Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

As coisas findas podem ser lindas

‘Amar o perdido/ deixa confundido este coração./ Nada pode o olvido/ contra o sem sentido apelo do Não./ As coisas tangíveis/ tornam-se insensíveis/ à palma da mão./ Mas as coisas findas/ muito mais que lindas/ essas ficarão’.

Prezados leitores, esta é a última coluna do ano. Comecei com uns versos de Carlos Drummond de Andrade: assim, se não escrever nada que preste hoje, vocês ficarão com a poesia dele, um dos maiores poetas do século. Drummond só não ganhou o Nobel porque escrevia em português e esta língua é pouco lida no mundo. É língua oficial na Europa, na África e na América, com cerca de 300 milhões de falantes, mas é oficial em países que lêem pouco, que produziram grandes escritores, infelizmente com obras pouco traduzidas nos latins do império, como o inglês, o francês e o espanhol.

Poetas sem a expressão de Drummond, de vários países e línguas, foram agraciados, mas os velhinhos do Nobel se esqueceram de Drummond, de Jorge Amado, de Erico Verissimo. Os brasileiros também se esqueceram, mas este é outro problema: os brasileiros se esquecem de tudo.

De corpo e certidão

Almoçando com Rubem Fonseca, agora em dezembro, no Rio, ele me contou uma história curiosa. Certo dia, sabedor de que os dois maiores escritores do Brasil eram mineiros e moravam no Rio, procurou os conterrâneos para um almoço.

Lá foram os três. Rubem esperava uma conversa inesquecível, literária. João Guimarães Rosa, menos tímido, quebrou o gelo: ‘Esta cervejinha Ouro Branco, lá de Minas, é muito boa, viu? Vamos tomar uma?’. E Drummond: ‘Boa, boa mesmo a Ouro Branco, muito boa’.

A conversa seguiu nesse tom o almoço inteiro. Drummond e Rubem, espadas convictos, proseando com um colega que deixou indícios gueis em Grande Sertão: Veredas. Diadorim é homem o tempo todo. O tempo todo Riobaldo está apaixonado por um homem. Mas ele não soube ser inventivo o bastante para sustentar isso e no fim do romance revela que Diadorim era Deodorina, mulher vestida de jagunço.

Além da prova do corpo – depois da luta final, a mulher que vai lavar os cadáveres, ao abrir o jaleco de Diadorim, vê que é mulher – o narrador vai buscar uma prova documental: a certidão de batismo de ‘Maria Deodorina da Fé Bittencourt Marins, que nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo’.

Leve e bonito!

A prosa poética de Guimarães Rosa tem trechos lindos como este:

‘As ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas e touros, batendo com as caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros, estralos de guampas, estrondos e baques, e o berro queixoso do gado junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudade dos campos, querência dos pastos de lá do sertão…’

Experimentem ler este último trecho em voz alta: o autor colocou vírgulas, metrificou a prosa etc., tudo para que as frases parecessem versos.

Talvez o Nobel para nossas letras venha em 2007. Estão quotados Rubem Fonseca e Nélida Piñon, entre outros. Os dois já obtiveram grandes prêmios internacionais, portas para o Nobel.

A mídia poderia ajudar mais os escritores brasileiros, não ocultando os defeitos de seus livros, mas reconhecendo suas obras, examinando-as, abrindo-lhes espaço. Nunca será demais lembrar que a maior revista do país, a Veja, faz de conta que os escritores não existem, que não têm obras, que não escrevem, muito embora o Brasil lance escritores novos praticamente todos os dias.

E aqui termino a última coluna do ano na companhia de vocês. Como diz Rubem Fonseca, ‘nada temos a temer, exceto as palavras’.

Que 2007 nos seja leve e bonito!

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Escritor, doutor em Letras pela USP, professor da Universidade Estácio de Sá, onde dirige o Instituto da Palavra; www.deonisio.com.br