e o dever da verdade perdia pela segunda vez as eleições para a presidência da República e assegurava que elas tinham sido fraudadas.

O que mudou?

Do livro sobressai a verdadeira obsessão que Rui Barbosa tinha por defender a verdade em todos os campos, mas notadamente em dois: na política e na imprensa. ‘O mais inviolável dos deveres do homem público é o dever da verdade’, assegurava Rui Barbosa, para em seguida imprecar contra ‘os vendedores da imprensa ao poder’. Mas o prefaciador faz um alerta: ‘Como tudo na vida, a verdade também tem a sua hora’. Destaca ainda sua ojeriza à ‘impiedade repulsiva’que leva jornalistas, em casos de seqüestro, por exemplo, noticiá-los sem se preocupar com ‘aflitos pedidos de familiares e autoridades’.

O livro de Rui Barbosa gira em torno de conhecido bordão que ele forjou: ‘A imprensa é a vista da Nação’. Continuando com tal metáfora, acha, porém, que ainda é suficiente para reiterar-lhe a importância e diz que é também pulmão: ‘É sobretudo mediante a publicidade que os povos respiram’.

Publicidade é palavra que mudou de sentido, migrando da imprensa, onde significava apenas tornar público um acontecimento ou idéia, para o terreno da propaganda. Rui, apesar do estilo castiço, não deixa de dizer as coisas claramente, mas é sobretudo com os exemplos acrescentados que ele melhor explica a sua conferência, como quando lembra o cinqüentenário da publicação do livro Reptilienfond (A verba dos répteis), da autoria do professor Roland Wuttke (cujo prenome Rui omite), da Universidade de Leipzig, que denunciara a Repartição da Imprensa, criada por Bismark para fazer uma ‘vasta fábrica de opinião pública’, esparramando filiais pelo mundo inteiro. É ali que ele busca os primeiros passos de uma ‘cultura da mentira’, que pelo jeito teve grande futuro no Brasil.

Rui Barbosa conclui sua conferência denunciando administradores que roubam o Tesouro Público para comprar escritores que tinham o dever de embutir na opinião pública o contrário do que sentem, traindo os leitores. Assim procedendo, eram tão ou mais ladrões do aqueles que compravam suas consciências.

O que mudou desde então? O tesoureiro do PT, Delúbio Soares, e o publicitário Marcos Valério são dois emblemas do que Rui Barbosa denunciou. O livro é atualíssimo e em boa hora veio a reedição.