Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A voz dos fantasmas da guerrilha do Araguaia

É tudo uma questão de ordem. Ordem dos chefes militares, a começar pelo general de plantão da Presidência da República, Emílio Garrastazu Médici. O ministro do Exército ordenou aos generais comandantes, estes ordenaram aos coronéis, que transmitiram aos capitães, tenentes e sargentos… Uma vez dada a ordem de matar, ela se diluiu na cadeia de comando. Em relação aos dirigentes do PC do B, a cadeia de comando também foi respeitada. O líder máximo, João Amazonas, mandou deflagrar o movimento guerrilheiro, os comandantes na mata cumpriram a ordem, os guerrilheiros acataram com a própria vida.


Quem deu a ordem de matar, torturar, fuzilar pessoas desarmadas, doentes, desnutridas, presas e imobilizadas? Quem não deu a ordem de recuar, poupar vidas, abandonar o quanto antes a frente guerrilheira, por falta de armas, estrutura e retaguarda de apoio? Tanto Médici quanto Amazonas fizeram exatamente a mesma coisa: deram ordens. Médici, de matar sem clemência, sem respeitar qualquer vírgula da Convenção de Genebra. Amazonas, resguardado na cidade, não deu a ordem de recuar. Ambos assumiram que o que menos importava eram as vidas.


Por que não se consegue enterrar os mortos da Guerrilha do Araguaia, sejam militares quanto guerrilheiros? Porque é uma história terrível de ordens, ordens que tranformaram o episódio do Araguaia, de parte dos militares que pretendiam um épico contra um inimigo glorioso, numa chacina, que a consciência obriga a chamar de crime contra a humanidade. E de parte dos líderes do PC do B, que não deram a ordem de retirar os guerrilheiros em segurança, para evitar o massacre, num assassinato coletivo premeditado por omissão, fraqueza e covardia.


Cúmplices e culpados


Os fantasmas estão soltos. Militares há décadas buscam a justificativa, a existência de um inimigo real, mas nada existe. Existem só corpos, miséria, dor, assassinatos. E os dirigentes do PC do B há décadas vivem assombrados e calados sobre o que poderiam ter evitado. Fantasmas de um Brasil covarde, trágico e indigno. Executar prisioneiros é crime. Ordenar a montagem de uma frente guerrilheira com armas enferrujadas, sem zonas de refúgio, recursos financeiros e rotas de abastecimento é crime premeditado.


Este trabalho de Hugo Studart é o primeiro que discute abertamente a linha de comando. Nas conversas que tive com ele notei sua dificuldade para tratar desta questão com suas fontes militares, todos oficiais com responsabilidade de comando no Araguaia. Ele próprio, que pertence a uma família de linhagem militar que vem desde o Império, teve que tomar cuidados para não dividir o trabalho entre militares e inimigos.


Este é um trabalho excepcional entre dois aspectos relevantes: as fontes militares são realmente oficiais de alta patente que tomaram parte na tragédia. Hugo Studart também teve o mérito de fazer essa pesquisa dentro do marco acadêmico, sujeitando-se às suas boas e sensatas regras. Esta pesquisa é também excepcional porque utiliza documentação militar primária, de excelente qualidade historiográfica, como o Dossiê Araguaia, redigido por oficiais de alta patente, detalhando a grande aventura militar de suas vidas. Os documentos do PC do B e dos combatentes são fontes consistentes e muito bem citadas neste trabalho.


Temos um livro sobre o Araguaia que pela primeira vez abriu a porta para o julgamento histórico das responsabilidades de quem massacrou e de quem poderia ter evitado o massacre. Primeiro, as responsabilidades. Depois, devolvam os corpos. Enquanto os militares não devolverem os corpos às famílias – e não ao PC do B – estaremos falando de crimes, nada mais que crimes. E enquanto o PC do B não exigir dos seus inimigos que devolvam os mortos às famílias será tão cúmplice ou culpado quanto os militares. Enterremos os mortos. Eles querem paz.


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O autor


Carlos Hugo Studart Corrêa é jornalista e historiador. Atuou como repórter, editor ou colunista em veículos como Jornal do Brasil, O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo, Veja e Manchete. Colaborou com as revistas Interview, Playboy, Imprensa, República e Primeira Leitura. Ganhou diversos prêmios de jornalismo, como o Prêmio Esso. É organizador e co-autor do livro Os Presidenciáveis: Vida, obra e idéias dos candidatos ao Palácio do Planalto. É mestre em História pela UnB, especializando-se em história cultural e nos estudos do imaginário. Lecionou em instituições educacionais, como a Universidade Católica de Brasília. Atualmente é o editor em Brasília da revista IstoÉ Dinheiro.

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Historiador e pesquisador