Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

As formigas e as cigarras do Palocci

Sobre formigas e cigarras – este é o título do terceiro livro que o ex-ministro Antônio Palocci publica. Os anteriores foram Dando a volta por cima e Reforma do Estado e os municípios, que abordaram sua experiência como prefeito de Ribeirão Preto, onde deixou pelo menos duas marcas indeléveis de bom administrador: em seu governo foi criado o Instituto Municipal do Livro e a Feira do Livro, há alguns anos já a maior do interior do Brasil. Quantos prefeitos fizeram coisas semelhantes? Poucos. Mas mudanças sérias não podem ser feitas sem cultura. E ele foi muito bom nisso, como tantos sabem.

Nossa mídia, porém, tem o triste costume de satanizar pessoas e distribuir penas perpétuas. O PT, partido de que Palocci é um dos quadros mais renomados, tem sido useiro e vezeiro nesse tipo de procedimentos, no varejo e no atacado, em grande e pequena escala, utilizando-se para isso daquelas figuras que Jorge Luís Borges denominou ‘pequenos próceres’, uma contradição em termos, pois procer em latim é barrote, viga, e, por metáfora, passou a designar pessoas muito influentes.

Elevados a cargos por obra de contextos específicos que desejam mudança, ‘pequenos próceres’ trataram de excluir, às vezes com muita ingratidão e sem ética alguma, companheiros de jornada que foram importantes na obtenção do lugar a que chegaram, mediante um vale-tudo de práticas abomináveis.

Em muitos casos os feitiços voltaram-se contra os feiticeiros, e o PT foi dizimado de quadros importantes, enquanto outros patinaram onde estavam. Emergirão desse estado somente aqueles que tiverem a capacidade de autocrítica, o que não é freqüente em agremiações políticas. Num romance de Jorge Semprún, dá-se um diálogo divertido: um companheiro, vendo que o outro não reconhece os próprios erros, oferece-se para fazer a sua autocrítica.

Poder de fogo

Palocci, médico de formação, assumiu o Ministério da Fazenda, o mais importante do primeiro governo do presidente Lula. Não tinha experiência alguma na economia. O dólar estava a 3,52 reais, a inflação em 12,53% ao ano e o risco-país alcançara 1.435 pontos, indicando que os capitais se preparavam para a fuga.

Ele virou o jogo, abatendo em cerca de mil pontos o risco-país, numa política que aumentou o consumo sem prejudicar as exportações, além de reduzir e controlar a inflação. Sua principal dificuldade não eram os notórios adversários de sempre, mas o ‘fogo amigo’ do próprio PT. Terá contribuído para o sucesso da gestão o jeito interiorano de Palocci.

Sua estrela começa a cair em agosto de 2005, quando o Ministério Público de São Paulo, depois de ter, com autorização judicial, gravado os telefonemas do advogado Rogério Buratti, que tinha sido secretário de Governo do prefeito Palocci entre 1993 e 1994, aperta o cerco e leva o ex-secretário à prisão.

O que deveria ser um procedimento lícito, pois as escutas eram autorizadas, tornou-se uma arma de raro poder de fogo nas mãos da oposição, via mídia. Os repórteres eram brindados com materiais sigilosos e o acusado tomava conhecimento, pela mídia, de que estava envolvido em graves denúncias. Esta estratégia tinha sido muito útil ao PT na derrubada dos adversários, mas agora grandes e pequenos próceres bebiam do veneno que tinham distribuído.

Sem cortes

Antônio Palocci não evita esse tema e outros, talvez ainda mais espinhosos. Até a Feira do Livro que ele criou foi parar na Justiça, onde os processos foram arquivados.

Mas o que derrubou Palocci foi a quebra do sigilo do caseiro Francenildo dos Santos Costa. O desfecho: ‘Após três anos e 86 dias, eu deixava o governo’. Escreve, ipsis litteris, à pág. 226 o que disse ao presidente Lula antes de sair:

‘Reafirmei que não tinha responsabilidade direta no caso, já que não ordenara a quebra do sigilo e tampouco autorizara o vazamento de dados referentes a qualquer pessoa enquanto estive à frente do Ministério da Fazenda. Mas que tendo o fato ocorrido em uma área sob minha responsabilidade, me sentia politicamente responsável e teria, portanto, que pagar o preço político’.

É um livro que vale a pena ler. O autor poderá ser questionado de todos os mirantes, mas agora com a condição sine qua non para o leitor fazer seu julgamento: o acusado foi ouvido, não foi pautado, suas declarações não foram cortadas por editor nenhum. O que ele escreveu, está escrito.

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Escritor, doutor em Letras pela USP, professor da Universidade Estácio de Sá, onde dirige o Instituto da Palavra; www.deonisio.com.br