Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

As penas de aluguel

Voltemos ao ano de 1904. Foi quando o jornalista e escritor João do Rio publicou em A Gazeta de Notícias uma enquete com os principais intelectuais do período. A série partiu de 11 entrevistas e 26 cartas de autores, que responderam a cinco perguntas, originalmente enviadas a mais de cem pessoas. Três anos depois, essas respostas foram reunidas no livro O momento literário – hoje considerado um dos principais documentos sobre a vida intelectual brasileira na virada do século 20.

Entre essas cinco questões, está uma que o próprio autor considerava capital: ‘O jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a arte literária?’

Um século depois, a proposta desta pesquisa é dar conta das possíveis respostas, em vários momentos literários brasileiros, à questão que angustiava o repórter João do Rio provavelmente tanto quanto um autor contemporâneo como Bernardo Carvalho: trabalhar na imprensa atrapalha ou ajuda uma pessoa que quer ser escritor?

E ainda acrescentar outra pergunta: para a literatura, o que significou essa aproximação entre o escritor e o jornalista? Será que é apenas um salário no fim do mês a contribuição que a imprensa vem dando à ficção e à poesia brasileiras desde meados do século 19, quando os primeiros homens e mulheres de letras deste país começaram a se infiltrar nas redações? É possível que, trabalhando com a mesma matéria-prima, a palavra, em algum momento o muro que separa um discurso do outro não tenha se tornado apenas uma linha tênue? Ou que alguns aspectos da narrativa jornalística não tenham acabado por se incorporar ou mesmo renovar o texto literário (e vice-versa)?

300 mil réis mensais

Para traçar uma história comparada da literatura e da imprensa brasileiras, a pesquisa divide-se em cinco períodos, concentrando-se em seus principais representantes. Em resumo:

1. O primeiro dá conta dos primórdios do livro e do jornal, especialmente o período que vai de 1808 a 1830, quando o Brasil publica seus primeiros jornais e livros.

2. Uma segunda etapa, que vai de 1840 a 1910, narra a transição entre o reinado do publicista e a república dos homens de letras. Seus principais personagens são José de Alencar, Machado de Assis, Olavo Bilac, Coelho Neto, Lima Barreto e João do Rio.

3. O terceiro período discute a era da modernização, entre 1920 e 1950, com destaque para nomes como Graciliano Ramos, Monteiro Lobato, Oswald de Andrade, Nelson Rodrigues, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado e Érico Verissimo.

4. O quarto sustenta que, de 1960 a 1980, houve um boom da ficção feita por jornalistas no Brasil. Aí a lista é enorme, e inclui quase todos os ficcionistas e boa parte dos poetas do período: Carlos Heitor Cony, Ferreira Gullar, Paulo Francis, Carlinhos Oliveira, João Antônio, Caio Fernando Abreu, Ivan Angelo, Luis Vilela, Roberto Drummond, Ignácio de Loyola Brandão, José Louzeiro e Antônio Torres, para ficar só entre os principais.

5. O quinto e último período vai de 1980 a março de 2004 e demonstra o descarte da experiência de real tradicionalmente fornecida pela imprensa. Os escritores que trabalham em jornal vão se afastar das editorias de hard news, como Política e Geral, e preferir as editorias de cultura, vinculando-se diretamente ao mundo intelectual e ao meio editorial.

Vale explicar que só considerei jornalistas aqueles que efetivamente trabalham na imprensa como repórteres, redatores e editores, assim como escritores apenas os que trabalham com a imaginação, produzindo ficção ou poesia. Não estão incluídos colunistas e cronistas, nem escritores de não-ficção, autores de biografias, grandes reportagens, ensaios. Esta divisão nos leva de volta à questão ‘o que é um autor?’, já levantada por Michel Foucault, desta vez sob uma ótica comparativa. O que é um autor jornalista e o que é um autor literário? Como e quando os dois campos se constituem em separado? Quais as diferenças entre o trabalho do escritor na literatura e no jornalismo? De que forma os dois gêneros se cruzam? A partir de que momento as hierarquias entre eles são naturalizadas? Qual o papel do escritor, qual o papel do jornalista?

Se na fase dos grandes publicistas, como Hipólito da Costa; dos políticos-jornalistas-escritores, como José Bonifácio; e mesmo a dos polígrafos, como Olavo Bilac, os dois tipos de homens de letras ocupavam praticamente o mesmo espaço no jornal e na vida literária, a partir da virada do século a literatura se constituiu como um campo em separado, em que a ‘arte pura e desinteressada’ se contrapõe à profissionalização, sinônimo de mercantilização e industrialização, do texto jornalístico.

Progressivamente, os escritores vão se afastar e ser afastados do jornal. O processo se exacerba a partir do great divide modernista, entre as décadas de 20 e 50, que não por acaso coincide com o primeiro boom do mercado editorial brasileiro e com a crescente industrialização dos jornais. Mas já nas respostas à questão de João do Rio sobre a influência negativa do trabalho na imprensa nos projetos literários dos escritores pode-se verificar uma certa ansiedade de contaminação entre arte e técnica.

De um lado, há posições como a de Luis Edmundo, para quem na profissão de jornalista o desgraçado mata a sua arte a 300 mil réis por mês. De outro, defesas radicais, como a de Medeiros e Albuquerque, que compara a baixa produtividade dos literatos a uma prisão de ventre intelectual, para a qual o exercício braçal do jornalismo seria o melhor remédio. O resultado é um empate: dos 37 intelectuais que responderam ao questionário, 10 afirmaram que o jornalismo prejudica a vocação literária, 10 disseram que não, 11 responderam que tanto ajuda quanto atrapalha e seis não quiseram ou souberam responder.

Interesse retraído

Uma vez demarcadas as fronteiras, a literatura ficará identificada com a alta cultura e o jornalismo com a cultura de massa. As fronteiras serão tão naturalizadas que se esquecerá que as duas atividades começaram juntas no Brasil, em 1808, quando finalmente foi permitida a publicação de impressos, com a vinda da Coroa Portuguesa. E também que a primeira se beneficiou enormente da segunda para sua difusão, em forma de folhetim, durante todo o século 19 e início do 20.

Na prática, essas fronteiras começam a desaparecer justamente quando parecem mais fortemente estabelecidas. Com a modernização da indústria editorial, surge uma literatura de mercado que já ousa dizer seu nome, com Benjamin Costallat, Monteiro Lobato, Érico Verissimo e Jorge Amado, todos best-sellers com experiência em jornais e revistas.

Paralelamente, cresce a necessidade de especialização da atividade jornalística. O que faz com que escritores já consagrados, como Graciliano Ramos, passem a ser incorporados pela imprensa não mais como articulistas externos, na qualidade de escritores, mas como mão-de-obra interna, na figura do copidesque, um ‘consertador’ do texto jornalístico.

Curiosamente, será por meio do trabalho de um Oswald de Andrade, de um Carlos Drummond de Andrade e de um Graciliano Ramos na imprensa, a partir dos anos 20, que a literatura, ou, antes, o beletrismo, será expulsa do jornal. Limpando o terreno para uma separação radical das técnicas literárias e jornalísticas que culminou com a importação do modelo americano de concisão, nos anos 50, estes escritores transformarão sua busca por um texto moderno, menos pomposo e mais próximo do coloquial, expurgado de barroquismos e seco de adjetivos, numa cruzada contra ornamentos e penduricalhos na imprensa. A ponto de Nelson Rodrigues, para quem a divisão entre texto jornalístico e literário era quase uma impossibilidade, reclamar do fim da velha imprensa ‘com ponto de exclamação’. O problema, segundo ele, é que o repórter hoje mente muito pouco, cada vez menos.

De mero coadjuvante, como o repórter sensacionalista Amado Ribeiro, figura real citada em várias peças de Nelson Rodrigues, entre os anos 60 e 80 o jornalista se torna personagem principal da literatura brasileira. E não só porque quase toda a ficção do período foi escrita por gente que vivia o dia-a-dia das redações, como Carlos Heitor Cony, Antonio Callado, João Ubaldo Ribeiro, João Antonio, Paulo Francis, Carlinhos Oliveira, Antonio Torres, José Louzeiro, Ivan Angelo, Ignácio de Loyolla Brandão, Roberto Drummond, Luis Vilela e Agnaldo Silva, só para citar alguns. Mas porque o jornalista, assim como o escritor, o padre e o guerrilheiro, foi o grande protagonista da ficção do período.

Quantitativamente, ganha disparado. São jornalistas os protagonistas de A festa, de Ivan Angelo; Cabeça de negro e Cabeça de papel, de Paulo Francis; Um novo animal na floresta e Domingo 22, de Carlinhos Oliveira; O inferno é aqui mesmo, de Luis Vilela; Um cão uivando para a lua e Balada da infância perdida, de Antonio Torres; Setembro não tem sentido, de João Ubaldo, entre tantos outros, especialmente no romance-reportagem e nas memórias da luta armada de Fernando Gabeira & Cia.

Justamente nesse período de embate com a censura e a ditadura ocorreu uma explosão quantitativa e qualitativa da indústria editorial brasileira, com a publicação de uma grande quantidade de livros de ficção. É curioso observar que o regime autoritário, apesar da censura – incluindo a proibição de cerca de 500 livros, a maioria por causa de menções sexuais explícitas – testemunha o boom do romance brasileiro.

Dizer que esses livros só vendiam porque o romance jornalístico de certa forma substituía a imprensa em sua missão de informar – e que, quando acabou a censura, ele perdeu a razão de ser – é enxergar apenas um lado da questão. A retração do interesse dos leitores pela ficção brasileira a partir da década de 90 parece coincidir tanto com o fim da censura, que permitiu que os jornais voltassem a tratar de temas antes só abordados nos livros, quanto com o fim de um projeto de Brasil, por parte dos escritores e do público leitor. O processo de globalização marcou o abandono do projeto nacionalista que nasceu com o romantismo, teve seu momento marcante nas décadas de 30 a 50 e sustentou praticamente toda a literatura dos anos 60 aos 80.

Protagonista paranóico

Em relação ao grande tema da identidade nacional, a partir dos anos 90 estabeleceu-se um diálogo de surdos (leitores) e mudos (autores), que pelos menos pareciam concordar neste ponto: ‘que país é este?’ deixou, durante bom tempo, de ser a grande questão que movia a literatura brasileira. O novo perfil do jornalista que passa a escrever ficção nos anos 90 pode ter muito a ver com isso.

Foi para identificá-lo com precisão que empreendi uma nova enquete, entre 2001 e 2003. Meu objetivo principal era saber como os escritores contemporâneos responderiam à pergunta de João do Rio. O trabalho na imprensa ainda é um problema ou, a julgar pela grande quantidade de jornalistas que continuam tentando a literatura um século depois, uma alavanca na carreira de um escritor?

A pergunta capital de O momento literário foi desdobrada em 13. Exemplo: pretendia ser escritor quando ingressou no jornalismo? A linguagem dos jornais oferece um aperfeiçoamento formal ou bloqueia o texto literário? A profissionalização por intermédio da imprensa permite a sobrevivência financeira do escritor ou o afasta de seu caminho? Visibilidade, ingresso no mercado editorial, maior penetração nos círculos intelectuais compensam fatores negativos, como a falta de tempo, por exemplo, ou o pouco espaço para a sensibilidade artística numa redação? Os próprios escritores foram incentivados a fazer suas listas de prós e contras.

Com isso, a concisa enquete de João do Rio foi transformada num amplo debate sobre jornalismo e literatura, em que é possível descobrir como conciliam as duas atividades (e às vezes outras, que vão de professor universitário e a músico de rock) alguns dos principais nomes que começaram a se destacar nos anos 90. Entre os escritores jornalistas dessa nova geração, atualmente na faixa dos 40 anos, foram entrevistados: Antonio Fernando Borges, Arnaldo Bloch, Bernardo Ajzenberg, Bernardo Carvalho, Cadão Volpato, Carlos Herculano Lopes, Cintia Moscovich, Fernando Molica, Heloisa Seixas, Heitor Ferraz, João Gabriel de Lima, José Castello, Juremir Machado da Silva, Luciano Trigo, Luiz Ruffato, Marcelo Coelho, Marçal Aquino, Michel Laub, Paulo Roberto Pires, Ronaldo Bressane, Sergio Alcides, Sergio Rodrigues e Toni Marques.

Das respostas aos questionários enviados a esses 23 escritores, e da leitura de seus principais livros, algumas questões saltam aos olhos. A principal diz respeito à experiência. Embora alguns dos autores mais consagrados no meio editorial, como Marçal Aquino (Prêmio Jabuti por O amor e outros objetos pontiagudos) e Luiz Ruffato (Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte e Prêmio Machado de Assis de melhor livro de 2001 por Eles eram muitos cavalos) venham do jornalismo de geral, com passagens pela editoria de polícia, mais da metade dos escritores dessa geração encaminhou-se para as editorias ligadas à cultura. A mudança de perfil não é um detalhe e parece estar diretamente relacionada ao tipo de literatura que jornalistas escritores têm produzido a partir dos anos 90.

Não se deve menosprezar o fato de que vincular-se à área cultural do jornal é uma estratégia que oferece a esses autores uma posição relativamente privilegiada no mercado editorial, pelo contato com editores, críticos, intelectuais e outros escritores. Mas há desvantagens nessa opção pelos suplementos culturais, como admitiram vários entrevistados. Se, por um lado, ela pode abrir portas, de outro, costuma fechar a dos órgãos de imprensa concorrentes para a divulgação dos livros de um escritor.

De qualquer forma, a concentração nas editorias de cultura revela uma clara ruptura com os padrões da geração anterior, cujos escritores buscavam no jornalismo um corpo-a-corpo com a vida, dirigindo-se para as editorias de política, polícia, geral ou nacional.

Se antes era a realidade brasileira que estava sendo posta em questão, um dos temas subjacentes à literatura feita por jornalistas hoje é a própria cultura, seja ela a erudita ou a do mercado. Certamente, não é um fenômeno restrito os jornalistas escritores: a desvalorização da experiência e a metaliteratura parecem ser efetivamente uma tendência da narrativa pós-moderna. Não por acaso, o jornalista deixa de ser o herói da nova ficção. Ele não é mais seu protagonista nem narrador privilegiado.

Em compensação, surgiram novos protagonistas, produtos do marketing, como o escritor-celebridade de Talk show, de Arnaldo Bloch, contraponto perfeito ao escritor anacrônico de Antonio Fernando Borges, que em seus dois romances (Que fim levou Brodie? e Braz, Quincas & Cia), dialoga diretamente com a tradição literária, no caso com Jorge Luis Borges e Machado de Assis, sem a mediação da realidade. Há ainda os numerosos calculistas equivocados, como os arquitetos e engenheiros de Bernardo Ajzenberg, José Castello e Marçal Aquino.

Acima de todos, paira o protagonista paranóico, com suas características fronteiriças: minúcia, pensamento em círculos, visão fragmentada, incapacidade de traçar um sentido, opção aleatória por uma verdade, obsessão, capacidade de construir ficções, de encontrar lógica no ilógico. Presente em quase todos os romances da nova geração, esse protagonista/narrador paranóico pode ser lido como uma hiperreação imaginária à desagregação, ao medo e à violência das megacidades na virada do século 20. E até mesmo como seu subproduto.

Ênfase contrária

Na prática, o jornalista também assume uma postura diferente a partir dos anos 90. Já não é mais o homem de letras sem formação específica, que, por rebeldia, indisciplina ou falta de condições financeiras, abandonou o curso de Direito pela metade ou nem isso, mas um profissional formado diretamente para o trabalho jornalístico. Ao contrário da geração anterior, que teve grandes nomes que passaram longe dos bancos universitários, como Ferreira Gullar e Antônio Torres, praticamente todos os escritores jornalistas de hoje são egressos das faculdades de Comunicação, treinados desde o início para o exercício de um modelo específico de texto. Fator que certamente contribui para fazer com que a ficção se transforme no espaço de individualidade desses autores, ao mesmo tempo em que torna o bloqueio criativo mais resistente.

Se no passado a censura aos órgãos de imprensa foi um incentivo à busca de um espaço ficcional, para os autores de hoje, a literatura não é mais sinônimo de liberdade de pensamento. Mas sim de expressão subjetiva e liberdade para experimentação formal. A questão não é mais política, mesmo para os que reclamam do pensamento único veiculado pela imprensa, mas existencial e estética. A censura prévia caiu em 1978, com a revogação do AI-5, e a liberdade de expressão foi garantida pela Constituição de 1988. Mas é inegável que os jornais e telejornais foram ficando cada vez mais parecidos. O grau de competitividade entre os vários tipos de mídia e a disputa dos jornais pelo mesmo mercado (o leitor de classe média) são em boa parte responsáveis pela visível padronização do noticiário brasileiro.

A lógica da concorrência, que define como pecado mortal deixar de publicar uma matéria que todos os outros jornais exibirão no dia seguinte, somada à lógica da produtividade, que dificulta a exclusão do repórter da pauta diária, contribui para que os jornais tenham cada vez menos grandes reportagens exclusivas, que exigem tempo, recursos e dedicação extras. A estes fatores, devem ser acrescentadas a formação técnica do jornalista pela universidade; a idade cada vez mais baixa com que um repórter passa a editor, em geral quando começa a elaborar criativamente seu texto; a padronização imposta pelos manuais de redação, a cobertura centrada nos mesmos assuntos e personagens oficiais e a dependência cada vez maior das assessorias de imprensa.

A questão política também não deve ser menosprezada. Até os anos 70, o mercado era ocupado por um grande número de jornais, de diferentes orientações partidárias, e o leitor era o eleitor dos diferentes partidos. Hoje, os grandes jornais do Rio de Janeiro e de São Paulo estão disputando o leitor de centro.Com isso, o profissionalismo suplantou o romantismo dos anos 60. O fim de século marca o fim do envolvimento ideológico do jornalista com utopias políticas, quando a opção por trabalhar numa redação estava particularmente vinculada ao engajamento político de quem queria mudar o mundo e, portanto, precisava exibir todas as suas mazelas.

Há uma grande diferença entre os projetos literários da geração de escritores jornalistas dos anos 60 a 80, extremamente politizada e marcada pela experiência da ditadura, e a geração de escritores jornalistas estabelecida a partir dos anos 90, que se defronta com dilemas típicos da globalização e da pós-modernidade: desencanto político, individualismo, desterritorialização, cosmopolitismo, consumismo, cultura massificada, desemprego, violência. Mas o fato de que seja aparentemente despolitizada faria dela uma literatura sem projeto social?

Até 2000, novamente com as exceções de Marçal Aquino e Luiz Ruffato, que nesse sentido (e também em seu trabalho jornalístico) parecem filiados à tradição da geração anterior, os autores demonstravam pouquíssimo, ou nenhum, interesse em retratar o Brasil. Alguns, como Bernardo Carvalho, chegaram a fazer de um mosteiro europeu transformado em refúgio de escritores o cenário de seus livros, revelando o desejo de fazer uma literatura cosmopolita e global, livre da velha missão de refletir a realidade nacional.

Mas, coincidentemente, com a virada política do país, começa a surgir uma nova leva de romances de jornalistas voltados para o Brasil. O marco pode ser considerado o livro Nove noites, lançado em 2002. Escrito justamente por quem melhor refletiu a ruptura com o sentido de missão entre os escritores jornalistas contemporâneos, o livro de Bernardo Carvalho é uma espécie de anti-Quarup.

Assim como na obra de Antonio Callado, também jornalista, o protagonista viaja ao Xingu e convive diretamente com os índios de uma aldeia. Mas o Xingu de Bernardo Carvalho só exacerba o grau de idealização do Xingu de Callado. Seus índios não são dóceis vítimas da civilização, e sim exibidos com toda sua carga de violência, selvageria e manipulação da culpa dos brancos. Híbrido, o livro eventualmente se aproxima da reportagem e da biografia, inventariando documentos, arquivos, depoimentos, misturando-os a personagens e cartas fictícias e ainda com as próprias lembranças do autor e de seu pai. Ao falar desse pai, e de sua morte lenta, Bernardo Carvalho acaba falando do próprio país. Faz um perfeito apanhado das relações dos pesquisadores estrangeiros entre si, com as universidades americanas e francesas e com as instituições brasileiras durante o Estado Novo. E desvenda a associação das elites urbanas com os militares, durante a ditadura, que empurra os índios cada vez mais para o interior.

Nove noites é uma espécie de making of de uma grande reportagem. Na forma de cruzar as fronteiras entre literatura e jornalismo, o modelo do making of se distancia completamente do romance-reportagem dos anos 60 e do new journalism americano, que incorporaram técnicas ficcionais à matéria jornalística. A ênfase agora é contrária. Ao colocar em cena os bastidores da apuração, sua construção em forma de tentativa e erro, um livro construído segundo a técnica do making of – como Nove noites, Inveja, de Zuenir Ventura, ou mesmo Santa Evita, de Thomás Eloy Martinez – faz com que seja impossível separar realidade de ficção, dados objetivos da subjetividade do autor, o repórter do escritor.

Dupla jornada

Uma vez de volta à realidade, percebe-se que, da mesma forma que as primeiras páginas dos jornais, a literatura contemporânea parece não ter como fugir de uma questão colocada pelo país: a violência. Mas seria a violência, tal qual a que se encontra nos livros de um ex-repórter policial como Marçal Aquino, apenas um tema ou uma nova linguagem? Ou melhor, uma contralinguagem, capaz não de explicar a tão procurada identidade brasileira, mas a sua impossibilidade?

Hoje, o país vive um momento em que a violência deixa de ser problema localizado nesta ou outra área periférica, neste ou outro grupo social, para se disseminar além da faixa de guerra. A violência, nos livros de Marçal Aquino, não é mais uma questão de classe, mas difusa. Trata-se da violência da periferia contra o bairro rico, do homem contra a mulher, de amigo contra amigo, de matadores profissionais contra desconhecidos. O próprio amor é visto sob esta versão contemporânea da educação pela faca como um objeto pontiagudo, como no título de um de seus livros.

A falência do velho projeto de identidade nacional que a todos abarcava parece estar diretamente relacionada à emergência da violência na música do funk e do rap, na televisão, no cinema e na literatura brasileira contemporânea. Seu reflexo é a criação de Estados paralelos, faroestes (para citar outro título de Marçal Aquino) urbanos onde a lei do mais armado prevalece, mas cujas fronteiras cada vez mais ambíguas e ziguezagueantes permitem vez por outra a entrada de um ‘invasor’, como o protagonista do livro/filme de Marçal.

Seria uma esparrela culpar a globalização por tudo – ainda mais por uma tensão que é endêmica à sociedade brasileira. Mas, numa comparação com a literatura dos anos 60 a 80, é possível ver como a questão da violência reflete a progressiva transformação do Estado-Nação dentro da ordem global. A violência descrita na ficção e nos relatos da luta armada e da tortura foi fruto do recrudescimento do Estado durante a ditadura. A contemporânea, de sua omissão como regulador das demandas e choques entre as diversas classes, seja por culpa do mercado global, dos fundos monetários internacionais ou até da própria globalização do crime e do narcotráfico. O que se percebe é que a diminuição do poder do Estado em países periféricos como o Brasil levou a uma anomia.

Ainda não apareceu o grande nome, talvez nem tenha sido escrito o grande livro dessa geração. Se é que este tipo de coisa ainda pode existir. Mas parece bastante claro que o mercado para a ficção e a poesia contemporâneas mostra um encolhimento em relação às grandes tiragens dos autores da geração anterior. Os jornalistas que conseguem chegar às listas de best-sellers com seus livros escrevem, em geral, não-ficção, como Ruy Castro, Fernando Morais, Zuenir Ventura e Eduardo Bueno. O número de exemplares vendidos de seus principais livros faz deles verdadeiros best-sellers jornalísticos, mas não literários.

Entre os que optaram por ser worst-sellers, insistindo numa ficção sem retorno comercial, as respostas ao questionário mostram que, um século depois, com a exceção da alta incidência de LER (lesão de esforço repetitivo), causada pela dupla jornada à frente do computador, os prós e contras de um escritor trabalhar na imprensa não diferem muito dos relacionados pelos contemporâneos de João do Rio. Entre os pontos favoráveis, os entrevistados destacaram: disciplina, prática diária da escrita, exercício da clareza e da concisão, ampliação de contato com o mundo. Contras: baixos salários, longas jornadas de trabalho, estresse, competitividade e a temida tendinite.

Analfabetos funcionais

Embora não seja uma pesquisa quantitativa e parta de uma amostragem pequena – apesar de significativa – do universo dos jornalistas escritores brasileiros, é possível afirmar que, ao contrário de 1900, o lado positivo de trabalhar na imprensa foi mais lembrado do que o negativo. Hoje, a pergunta de João do Rio – o jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a arte literária? – seria respondida com um esmagador ‘útil’.

Dez entrevistados disseram que a atividade na imprensa é positiva para um escritor. Dez afirmaram ser negativa. Um, mais ou menos. Um disse não ter importância. E um não respondeu. A possibilidade de viver de escrever foi considerado o principal ponto a favor da imprensa. A falta de tempo e a esterilização da linguagem, os fatores mais prejudiciais.

Se as queixas e vantagens são praticamente as mesmas, a possibilidade de chegar a uma conclusão sobre a pergunta de João do Rio é tão inviável quanto 100 anos atrás. No máximo, é possível apontar (parafraseando o artigo de Angel Rama ’10 problemas para o escritor latino-americano’) os problemas mais comuns para o escritor jornalista no Brasil.

Sem dúvida, o principal é o econômico. Não faltam alusões a esta questão em vários momentos literários. Num artigo de pouco mais de cinco páginas, ‘O fator econômico no romance brasileiro’, publicado em 1945, Graciliano Ramos já chamava a atenção para a relação entre a precariedade da profissão de escritor no Brasil e a dificuldade de nossos autores em abordar questões relacionadas a dinheiro em sua obra. Para ele, o escritor brasileiro não toca na questão econômica porque tem medo de sujar as mãos com o dinheiro, ferindo sua imagem de artista desinteressado. Segundo o autor de Vidas secas, uma literatura que se pretendesse moderna não deveria escamotear essas relações arcaicas, pré-capitalistas, do escritor com o produto de seu trabalho.

A questão econômica também se estende ao segundo maior problema apontado nas duas pesquisas. Quando tempo se torna sinônimo de dinheiro, o maior benefício do jornalismo para um escritor corresponde ao seu pior inimigo. A profissionalização oferecida pela imprensa tende a afastar o escritor de seu caminho, pois o tempo se torna mercadoria escassa.

Mas a culpa seria do jornal? A sucessão de queixas e ressentimentos quanto à impossibilidade de viver de literatura no Brasil, em qualquer momento literário, aponta para uma razão estrutural. A situação dos escritores hoje não é muito diferente da identificada por Olavo Bilac, quase um século atrás. Basicamente, faltam leitores.

Como fazer literatura num país de iletrados? A pergunta vale tanto para o século passado quanto para o atual. Embora o censo do IBGE aponte para uma queda dos índices absolutos de 33,6% para 12, 8% de analfabetismo entre a população acima de 15 anos, entre 1970 e 2000, os mesmos números mostram que o Brasil chegou ao novo milênio com 17,6 milhões de analfabetos.

Os dados são ainda mais assustadores quando se leva em conta um grupo mais amplo: o de analfabetos funcionais. O conceito usado pela Unesco na década de 90 para medir de forma quantitativa a educação em todo o mundo. O Inaf (Indicador Nacional de Analfabetismo Funcional) estimou que, entre as pessoas que têm de quatro a sete anos de estudo, só a metade atinge o nível básico de domínio da língua escrita e da leitura, necessário para compreender um texto de jornal. Nada menos do que 1/3 dos que estudaram de um a três anos continuam analfabetos absolutos. Pela pesquisa, divulgada em 2003, 30% dos alfabetizados lêem apenas frases soltas, como a dos outdoors. E outros 37% conseguem apenas ler textos curtos. Só 25% dos alfabetizados no Brasil teriam pleno domínio da língua. Ou seja, apenas um em cada quatro brasileiros é leitor potencial de literatura ou jornal. Os outros 75% da população estariam excluídos do mundo letrado.

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Professora universitária, doutora em Cultura e Comunicação pela UFRJ, editora da revista Nossa História e do Portal Literal, autora de Eu compro essa mulher: romance e consumo nas telenovelas brasileiras e mexicanas (Jorge Zahar Editor, 2000), entre outros livros