Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A vocação de Bush para a cultura do espetáculo

Quando era candidato republicano à presidência, Ronald Reagan foi perguntado certa vez, numa entrevista, sobre as críticas de que o fato de ser apenas um ator de cinema o desqualificava para o alto cargo. Sua resposta, provavelmente estudada e ensaiada previamente, candidata-se a um lugar na História: “O que não entendo é como alguém que não seja ator possa ser presidente”.


De fato, os presidentes que o sucederam parecem provar que Reagan estava certo. Recomendo a questão ao professor Muniz Sodré, um crítico de mídia convencido de que “somos tomados pela cultura do espetáculo” (a realidade tende a ser espetacularizada, disse ele em entrevista dada neste Observatório; ver “Visões de uma cidade em transe”). Considerem os casos dos sucessores de Reagan – de Bush I (seu vice) a Bush II, atual presidente.


O velho Bush, sem a capacidade histriônica de Reagan, derrotou um democrata também sem talento para o show business (Mike Dukakis, primo de atriz de Hollywood) e fracassou no poder. Ao tentar a reeleição, perdeu para Bill Clinton, cuja vocação para ator permitiu-lhe derrotar depois os republicanos empenhados em derrubá-lo e continuar no palco político, mesmo fora da Casa Branca.


Um implacável crítico de teatro


Pelo menos uma biografia de Bush II (Fortunate Son – George W. Bush and the Making of an American President, de J. H. Hatfield) relatou o fascínio dele, quando ajudava a dirigir a campanha do pai em 1992, com o estilo de Clinton. Neto de senador e filho de presidente, percebia a importância do “teatro” político. E com a ajuda do metteur-en-scène Karl Rove, ganhou o poder. É bom de show business.


Lamento o nariz de cera. A idéia era ir direto ao tema – o lançamento nos EUA do livro The Greatest Story Ever Sold – The Decline and Fall of Truth, From 9/11 to Katrina (A maior história jamais vendida – O declínio e a queda da verdade, do 11/9 ao Katrina). Seu autor, Frank Rich, tinha sido um implacável crítico de teatro mas o New York Times o tornou colunista do teatro da política (e da vida).


Nessa condição, horroriza-se com a conduta dos grandes impérios de mídia, que são ao mesmo tempo corporações de espetáculos e entretenimento. Nelas prevalece o espetáculo, com meios cada vez mais sofisticados de falsificar a realidade. Assim, o tema do corrosivo Rich no livro é a criação de uma falsa realidade, como destacou Ian Buruma ao analisar The Greatest Story Ever Sold.


Enfeita a capa a célebre foto de Bush metido na fantasia de “piloto de guerra” ao desembarcar no porta-aviões Abraham Lincoln. Embaixo, expressões “vendidas” ao país através da mídia: “Mission aAccomplished”, “Shock and Awe”, “Heckuva Job, Brownie” (elogio à trapalhada no Katrina), “Slam Dunk”, “Dead or Alive”, “Bring ‘em on’”, “The Smoking Gun As a Mushroom Cloud” etc.


A realidade fraudada e violentada


O governo Bush, segundo Rich, mentiu consistentemente para “vender” a guerra ao país – e a mídia prestou-se a isso. Buruma descreve, na análise do livro:




“Ela [a mídia] nos contou no fim de 2001 que Dick Cheney garantia estar confirmada a ligação de autoridade iraquiana com Mohamed Atta, terrorista do 11/9. No verão de 2002 Cheney disse que Saddam ‘continuava a desenvolver arma nuclear’ e, sem dúvida, tinha ‘armas de destruição em massa’, além de citar a prova dos ‘tubos de alumínio’ (primeira página do New York Times, através de Judith Miller e M. Gordon) com os quais o Iraque ‘enriquecia o urânio’. O urânio, nos disseram, tinha sido conseguido pelo Iraque em Níger, o que levou o presidente Bush a dizer ao país, em outubro de 2002, que ‘diante dessa clara evidência da ameaça, não precisamos esperar que venha a prova definitiva na forma de um cogumelo atômico sobre o país’”.


Mas hoje se sabe, como destaca o livro, que nem uma só dessas alegações – que constituíram os pretextos oficiais para invadir o Iraque e fazer a guerra – tinha qualquer resquício de verdade. E as desculpas posteriores, de que houve falha de inteligência, foram desmentidas num memorando britânico que à época já dissera francamente: “Foi tudo fabricado para justificar a política decidida antes”.


O memorando britânico, redigido pelo diretor de inteligência de Sua Majestade, era de julho de 2002. Fora feito como informação interna, oficial e factual. Mas o livro de Rich destaca o papel da mídia na “venda” da mentirada toda à opinião pública dos EUA e do mundo. E destaca no esforço um personagem – o jornalista Bob Woodward, do Washington Post.


Como o jornalismo é assassinado


Para Rich, o desempenho de Woodward foi oposto ao de 1972-74 no caso Watergate, que levou Richard Nixon à renúncia. Ele fez dois livros em dois anos – Bush at War (2002) e Plan of Attack (2004). Neles as fontes (mesmo as anônimas) são oficiais, refletem a posição de Bush. Woodward, que conquistara sua reputação com investigações na periferia e críticas ao poder, passou a servir a ele.


Buruma deixa claro que o livro de Rich mostra como, começada a luta, o show business entrou logo em cena. No Afeganistão, um produtor de Hollywood, Jerry Bruckheimer, obteve livre acesso às tropas para fazer série de TV sobre a valentia dos soldados americanos – acesso igual fora negado aos jornalistas, e nem repórteres do Washington Post tiveram permissão para aquela cobertura.


Mais tarde, no Iraque, veio a encenação da estátua de Saddam, depois o caso da soldadinha Jessica Lynch – um pacote fraudulento que o Pentágono entregou à imprensa pronto e acabado. Quem ousou denunciar a fraude sobre Lynch (nem ela própria confirmara) foi rotulado de esquerdista. Mas espetáculo ainda maior foi quando Bush repetiu, no porta-aviões Abraham Lincoln, o Tom Cruise do filme Top Gun.


Convenhamos que Rich tem razão. Só um crítico de teatro para poderia analisar tantos espetáculos, com produção assumida docilmente por uma mídia submissa, que está assassinando o jornalismo.

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Jornalista