Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

As memórias de um mestre do jornalismo

A oralidade, na literatura, muitas vezes supera a escrita tradicional em graça e estilo. Posso dizer também que os melhores tribunos parlamentares sob a Carta de 46 eram aqueles que não faziam discursos escritos, como os notáveis improvisadores Paulo Pinheiro Chagas, Aliomar Baleeiro, Vieira de Mello, Carlos Lacerda, Afonso Arinos. Eles bordavam com palavras de ouro as cachoeiras que despencavam das altas montanhas de seus intelectos. Na translação para o diário oficial, a taquigrafia da Câmara poderia nem ser alterada, tal a correção literária com que os improvisos eram pronunciados. Vejam a qualidade intelectual dos oradores de ontem. Todavia, o que me interessa falar aqui é de literatura; e é da melhor literatura confessional que vou falar.

O Pedro Nava do Baú de ossos (e outros mais) foi um mestre em burilar a escrita em seus livros de memórias. O citado grande tribuno Afonso Arinos, não tivesse ele raízes na mineração de Paracatu, garimpava, como quem procura pepitas douro, as preciosidades do idioma ao escrever suas obras confessionais (Alma do Tempo, A Escalada). Cito dois admiráveis memorialistas para por ao lado deles um novato, que nos chegou este ano e que se matricula na outra escola, a escola da oralidade escrita que não perde o brilho, antes realça em graça, leveza, estilo. Falo do eminente jornalista político Fernando Pedreira. Ele escreve falando. Seu livro Entre a lagoa e o mar (Editora Bem-Te-Vi, 409 páginas, 2016), vem nos encher de alegria com sua literatura confessional nestes dias, semanas e meses em que a mídia nos bombardeia com as atividades mal-cheirosas de servidores públicos, empresários e políticos e com as atuações circenses dos que investigam o pântano brasileiro. Aos 90 anos bem vividos, bem casado, com a saúde em dia no Alto Leblon, Pedreira realizou em seu belo livro um precioso caleidoscópio do século 20 brasileiro e internacional, porque o autor é um cidadão do mundo, tendo residido em Praga, Nova York e Paris, como jornalista e diplomata.

Foto divulgação

Foto divulgação

Entre a lagoa Rodrigo de Freitas e o mar de Copacabana, eis a geografia sentimental a que se propôs Pedreira a percorrer, para daí surgir suas reminiscências de infância, juventude e um pouco de sua maturidade. Mas a excelente oralidade do escritor o faz realizar aquilo que os críticos de antigamente chamavam de vol d’oiseau. Como o bem-te-vi símbolo de sua editora, Pedreira pula de galho em galho, bicando sem muita minudência os temas que emergem em seu vôo solitário; e também sem voar em ordem cronológica – o passarinho não começa na galhada de baixo e vai pulando até as grimpas. Ele não sistematiza. Deixa a vida me levar, cantarolou outro dia o poeta da música carioca preferido dos ronaldinhos do Maracanã e os do estádio do Barcelona. Ora, o Pedreira nos põe no Rio, mas no parágrafo seguinte o passarinho nos leva para a Europa ou para o atual reduto da alta classe média paulistana, o Itaim-Bibi, ao tempo (1950) em que havia ali ruas de terra batida e casinhas aconchegantes em que o proprietário poderia muito bem ser um motorneiro de bonde. Veja só como São Paulo cresceu urbanisticamente e como o Brasil se proletarizou em algumas dezenas de anos! Cobrador de ônibus tinha casa bonitinha no Itaim. Fala sério! É de veras, amigo leitor.

Adversários irreconciliáveis e sócios

Mas o Brasil mudou, sim, às vezes para melhor. Hoje, do proletário do Bolsa Família ao maioral da lista brasileira da Forbes, todos temos responsabilidade fiscal. No entanto, acredite, no final de década de 1950 um dos mais famosos e ricos banqueiros do país não tinha CPF! Como disse? Repita, por favor! Não tinha CPF o doutor Gastão Vidigal. Não minto, corram ao livro do Fernando Pedreira. Essas e outras transformações fundamentais na sociedade brasileira não escapam das precisas confissões postas dentro do caleidoscópio colorido de Entre a lagoa e o mar.

A aparente desorganização cronológica e geográfica do livro de Pedreira dá um sabor delicioso, como o das mangas de sua infância. Diversas espécies de mangas, no quintal da casa feliz do Corte de Cantagalo, cujo topo da grande pedra o menino Fernando explorava qual um personagem aventureiro dos livros da Coleção Terra, Mar e Ar que toda a meninada dos anos 30, 40 e 50 lia com sofreguidão. Na pracinha do Corpo de Bombeiros, desfilam os amigos e amigas que se tornarão gente importante ou que sumiram no tsunami da vida, mas nem por isso são menos interessantes. Há bons retratos psicológicos; e, como sou botafoguense, destaco o do treinador João Saldanha, apelidado pela mídia de “João sem medo”. Voyeurs de todo o mundo, uni-vos! Ides espiar a página do Pedreira. O João, comunista de carteirinha como todos sabemos, seguidor fiel das ordens de Stalin, e que não temia brandir um revólver para matar o goleiro Manga por fato de somenos importância, levou uma chifrada monumental, e, ó: ficou pianinho, pianinho… Nome e sobrenome, onde e quando, está tudo lá nas reminiscências de Fernando Pedreira, o futuro exato repórter que, aos 14 anos, jogava sinuca a dinheiro numa distinta arapuca da rua Miguel Lemos, tendo como adversário o moço Saldanha, já casado. O líder comunista não era tão bom de taco; Fernando, o menino, era o campeão do pedaço, com reconhecimento público, do Leme ao Posto 6. Ô tempo bom! Mas o autor não é dado a nostalgias; ele é repórter; ele reporta, com humor, com encantamento, com energia, com amor, com subversão. Com informação. Uma delas: quando diretor de redação do Jornal do Brasil, seu salário era em parte pago com dinheiro vivo dentro de um saco de compras que um contínuo do doutor Nascimento Britto entregava com todo respeito. Com o mesmo respeito do diretor do Diário de São Paulo ao entregar grana viva para o governador do “rouba, mas faz”. Uma coisa inédita, pois a operação contrária sempre foi a usual.

Fernando Pedreira residiu alguns anos em Brasília, nos primórdios da capital, exercendo a chefia da sucursal do jornal O Estado de S. Paulo. Foi não só comentarista da cena política; foi testemunha ocular. Para quem não ficou cansado do mau cheiro que vem de Curitiba, pode ler no livro de Pedreira casos esquecidos de antigos propinodutos, como aquele que irrigou com imensas quantias de dinheiro vivo a manobra política conhecida como a “dobradinha Jan-Jan”. Tal e qual ocorria agora na seção da empreiteira que cuidava dos pagamentos da Lava Jato, a organização mafiosa Jan-Jan tinha escritório na rua Barão de Itapetininga, em São Paulo. Para o leitor jovem, esclareço: Jan de Jânio Quadros e Jan de Jango Goulart, os dois adversários irreconciliáveis que foram sócios secretos no pleito de 1960 que os elegeu presidente e vice-presidente da República. Fernando Pedreira deixa claro que são eles, em primeira análise, responsáveis diretos pelas desgraças que infelicitam o Brasil de lá para cá.

Bem, entrou por uma porta e saiu pela outra. Quem quiser saber mais, vai comprar o livro do Fernando Pedreira. É excelente. Graça, estilo, beleza na escrita oralizada. E ele promete um segundo volume. Alvíssaras!

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Pedro Rogério Moreira é jornalista e sócio da Gracián Telecom – Comunicação para telecomunicações