Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

As mudanças conjunturais da comunicação

Trabalho elaborado para o I Simpósio Nacional de Jornalismo Científico, Universidade Estadual do Norte Fluminense, Campos de Goytacazes, RJ, 26 de novembro de 2009

1. O modelo deficitário da divulgação científica

Em seu livro Conhecimento Público, de 1968, o físico britânico John Ziman (1925-2005) destacou que a ciência moderna teve início pouco depois do surgimento da imprensa.1 Não a imprensa no sentido mais estrito e hoje predominante do jornalismo, mas no sentido da impressão, da invenção gutemberguiana que no século XV rompeu definitivamente o círculo fechado em torno do conhecimento escrito. A partir desse novo e revolucionário recurso, a recém-nascida ciência moderna não poderia ter deixado de se estruturar em função dele. Muito mais do que ser registrado, o conhecimento científico tinha de ser comunicado. Centenas de anos depois, já no final do século XIX, os cientistas já haviam consolidado entre si a comunicação por meio de publicações destinadas a especialistas, ao passo que o jornalismo já se tornara uma atividade empresarial voltada para o público em geral.

Em meio aos profissionais das diversas especialidades jornalísticas, os repórteres de ciência consolidam sua imagem, já no início do século XX, de tradutores da linguagem especializada dos cientistas, cada vez mais inacessível para os leigos. ‘Verdadeiros descendentes de Prometeu, os escritores de ciência pegam o fogo do Olimpo científico — os laboratórios e as universidades — e de lá o trazem para baixo, para o povo’, disse William Laurance, jornalista do The New York Times.2 Essa criativa metáfora ressalta no imaginário da sociedade não só a distância entre o discurso científico e a linguagem comum, mas também a posição dos cientistas como deuses, acima dos ‘mortais’.

Essa visão ‘prometéica’ do jornalismo na área de ciência e tecnologia (C&T) passou a ser amplamente criticada por estudiosos da divulgação científica a partir dos anos 80. Rotulada como ‘modelo difusionista linear’ ou ‘modelo do déficit’, essa concepção tem as seguintes características, como bem resumiu Yurij Castelfranchi:

** a ciência é pensada (conscientemente ou não) como em certa medida autônoma em relação ao resto da sociedade, e ‘impermeável’;

** o público é visto como massa homogênea e passiva de pessoas caracterizadas por déficits, falhas, buracos cognitivos e informativos que devem ser preenchidos por uma espécie de transmissão de tipo ‘inoculador’; e

** o processo comunicativo é tratado como substancialmente unidirecional, linear, ‘top-down’: do complexo para o simples, de quem sabe para quem ignora, de quem produz conteúdos para quem é uma tabula rasa científica. A comunicação de C&T para o ‘público leigo’ é, então, uma operação de simplificação em que, no caminho entre a ciência e a cabeça das pessoas, muita informação é sacrificada ou perdida, por causa da banalização operada pelo comunicador ou por uma parcial incompreensão devido às falhas culturais do receptor. 3

É consenso entre vários estudos que essa é uma concepção ultrapassada de divulgação da ciência, e para ela foram propostos modelos alternativos, como o contextual, o do conhecimento leigo e o democrático ou da participação pública.4 De um modo geral, no plano do ensino de graduação do jornalismo, prevalece o objetivo pedagógico de substituí-la por meio de uma prática jornalística ancorada na contextualização das atividades científicas, destacando seus problemas, seus métodos e seus aspectos históricos, sociológicos e filosóficos.

2. Animador de torcida ou cão de guarda?

A convicção de tantos de especialistas de que o modelo deficitário de divulgação científica é uma visão ultrapassada pouco ultrapassou, porém, o mundo acadêmico onde ela foi construída. Todos esses estudos parecem terem surtido pouquíssimos efeitos na prática do jornalismo na área de C&T, uma vez que nela persiste hegemonicamente esse modelo teoricamente superado. No entanto, vale ressaltar que menos freqüentes entre essas críticas acadêmicas são aquelas que ressaltam dois aspectos essenciais em relação ao jornalismo: o compromisso com a sociedade e a independência em relação às fontes. Castelfranchi, por exemplo, baseando-se em um dos mais recentes relatos sobre a situação da imprensa norte-americana em relação à sua credibilidade,5 destacou que a função do jornalista não é apenas entreter, informar e educar:

É também a de ser ‘um ‘cão de guarda da sociedade’ capaz de latir para denunciar práticas incorretas e abusos, para ‘catalisar’ um debate informado e são sobre questões éticas levantadas por práticas científicas ou por aplicações tecnológicas, para colocar nas pautas de debates públicos potenciais desencadeamentos suspeitos ou ameaçadores no sistema de C&T ou em suas ligações com o sistema político, o aparato militar ou o mercado.6

Desse modo, o papel passivo e de tabula rasa apontado como característica da sociedade no modelo do déficit da divulgação científica aplica-se também, em certa medida, a grande parte dos jornalistas que cobrem C&T, uma vez que seu papel mediador é também o de uma instância’deficitária’ no fluxo vertical da informação. E isso se deve não só à omissão no plano da contextualização das notícias de ciência, mas também à falta de independência e de compromisso com a sociedade. Estes dois últimos aspectos são, no entanto, freqüentemente ressaltados por aqueles que atuam tanto no estudo da divulgação científica como na prática jornalística, como Martha San Juan França:

Enquanto repórteres de política e economia freqüentemente vão além dos releases oficiais para comprovar a veracidade das notícias, os colegas de ciência se contentam com a informação autorizada, os papers (relatórios científicos), entrevistas coletivas e revistas especializadas. Enquanto as notícias de outras áreas são normalmente objeto de crítica, a ciência e a tecnologia são poupadas – até que ocorram acidentes trágicos. Se bons jornalistas são reconhecidos – e temidos – por suas análises críticas, no caso de ciência, a investigação e a crítica costumam passar longe.7

Herdeira direta dos ideais da Revolução Francesa e da modernidade, a função de cão de guarda (‘watchdog) presente nos códigos de deontologia jornalística de diversos países não tem encontrado correspondência na maior parte da cobertura de C&T. Para muitos dos jornalistas que atuam na área, assim como para os que dirigem as redações, as reportagens de ciência precisam ser bonitas, agradáveis e principalmente instrutivas, ressaltou França. ‘É como se os assuntos de ciência, tecnologia, saúde e meio ambiente não envolvessem polêmicas.’8 Essa crítica mais aguda ao modelo deficitário foi apontada também pela jornalista Mônica Teixeira em termos muito taxativos, mas bem adequados para apontar uma tendência:

Não há contraditório na cobertura de ciência. Dispensamos o jornalismo sobre ciência de cumprir o mandamento que interdita a matéria feita a partir de uma única fonte porque entendemos que não há versões de verdade quando se trata de ciência. Compartilhamos e cultivamos, ao longo da modernidade, a crença de que a ciência não comporta versões, dado ser a ciência justamente o método mais perfeito desenvolvido pelo homem para a apreensão da verdade sobre tudo no mundo passível de ser tomado como objeto desse método. Não há contraditório na cobertura de ciência porque não há contraditório possível para a ciência. 9

Essa tendência do jornalismo científico foi duramente criticada no editorial ‘Cheerleader or watchdog?’, publicado em junho deste ano pela revista Nature.10 E foi devidamente identificada no Brasil em um estudo de grande envergadura realizado pela Fundação para o Desenvolvimento da Pesquisa (Fundep), vinculada à Universidade Federal de Minas Gerais, em parceria com a Agência Nacional de Direitos da Infância (Andi). A pesquisa se baseou nas matérias sobre ciência publicadas durante 2007 e 2008 por 62 jornais diários brasileiros, descartados os textos com menos de 500 caracteres. Nas 2.599 reportagens, colunas, artigos, editoriais e entrevistas selecionadas e analisadas – 1.394 matérias de 2007 e 1.205 de 2008 –, em cerca de 55% dos textos, apenas uma única fonte é explicitamente indicada no conteúdo da notícia (55,9% em 2007 e 54,4% em 2008). No entanto, mesmo nas matérias com mais de uma fonte mencionada, apenas 10,6% apresentaram opiniões divergentes. Entre as divergências apresentadas, 54,7% são de ordem técnica.11

3. Percepção pública da ciência

Apesar de a afirmação de que ‘não há contraditório na ciência’ ser uma explanação intencionalmente caricatural, ela mostra uma imagem que corresponde em grande parte à percepção pública sobre a importância da pesquisa científica e tecnológica para a vida humana. É o que mostrou uma pesquisa de âmbito nacional realizada pelo Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) em 2007. 12

Nesse levantamento, a comunidade acadêmica foi o grupo melhor avaliado em relação ao aspecto da credibilidade pública: apenas 2% dos entrevistados escolheram ‘cientistas que trabalham em universidades’ como resposta à pergunta ‘Se você desejar receber informações sobre algum assunto importante para você e para a sociedade, quem te inspira menor confiança como fonte de informações?’ 13

Essa mesma pesquisa destacou a importância dada pelos entrevistados à ciência, uma vez que 70% deles optaram pela resposta ‘concordo totalmente’ e outros 21% por ‘concordo em parte’ com a afirmação ‘As empresas privadas brasileiras devem investir mais na pesquisa científica e tecnológica’. Em relação à asserção ‘Os governos devem aumentar os recursos que destinam à pesquisa científica e tecnológica’, 68% das pessoas consultadas optaram por ‘concordo totalmente’ e outras 21% por ‘concordo em parte’.

A essa demonstração de importância correspondeu, porém, uma expectativa geral de cautela em relação aos limites da ciência em relação aos problemas sociais, dado o resultado referente à afirmação ‘O desenvolvimento científico e tecnológico levará a uma diminuição das desigualdades sociais’: 26% concordaram ‘plenamente’ e 32%, ‘em parte’.

Entendido como o conjunto de imagens, expectativas e valorações sobre a ciência e a tecnologia como instituição, instrumento de ação, fonte do saber e da verdade e grupo humano ou social com uma função específica,14 esse imaginário social da ciência apontado no Brasil pelo estudo do MCT corresponde aos resultados de diversas pesquisas de opinião pública estrangeiras. É o caso dos levantamentos bianuais da Fundação Nacional da Ciência,15 nos Estados Unidos, a européia Eurobarometer,16 assim como a pesquisa realizada em 2003 alguns países latinos, entre eles o Brasil.17

No plano da retórica política, esse imaginário tem sido muitas vezes exaltado em relação às expectativas da ciência. Foi o caso do discurso do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, ao assumir seu cargo em 20 de janeiro deste ano, no qual ele prometeu:

Vamos restaurar a ciência ao seu lugar de direito e empregar as maravilhas da tecnologia para elevar a qualidade da saúde e reduzir seus custos. Vamos atrelar o sol, os ventos e o solo para proverem combustível para nossos carros e nossas fábricas. E vamos transformar nossas escolas, nossas faculdades e universidades para que façam frente às demandas de uma nova era. Tudo isso nós podemos fazer. E tudo isso nós vamos fazer. 18

4. Conseqüências no jornalismo diário

Os cientistas, no entanto, sabem que as conclusões de suas pesquisas não são definitivas. Sabem também que grande parte de seus trabalhos envolve diferenças de interpretações, e geralmente os bons papers fazem menção a trabalhos baseados em visões conflitantes com a do autor. Mas raros são os jornalistas que lidam com artigos publicados em periódicos científicos e têm condições de identificar outras fontes que possam oferecer versões diferentes e até mesmo divergentes da pesquisa que é o tema central de sua reportagem.

No jornalismo diário, as fontes primárias das reportagens de ciência de maior repercussão —aquelas que apresentam descobertas ou inovações dos países mais desenvolvidos — são geralmente as agências internacionais de notícias e serviços de divulgação de instituições de pesquisa. Na maior parte das vezes, esse material acaba sendo reproduzido ou copidescado, dando seqüência ao fluxo vertical do modelo deficitário da divulgação científica.

Poucas são as iniciativas editoriais de interferir nesse processo, inclusive por meio de entrevistas com outros pesquisadores da mesma área de especialidade do tema em pauta. No mais das vezes, essas outras fontes são procuradas para ‘repercutir’ a notícia, quase sempre descartando de antemão a possibilidade de esses contatos colocarem em xeque os pressupostos que justificaram sua escolha como pauta.

No Brasil, a velocidade desse fluxo ‘top-down’ é agravada na cobertura diária de ciência devido ao fato de o fuso das principais cidades do país ser duas horas adiantado em relação a uma das regiões mais importantes do mundo como origem das notícias de ciência. É a Costa Leste dos Estados Unidos, onde estão localizados o MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), os NIH (Institutos Nacionais de Saúde) e importantes universidades, como Harvard, Yale, Princeton, Chicago, Cornell, Columbia, Johns Hopkins e outras. E nosso fuso é cinco horas adiantado ao de outra região importante, que é a Costa Oeste, onde estão o Caltech (Instituto de Tecnologia da Califórnia) e as universidades Stanford e de Berkeley, Los Angeles e San Diego.

Qualquer anúncio feito à tarde nessas localidades deixa a maior parte das redações brasileiras em dificuldades na corrida contra o tempo. Há que se ressaltar, no entanto, que as poucas equipes especializadas na cobertura de C&T superam satisfatoriamente esses contratempos, seja devido à sua desenvoltura e ao amplo conhecimento de fontes nessa área, seja porque muitas vezes estão informados com antecedência sobre essas divulgações.

5. Os periódicos científicos e a imprensa

De um modo nem sempre consciente, o critério adotado pela maior parte da cobertura jornalística de C&T para assegurar confiabilidade de suas notícias tem sido nas últimas décadas o princípio de exigência do endosso de comitês científicos independentes. Em termos práticos, isso significa estabelecer como fontes principais do noticiário de ciência os informes para a imprensa de agências internacionais e por instituições de pesquisa, elaborados a partir de artigos publicados em periódicos científicos, os quais contam com comitês consultivos independentes para avaliar os estudos encaminhados para publicação.19

Entre os periódicos interdisciplinares destacam-se os norte-americanos Science e PNAS (Proceedings of the National Academy of Sciences) e o britânico Nature. Na área da medicina, que é um dos principais interesses do público em geral, os que mais se destacam são o Jama (Journal of the American Medical Association) e The New England Journal of Medicine, dos Estados Unidos, e British Medical Journal e The Lancet, do Reino Unido. Consagradas como principais e indispensáveis fontes da imprensa em todos os países, essas revistas rapidamente incorporaram uma outra função além da original de divulgação científica inter pares, mas de uma forma não explícita: elas passaram a ser veículos de comunicação disponíveis para instituições científicas – governamentais ou não-governamentais –, lideranças acadêmicas e até de empresas, como as indústrias farmacêuticas, os recentes empreendimentos da genômica e outros.20

Tendo expandido seu público-alvo para além dos limites da comunidade acadêmica, muitos periódicos científicos passaram também a organizar com regularidade eventos especiais para influenciar comunicadores, formadores de opinião e tomadores de decisão. Desse modo, essas revistas passaram a servir como veículos para campanhas institucionais do setor, as quais muitas vezes se destinam à captação de recursos. Aos simples press-releases se acrescentaram, com o tempo, entrevistas coletivas, eventos especiais e teleconferências. Nos anos finais do século XX, em plena disputa pela preferência de pesquisadores para a publicação de artigos científicos com potencial de grande repercussão, alguns desses periódicos passaram inclusive a estabelecer os destaques de suas edições de olho na pauta de seus concorrentes, chegando ao ponto de antecipar, inclusive por meio de entrevistas coletivas, a liberação de informações sobre pesquisas antes das datas de publicações.

6. O exemplo da genômica

Esse novo papel dos periódicos científicos no agendamento das pautas jornalísticas teve como um de seus mais contundentes exemplos já em fevereiro de 2001, com a divulgação simultânea dos resultados do Projeto Genoma Humano (HGP) — de instituições públicas dos EUA, Reino Unido, Alemanha, França, Japão e China — e do grupo privado norte-americano Celera Genomics. Por meio de um entendimento que envolveu até mesmo os governos norte-americano e britânico, o primeiro empreendimento teve seus resultados divulgados no dia 15 daquele mês pela revista Nature (vol. 409, nº 6822), ao passo que os do segundo projeto foram veiculados no dia seguinte na Science (vol. 291, nº 5507.

Essa iniciativa simultânea das duas publicações, compreensível devido à importância dos resultados divulgados, foi caracterizada, porém, por notáveis transgressões ao padrão da linguagem empregada em publicações científicas, que sempre evitaram o recurso a metáforas e de outras figuras de linguagem. Mais que isso, essas duas edições usaram e abusaram até mesmo de hipérboles, tais como ‘Nova Era’, ‘Livro da Vida’, ‘Admirável Mundo Novo’, ‘façanha épica’, ‘tabela periódica da vida’, ‘Jóia da coroa’, ‘ápice da biologia’ e outras, como mostrou o jornalista Marcelo Leite em sua tese de doutorado já convertida em livro.21

O uso dessas metáforas e hipérboles não foi episódico. Na verdade, desde seu início em 1989, o Projeto Genoma Humano passou a adotar essa prática dentro de uma estratégia para captação de elevadas somas de recursos. Como bem destacou Leite em seu estudo, justamente em um momento do desenvolvimento da biologia em que estava consolidada a convicção de que a arquitetura do genoma humano não comporta interpretações deterministas do tipo ‘tudo está nos genes’, as lideranças do HGP passaram a adotar uma ‘mobilização retórica e política, nas interfaces com a esfera pública leiga, de um determinismo genético crescentemente irreconciliável com os resultados empíricos obtidos no curso da própria pesquisa genômica’.22

A adoção dessa retórica voltada para a captação de recursos na divulgação por meio dos próprios periódicos científicos tem sido um exemplo mais contundente das atividades proporcionadas por esse novo papel dessas revistas. Nesse sentido, vale retomar as seguintes considerações da obra de Leite:

As revistas Nature e Science se encontram em posição privilegiada para influenciar o significado que realizações de cientistas assumem no imaginário social: têm periodicidade semanal, não são ultra-especializadas como maioria dos journals, os trabalhos técnicos que veiculam são precedidos por artigos, comentários e notícias que contextualizam e discutem os dados e interpretações dos papers científicos propriamente ditos, e aderiram nas duas últimas décadas sistemas de prestação de serviços para jornalistas especializados em ciência23 que as transformaram em duas de suas fontes preferidas de informação e em mananciais de pautas para reportagem (ambas as publicações são também importantes formadoras de opinião na comunidade científica internacional). Ambas as duas edições aqui analisadas abundam em hipérboles que sublinham o caráter histórico da publicação das seqüências-rascunho do genoma humano; era imperioso, antes de mais nada, que os jornalistas assim a percebessem e assim a apresentassem para o grande público. 24

7. Conclusões: as transformações no jornalismo

A conseqüência principal dessa dinâmica hegemônica na cobertura jornalística de ciência não é apenas a falta de um posicionamento crítico nas matérias: é também a homogeneização do noticiário sobre C&T, com notícias cada vez mais parecidas umas com as outras nos diferentes meios de comunicação. No final das contas, essa sistemática interna da cobertura de C&T passou a ser criticada muito tarde, e justamente quando o jornalismo em geral começou, devido a fatores conjunturais, a passar por uma erosão de seus valores e atitudes editoriais vigentes havia muito tempo.

No final do século XX, grande parte das empresas jornalísticas começou a ser incorporada a grupos empresariais que atuavam em diversos outros setores. Em outras palavras, os meios de comunicação, que, em países como os Estados Unidos, durante quase dois séculos haviam sido exclusivos de empresários que separavam a informação da interferência direta de outras atividades econômicas, passaram cada vez mais a pertencer a conglomerados empresariais com diversas áreas de atuação. A essa mudança no modelo de propriedade da imprensa juntaram-se também as transformações tecnológicas na informação e nas comunicações, que promoveram aproximações cada vez maiores entre os conteúdos dos diversos tipos de mídias. Nesse novo contexto, a receita publicitária das mídias convencionais começou a diminuir. Em busca de novos modelos de negócios para enfrentar as mudanças na nova economia, as empresas de comunicação foram mudando o perfil de seus executivos não só nas áreas de administração e de negócios, mas também nas redações.

Na verdade, grande parte da cobertura jornalística de ciência já se encontrava — e em muitos casos pode-se dizer que hoje se encontra em uma situação mais agravada —no processo que foi devidamente caracterizado como tendência da imprensa norte-americana em geral no relatório ‘The State of Newsmedia 2004’, do Projeto para Excelência do Jornalismo:

** a maior parte da atividade jornalística consiste em distribuir informações, e não em produzi-las; e

** mesmo entre grande parte dos meios que produzem a informação a ser distribuída, confunde-se cada vez mais os elementos informativos brutos com o que seria a informação resultante de checagem, comparação e avaliação.25

Baseados em amplos dados empíricos da imprensa norte-americana, os relatórios de 2005 e 2006 do Projeto para Excelência do Jornalismo mostraram tendências complementares a essas duas, também desfavoráveis a uma prática jornalística voltada para o interesse público, entre elas a influência crescente de governos, grupos de interesses e corporações na agenda dos veículos de comunicação.26,27 Sem apontar nenhuma alternativa para reverter essas tendências indicadas anteriormente, os documentos anuais a partir de 2007 desse projeto destacaram muito mais as estratégias para sobreviver à crise nos negócios.28,29,30 No final das contas, apesar de haver luz no final do túnel para os negócios, tudo leva e crer que a crise é também do jornalismo como atividade, e que ele, para sobreviver, está se transformando também no que diz respeito aos seus valores.31

Desse modo, em vista dos aspectos de ordem conjuntural envolvidos, a questão crucial do jornalismo na área de C&T acabou por se tornar a mesma do jornalismo em geral neste neste início de milênio: o essencial não é saber se os jornais vão desaparecer, nem se os profissionais de imprensa serão todos terceirizados, mas se a função do jornalista deixará de ser a produção da informação para se restringir ao mero gerenciamento dela.32

Referências

1. ZIMAN, John — Conhecimento Público. Tradução de Regina Regis Junqueira. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1979, p. 60.

2. NELKIN, Dorothy — Selling Science. How the press covers science and technology. Nova York: W. H. Freeman & Co., 1985, p. 83.

3. CASTELFRANCHI, Yurij — ‘Para além da tradução: o jornalismo científico crítico na teoria e na prática’. in MASSARANI, Luisa e POLINO, Carmelo (orgs.) — ‘Los desafíos y la evaluación del periodismo científico en Iberoamérica’. Relatório. Jornadas iberoamericanas sobre la ciencia en los medios masivos. Santa Cruz de La Sierra: AECI, RICYT, CYTED, SciDevNet, OEA, 2008.

4. FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO (FAPESP) — ‘Indicadores de Ciência, Tecnologia e Inovação em São Paulo 2004’. São Paulo: FAPESP, 2005 [http://www.fapesp.br/indicadores2004/volume1/cap12_vol1.pdf]. Acesso em 23/11/2009, vol. I, p. 12-8.

5. KOVACH, Bill; ROSENSTIEL, Tom — Os Elementos do Jornalismo: O que os jornalistas devem saber e o público exigir. São Paulo. Geração Editorial, 2003, pp. 22-23.

6. CASTELFRANCHI, obra citada, pp. 11-12.

7. FRANÇA, Martha San Juan — ‘Divulgação ou jornalismo?’ in VILAS BOAS, Sérgio (organizador) — Formação e Informação Científica: Jornalismo para iniciados e leigos. São Paulo: Summus Editorial. 2005, p. 41-42.

Idem, p. 32.

8. TEIXEIRA, Mônica – ‘Pressupostos do Jornalismo de Ciência no Brasil’. in MASSARANI, Luisa; MOREIRA, Ildeu de Castro; e BRITO, Fátima (orgs.) — Ciência e Público: Caminhos da divulgação científica no Brasil. Rio de Janeiro: Casa da Ciência/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2002. pp. 133-141.

9. ‘Cheerleader or watchdog?’. Editorial. Nature. vol. 459, nº 7250, 25/06/2009, p. 1033 [http://www.nature.com/nature/journal/v459/n7250/pdf/4591033a.pdf]. Acesso em 23/11/2009.

10. FUNDAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA; AGÊNCIA NACIONAL DOS DIREITOS DA INFÂNCIA — ‘Ciência, Tecnologia & Inovação na Mídia Brasileira: Conhecimento gera desenvolvimento. Relatório. Brasília: Agência Nacional dos Direitos da Infância, 2009, p. 64 [http://www.andi.org.br/_pdfs/paper_c&t_midia.pdf ]. Acesso em 23/11/2009.

11. MINISTÉRIO DA CIÊNCIA E TECNOLOGIA — ‘Percepção Pública da Ciência e Tecnologia’. Apresentação. Brasília: Ministério da Ciência e Tecnologia/Secretaria de Ciência e Tecnologia para Inclusão Social/Departamento de Popularização e Difusão da C&T, 2007. [http://semanact.mct.gov.br/index.php/content/view/922.html]. Acesso em 23/11/2009.

12. As outras alternativas de resposta eram: representantes de organizações de defesa do consumidor (3%), médicos (7%), cientistas que trabalham em empresas (7%), escritores (8%), jornalistas (15%), religiosos (18%), militares (44%) e políticos (84%).

13. FAPESP, Obra citada, vol. I, p. 12-13.

14. NATIONAL SCIENCE FOUNDATION — ‘Science and engineering indicators 2008’. Washington: U.S. Government Printing Office, 2008 [http://www.spaceref.com/news/viewsr.html?pid=26695]. Acesso em 23/11/2009.

15. EUROPEAN COMMISSION — Special Eurobarometer 224 ‘Europeans, Science and Technology’. Relatório. Bruxelas: European Commission/Directorate General Research, junho de 2005 [http://ec.europa.eu/public_opinion/archives/ebs/ebs_224_report_en.pdf ]. Acesso em 23/11/2009.

16. VOGT, Carlos; POLINO, Carmelo (orgs.) — Percepção pública da ciência: Resultados da pesquisa na Argentina, Brasil, Espanha e Uruguai. Campinas: Editora da Unicamp; São Paulo: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, 2003.

16. OBAMA, BARACK — ‘Rejeitamos como falsa a opção entre segurança e ideias’ (Transcrição de discurso). Folha de S. Paulo, 21/01/2009, caderno especial ‘A posse de Obama’, p. A2.

18. TUFFANI, Maurício — ‘A clonagem das notícias de ciência’. ComCiência, nº 74, 10/02/2006 [http://www.comciencia.br/comciencia/handler.php?section=8&edicao=8&id=46]. Acesso em 23/11/2009.

Idem.

19. LEITE, Marcelo — Promessas do Genoma. São Paulo: Editora UNESP, 2007, p. 31.

20. Idem, p. 11.

21. Press Nature (www.pressnature.com) e Eurekalert/Sience (www.eurekalert.org/jrnls/sci) [nota do texto original transcrito].

Marcelo Leite, Obra citada, p. 30.

22. THE PROJECT FOR EXCELLENCE IN JOURNALISM — ‘The State of the News Media 2004’. Relatório. Nova York: Columbia University/Graduated School of Journalism, 2004. [http://www.stateofthenewsmedia.com/2004]. Acesso em 23/11/2009.

23. THE PROJECT FOR EXCELLENCE IN JOURNALISM — ‘The State of the News Media 2005’. Relatório. Nova York: Columbia University/Graduated School of Journalism, 2005 [http://www.stateofthenewsmedia.com/2005]. Acesso em 23/11/2009

24. THE PROJECT FOR EXCELLENCE IN JOURNALISM — ‘The State of the News Media 2006’. Relatório. Washington: The Pew Research Center, 2006 [http://www.stateofthenewsmedia.com/2006]. Acesso em 23/11/2009

25. THE PROJECT FOR EXCELLENCE IN JOURNALISM — ‘The State of the News Media 2007’. Relatório. Washington: The Pew Research Center, 2007 [http://www.stateofthenewsmedia.com/2007]. Acesso em 23/11/2009.

26. THE PROJECT FOR EXCELLENCE IN JOURNALISM — ‘The State of the News Media 2008’. Relatório. Washington: The Pew Research Center, 2008 [http://www.stateofthenewsmedia.com/2008]. Acesso em 23/11/2009.

27. THE PROJECT FOR EXCELLENCE IN JOURNALISM — ‘The State of the News Media 2009’. Relatório. Washington: The Pew Research Center, 2009 [http://www.stateofthenewsmedia.com/2009]. Acesso em 23/11/2009

28. THE PROJECT FOR EXCELLENCE IN JOURNALISM — ‘The State of the News Media 2007’. Relatório. Washington: The Pew Research Center, 2007 [http://www.stateofthenewsmedia.com/2007]. Acesso em 23/11/2009.

29. THE PROJECT FOR EXCELLENCE IN JOURNALISM — ‘The State of the News Media 2008’. Relatório. Washington: The Pew Research Center, 2008 [http://www.stateofthenewsmedia.com/2008]. Acesso em 23/11/2009.

30. THE PROJECT FOR EXCELLENCE IN JOURNALISM — ‘The State of the News Media 2009’. Relatório. Washington: The Pew Research Center, 2009 [http://www.stateofthenewsmedia.com/2009]. Acesso em 23/11/2009

31. TUFFANI, Maurício — ‘O mal-estar na informação’. Laudas Críticas (blog), 19/08/2008 [http://laudascriticas.wordpress.com/2008/08/19/o-mal-estar-na-informacao]. Acesso em 23/11/2009.

32. Idem.

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