Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Agora em edição fac-similar

O semanário liberal Diabo Coxo, que circulou na acanhada cidade de São Paulo de 1864 a 1865, do qual existe apenas uma coleção original e completa na Biblioteca Municipal Mário de Andrade (São Paulo, SP), está agora ao alcance do público em edição fac-similar da Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), que dá início à coleção Ad Litteram: São Paulo em fac-símile, idealizada para publicar livros, folhetos e periódicos de épocas distintas da História paulista, mas que hoje são de difícil acesso.

Fundado por Luís Gama (1830-1886), o Diabo Coxo é o decano da imprensa de humor de São Paulo e divertiu muito seus leitores com as ilustrações do italiano Ângelo Agostini, a uma época em que o acesso a imagens, ou seja, a gravuras, pinturas e quadros, era privilégio das classes abastadas. A São Paulo que sorriu com as diatribes do Diabo Coxo era uma cidade extremamente provinciana e modorrenta em que as atividades culturais eram escassas e, na maior parte das vezes, partiam dos sempre agitados alunos da Faculdade de Direito.

Como lembra o professor Antonio Luiz Cagnin, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, autor da introdução desta edição fac-similar, São Paulo tinha por esse tempo pouco mais de 20 mil habitantes e seus limites estreitos não iam além da rua da Constituição, hoje Florêncio de Abreu, da rua das Freiras, depois Senador Feijó, e da descida do Acu, depois ladeira de São João. O resto eram chácaras, várzeas e campos por entre os rios Pinheiros e Tietê, ambos de águas muito límpidas.

Imprensa caricata

A essa época, os transportes também eram precários. Uma viagem a Santos podia levar de um a dois dias, pelo tortuoso caminho de Anchieta. E de Santos para chegar à Corte seriam mais de dezoito horas de vapor. A um lugar assim tão distante é claro que as notícias demoravam para chegar. E, quando chegavam, era sempre com atraso. Por isso, quando o Diabo Coxo surgiu foi saudado até pelo sisudo Correio Paulistano, órgão máximo das classes conservadoras e, então, órgão oficial do governo, pois só em 1869 passaria para os liberais, sob influência de Américo de Campos.

Cagnin lembra, em seu estudo, que o Diabo Coxo só foi possível graças à habilidade de Agostini, jovem pintor e litógrafo formado em Paris, que chegara à cidade um ano antes, e à Tipografia Alemã, de Henrique Schröder. ‘A litografia representou para a São Paulo de então, como aliás para o mundo todo, mais um passo importante em direção à modernidade e ao aperfeiçoamento da comunicação visual’, diz Cagnin, lembrando que a litografia democratizou a imagem, tornando-a popular.

Por que Diabo Coxo? Cagnin aventa muitas possibilidades para esse título, aparentemente, um tanto estranho para um jornal domingueiro de caricaturas. E cita o famoso livro El Diablo Cojuelo (1641), do espanhol Luís Vélez de Guevara, e ainda Le Diable Boiteux (1707), do francês Alain René Lésage, famoso por suas fábulas. Por sinal, este livro de Lésage conta a história de um diabo coxo, preso numa garrafa, que, liberto por um estudante, concede ao jovem o poder de ver através das paredes.

Por isso, é provável que tenha inspirado Luís Gama, que logo no primeiro número colocou estas palavras na boca do seu diabo: ‘A imprensa, maior inimiga dos maus, é a única força que encontro na terra para desmascarar a esses entes criminosos ou ridículos estúpidos ou orgulhosos’. Hoje, 140 anos depois, ainda é a imprensa quem desmascara os arrombadores de cofres públicos.

É de lembrar que na imprensa francesa, espanhola e portuguesa, sempre houve a tradição de periódicos que fazem referência ao diabo em seus títulos, como mostra a extensa lista preparada pelo professor Cagnin, especialista no gênero da imprensa caricata. Em Lisboa, já circulou outro Diabo Coxo e. ainda hoje, há o semanário O Diabo, de tendência direitista.

Boa notícia

O Diabo Coxo, de Luís Gama e Agostini, é um jornal pequeno, de 18 x 26 cm, com apenas oito páginas, quatro de ilustrações e quatro de textos (artigos, anedotadas, notícias, críticas, adivinhações etc). Os textos eram escritos não só por Luís Gama, ardoroso abolicionista, mas também por Sizenando Barreto Nabuco de Araújo (1842-1892), irmão de Joaquim Nabuco, embaixador e amigo dileto de Machado de Assis.

Do Diabo Coxo publicaram-se duas séries de doze números cada. Os da primeira série não trazem a data de edição, mas o professor Cagnin, depois de paciente pesquisa, comprovou que o primeiro número foi dado à luz a 2 de outubro de 1864. A série encerrou-se a 25 de dezembro. A segunda série foi de 23 de julho de 1865 a 31 de dezembro do mesmo ano. E contou com a colaboração de Nicolau Huascar Vergara, pintor que depois, em 1867, ilustrou o semanário humorístico O Polichinello, também de Luís Gama.

O professor Cagnin não só escreveu a introdução desta edição fac-similar do Diabo Coxo como teve participação decisiva na preservação de sua história, ao convencer, em 1996, a Secretaria Municipal de Cultura a pagar 10 mil dólares a um colecionador pela coleção completa do jornal. Quando se sabe o quanto é difícil o poder público investir em cultura e, ainda mais, em livros raros – atividade que não rende votos nem dá visibilidade aos políticos –, esse é um fato auspicioso, pois, desde então, o interessado na história da imprensa pôde consultá-la na Biblioteca Mário de Andrade.

Quando se sabe também que daqui a três anos, estaremos comemorando o bicentenário da imprensa brasileira, pois em 1808 foi fundada a Impressão Régia por ordem de príncipe regente dom João, a publicação em fac-símile do Diabo Coxo constitui uma excepcional notícia.

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Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003)