Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A história, a curiosidade e a paixão

Existe livro simples e fácil de ler sem sacrificar seu conteúdo, sem caricaturar o tema? Existe – e um dos maiores exemplos é a História da Revolução Francesa, de François Mignet. Foi com ele que deparei aos oito anos, vasculhando a biblioteca da minha tia, Erotildes Pinto Frota Aguiar. Ela era diretora do Grupo Escolar Camilo Salgado, na avenida Roberto Camelier, no Jurunas. Foi lá que fiz a terceira série primária, com o reforço da tia, que morava no quarteirão anterior, do outro lado da rua. Circulava desenvolto pelo bairro, principalmente quando ficava por lá o dia inteiro, com tempo para visitar a casa de amigos (e amigas), a sede do São Domingos (ativa até hoje), a Aldeia do Rádio (da PRC-5, verdadeira caixa de pandora) e a igreja de Santa Terezinha, o centro dinâmico daquele espaço com marca própria.

Moleque curioso, mexia nos livros que iam e voltavam entre a casa da minha tia e o grupo. Escolhida a leitura, sempre me isolava para ler. Não interessava muito o que lia, sem ordem nem lógica. A atração pelo livro de Mignet foi automática, mesmo sendo uma edição portuguesa (nenhuma versão saiu até hoje no Brasil, que eu saiba). Nem estranhei tanto: um dos primeiros livros que li, virando páginas sem obedecer às seqüências, foi o Lello Universal, em cinco volumes, de Portugal, que exerce seu fascínio sobre mim até hoje (pela encadernação primorosa, pelo formato, pelas ilustrações e pela riqueza do léxico). A coleção integrava a bem razoável biblioteca do meu pai, também leitor voraz e anárquico.

Considero a reconstituição de Mignet a melhor que já li, por essa combinação rara de qualidades: simplicidade na construção da obra, fluência na narrativa dos fatos, didatismo na exposição e uma qualidade literária ímpar. Além de tudo, fidelidade aos acontecimentos, sem simplificações arbitrárias. Não há a menor preocupação com os acadêmicos. Não foi para eles que Mignet escreveu a sua história: ela está ao alcance de qualquer leitor, inclusive uma criança.

Reprisei as muito vivias lembranças do passado porque um amigo me ligou para manifestar seu espanto. Ele tinha assistido ao Regatão Cultural, da TV Cultura, que me foi dedicado, no dia 25. Ao fazer a referência à minha leitura de Mignet, o documentário exibiu a imagem de outro livro, o de Thomas Carlyle, uma história de ordem muito diversa sobre a revolução francesa, que só li na maturidade. Se eu tivesse encontrado Carlyle antes de Mignet, certamente não teria lido o livro, que é próprio para adultos, nem meu interesse pela história seria despertado. Essa afinidade precoce se revelaria decisiva, oito anos depois, para o meu ingresso no jornalismo profissional: estreei com um artigo sobre o fim da Segunda Guerra Mundial, encomendado pelo diretor de redação, Cláudio Sá Leal, que foi para a primeira página da edição de 6 de maio de 1966 de A Província do Pará. A semente de Mignet permanece fecunda até hoje.

Só na segunda leitura do livro, alguns anos depois, me dei conta de toda a grandiosidade do enredo e da complexidade da trama, que iria aprofundar ao longo dos anos. Meu conhecimento da revolução era até então por ouvir falar, como se fosse uma lenda. Foi assim também que absorvi as histórias contadas pela Creuza, nossa empregada na Veiga Cabral, que eram – sem ela saber – a reconstituição popular das façanhas de Carlos Magno e os 12 Pares da França, como viria a constatar depois. A matriz do que sei da revolução francesa, devo-a a François Mignet, esquecido nas comemorações do bicentenário, em 1989. A ocasião era propícia para introduzi-lo ao público brasileiro.

Dois anos antes da data floriosa li um dos mais fascinantes livros da bibliografia mundial: as Memórias Imorais, de Serguei Eisenstein. É obra para se ler várias vezes, aproveitando a inesgotável acuidade do cineasta russo, sua sensibilidade fina, seus desenhos, sua amarga experiência. Para mim, uma deliciosa descoberta: a história de Mignet foi o presente de natal que Eisenstein pediu e ganhou quando tinha 12 anos, em 1904, em Moscou. Esse livro lhe proporcionou ‘uma paixão pela Revolução Francesa muito anterior ao passado histórico de seu próprio país’.

O mesmo aconteceu a muitos meninos no Brasil. Não apenas pelo acaso de se defrontarem cedo com um livro tão apaixonante, como o de Mignet: foi também por não disporem de obras equivalentes sobre a história brasileira. Ela nos era ensinada e exibida como um catecismo, um arrolamento de frases feitas e altissonantes, um álbum de fotografias pomposas, sem vida, sem brilho. Só depois de girar pela história universal, com paradas mais demoradas em alguns dos seus episódios, para isso contando com o estímulo de obras fascinantes, é que, em regra, se conseguia retornar à história. Munidos de regras de percepção trazidas de fora, podíamos descobrir o fascínio por uma história que tem, sobre as demais, uma vantagem insuperável: é aquela na qual podemos atuar, fazer, decidir.

O livro sobre a história brasileira que mais me marcou foram os três volumes das cartas de Capistrano de Abreu, lidas bem depois. Devem ser raros os brasileiros que as conhecem. Delas só há duas edições, a segunda, de 1977, pessimamente editada pela Civilização Brasileira (por incrível que possa parecer, em convênio com o Ministério da Educação e Cultura, através do Instituto Nacional do Livro, em plena ditadura militar, que perseguiu o editor Ênio Silveira, um comunista histórico e assumido). É preciso encadernar os três volumes para não destruí-los pelo manuseio: as páginas, mal coladas sobre uma lombada grossa, sacam.

Além desse detalhe, há outra lacuna: a correspondência passiva de Capistrano foi agrupada no 3º volume, quando devia seguir cronologicamente as cartas enviadas pelo historiador para um número expressivo de interlocutores, o que facilitaria a leitura e o acompanhamento dos diálogos. É a mais viva lição de história do Brasil a que vai sendo construída aos poucos por Capistrano nessas cartas. Ocupando 1.500 páginas e abrangendo de 1880 a 1927, quando ele morreu, as cartas compuseram suas obras completas, que são surpreendentemente pouco numerosas: tudo coube em 10 volumes, os outros sete incluindo as quatro séries dos ‘Ensaios e Estudos’, mais o ‘Compêndio de História Colonial’, ‘Caminhos Antigos e Povoamentos do Brasil’ e o ‘Descobrimento do Brasil’.

Aparentemente, esses títulos não poderiam fundamentar o título que arbitrariamente lhe confiro, de o maior historiador brasileiro. Ao ler suas cartas, descobre-se porque sua bibliografia é curta (e densa): ele gastou muito tempo copiando ou mandando copiar documentos originais, lendo-os (naturalmente), fazendo contatos com fontes e amigos, circulando pelo país, escrevendo apresentações e prefácios, e organizando obras dos outros.

Todos os cursos de história do país deviam obrigar seus alunos a ler a correspondência de Capistrano, que equivale ao melhor treinamento para a formação de historiadores. Aprenderiam a dar menos importância aos intérpretes e mais às fontes primárias, aos arquivos e museus. Seriam treinados a ler esses documentos e a tirar-lhes tudo que podem render para o esclarecimento das dúvidas, a precisão dos detalhes e a reconstituição da história viva, aquela que nos fez lamentar o desperdício de tantos talentos reunidos durante a revolução francesa (como na revolução russa e em todas as revoluções precisamente relatadas e definidas enquanto tal) e até sentir as dores de Maria Antonieta sob a guilhotina.

Esta história viva, Mignet incutiu em milhares de pessoas ao redor do mundo, independentemente de tantas e tão profundas diferenças entre elas, morem em Belém ou em Moscou, em 1904 ou 1957. Plantou em suas cabeças uma busca do conhecimento que as moveria por todas as suas vidas, irradiando-se para o coração, o órgão desencadeador das paixões, sem as quais a obra humana jamais será demasiadamente humana, como tem que ser.

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Jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)