Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

As 10 reportagens que abalaram o regime

[do release da editora]

Há matérias que todo bom jornalista gostaria de assinar. Exemplares pela ousadia, competência e coragem de seus autores e editores. Em 10 reportagens que abalaram a ditadura – livro que abre a coleção Jornalismo Investigativo –, Fernando Molica reúne algumas das melhores reportagens produzidas num dos piores momentos de nossa história. São trabalhos que se destacam em meio à grande e mesmo surpreendente quantidade de ótimas reportagens publicadas numa época pouco propícia para o exercício do jornalismo.

Mas o livro faz mais que republicar esses escritos. Agora as reportagens voltam a circular acompanhadas dos relatos dos jornalistas envolvidos na sua produção e edição. Uma combinação emocionante como as próprias pautas. Os textos escolhidos oferecem um painel sobre o período que vai de 1964, ano do golpe que destituiu o presidente João Goulart, até 1985, quando o último general deixou o poder. ‘Foi buscada também uma certa variedade temática, reportagens que abordassem diferentes aspectos da vida nacional em um período de exceção’, comenta os organizador.

Vistas assim, em conjunto, as reportagens permitem uma nova leitura do regime militar e de algumas de suas conseqüências que mais chamavam a atenção dos jornalistas e da sociedade. Os temas nelas abordados – tortura, corrupção, pobreza – formam quase o resumo de uma agenda que se impôs ao longo de duas décadas e que, em alguns casos, permanece constrangedoramente atual. Estão compiladas, aqui, a série pioneira sobre tortura publicada no Correio da Manhã, o alerta para a fome brasileira editada na revista Realidade sob o título de ‘Eles estão com fome’, a denúncia da banalização da tortura e sua adoção como método de interrogatório da edição especial da Veja, num dos períodos mais duros da ditadura.

10 reportagens que abalaram a ditadura traz, também, reportagens sobre a morte de Vladimir Herzog, os abusos cometidos com o dinheiro público, o direito de acesso a documentos públicos, o caso Riocentro, trabalhos de Marcos Sá Correa e Márcio Moreira Alves e outros. Um mergulho no passado, não muito distante, fundamental para o entendimento do Brasil contemporâneo.

Fernando Molica nasceu em 1961 no Rio de Janeiro. Jornalista formado pela UFRJ, foi repórter nas sucursais cariocas da Folha de S. Paulo e de O Estado de S. Paulo e chefe de reportagem de O Globo. Desde 1996 é repórter especial da TV Globo. Seu primeiro romance, Notícias do Mirandão, foi um grande sucesso de crítica e vendas. É autor, ainda, de O homem que morreu três vezes.



ENTREVISTA / FERNANDO MOLICA
‘Adoraria ter assinado todas elas’

Numa época em que o jornalismo investigativo está presente no dia-a-dia da população, seja em livros best-sellers, seja na capa de jornais, em manchetes sobre corrupção e crime, o livro 10 reportagens que abalaram a ditadura aparece como um instigante panorama da história do jornalismo investigativo no Brasil. As reportagens, escritas por grandes nomes do jornalismo entre 18 de setembro de 1964 e 30 de dezembro de 1982, abordam temas diversos, mas que abalaram os alicerces da ditadura militar: tortura, fome, assassinato político, intervenção estrangeira, mordomia, Operação Condor e terrorismo de Estado. Este livro é uma iniciativa da Editora Record e da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) –, e foi organizado pelo jornalista Fernando Molica. São reportagens que tocam todos aqueles que se interessam pela história do Brasil, principalmente os jornalistas, como Fernando Molica, que confessou nesta entrevista: ‘Adoraria ter assinado algumas daquelas matérias, ou mesmo todas elas.’

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Este é o primeiro livro da coleção Jornalismo Investigativo. Como surgiu a idéia da coleção e do livro?

Fernando Molica – A coleção é uma conseqüência natural do trabalho da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. Em um de nossos encontros sentimos que havia uma certa carência de livros que abordassem o processo de feitura de uma reportagem. Muitas vezes, o caminho percorrido pelo repórter é quase tão interessante quanto a reportagem em si. Achamos também que seria importante resgatar matérias publicadas há muito tempo e que, pela própria natureza do jornalismo, acabaram confinadas aos arquivos dos jornais. Para marcar o primeiro livro da coleção decidimos que seria importante tratar de um assunto relacionado à nossa história recente, no caso, a ditadura militar. Seria uma forma de apresentar essas reportagens a um público que era muito jovem naquela época e de matar as saudades de muita gente que gostaria de reler esses textos. Pensamos também nesse livro como uma forma de reconhecermos o talento e a coragem de tantos colegas, que publicaram ótimos trabalhos numa época tão pouco propícia ao jornalismo.

Uma das críticas ao jornalismo de hoje é que o jornalista cada vez mais fica dentro da redação, apurando por telefone ou recebendo notícias de assessorias de imprensa. O que mudou no jornalismo entre o período das matérias presentes no livro (1964-1984) e hoje?

F. M. – Não acho que os jornalistas fiquem mais tempo nas redações, nem que estejam limitados às assessorias. Ótimas matérias continuam sendo produzidas, continua valendo aquela máxima de redação: ‘Lugar de repórter é na rua’. Acho que diminuiu sim o espaço da chamada grande reportagem, aquelas matérias maiores, que exigiam maior investimento das redações. Isso tem a ver também com o aperto financeiro da maioria dos jornais e revistas. É caro mandar uma equipe viajar, ficar duas, três semanas fora, as redações estão muito enxutas, fica difícil liberar repórteres da pauta do dia-a-dia. Para piorar, os jornais hoje têm poucos correspondentes pelo Brasil, a informação acaba ficando muito concentrada no Rio, em São Paulo e em Brasília. Isso não é bom. Agora, é inegável que o grande diferencial entre o jornalismo daquela época e o de hoje está relacionado à liberdade de publicar que temos hoje. É contraditório: temos liberdade, mas menos dinheiro para investir em grandes reportagens.

Lendo as reportagens da época da ditadura, vemos que existem algumas contradições. Por um lado, a ‘mídia’ em si era conivente com o regime, mas alguns órgãos alternativos e jornalistas dentro da própria grande imprensa buscavam abalar o governo. Por outro, vemos que, em um momento de censura, algumas reportagens eram criativas, fortes e emocionadas. Como isso se explica?

F. M. – Acho que o jornalismo e os jornalistas têm um compromisso grande com a liberdade, com a vontade e mesmo a necessidade de contar histórias, de relatar os fatos. Ninguém vai ser jornalista sonhando em passar a vida escrevendo matérias de apoio a governos, ainda mais no caso de uma ditadura. O golpe de 64 foi apoiado pela grande maioria dos jornais e revistas, mas isso não representou algo monolítico. O Correio da Manhã, por exemplo, exigiu em editoriais a saída do presidente João Goulart, mas, já em 1964, começou a publicar matérias sobre a tortura, algumas transcritas no livro. Ao contrário do que muita gente imagina, as redações são lugares vivos, cheios de discussões, de discordâncias. Ninguém consegue ter controle absoluto de um veículo de comunicação. É importante lembrar que alguns jornais, especialmente O Estado de S. Paulo, o Estadão, romperam com o regime poucos anos depois de sua implantação. De alguma forma, sempre havia espaço para algum tipo de contestação.

O jornalismo investigativo deste livro muitas vezes chega quase a um jornalismo de intervenção, em que o processo de investigação aparece no texto, como podemos ver nas matérias do Marcio Moreira Alves e de Lúcia Romeu. Isso é uma marca da época, ou ainda poderia ser feito isso hoje?

F. M. – Acho que isto ainda acontece, inclusive na televisão. Temos vários exemplos de matérias em que os repórteres intervêm em uma realidade, interagem com os personagens – muitas vezes, com criminosos. O espírito é, talvez, o mesmo, mudam as características de cada época e as possibilidades tecnológicas. Os textos do Marcio Moreira Alves são muito especiais, apresentam uma narrativa na primeira pessoa, o que seria quase impensável nos dias de hoje. Mas, no caso, a primeira pessoa dá força à denúncia, à indignação. Uma espécie de ‘leitores, eu vi’. O mesmo se pode dizer da matéria da Lúcia Romeu e do Antonio Carlos Fon, sobre a casa de torturas de Petrópolis (RJ). Afinal, a irmã de Lúcia, Inês Etiene, foi torturada naquela casa, a denúncia partiu dela.

Podemos falar de diferentes tipos de jornalismo investigativo – um mais próximo do relato pessoal, outro tendo como fonte documentos comprometedores, ‘suítes’, grandes reportagens, etc. –, muitos deles presentes nesta seleção?

F. M. – Acho que o livro apresenta um painel bem diversificado. Temos, por exemplo, a grande reportagem de campo, como a belíssima matéria sobre a fome nordestina, feita pelo Eurico Andrade para a revista Realidade. A matéria sobre as mordomias também revela um outro tipo de grande reportagem, aquela que mobiliza vários jornalistas, em todo o Brasil. As matérias sobre o caso Riocentro derrubaram toda a farsa montada para mascarar aquela brutalidade. O caso do seqüestro dos uruguaios é uma reportagem brilhante: os repórteres da Veja ficaram mais de um ano grudados num caso, não largaram o osso até que tudo ficasse esclarecido. Marcos Sá Corrêa, com a matéria sobre a Operação Brother Sam – a história de como os Estados Unidos se prepararam para apoiar o golpe – mostra como se pode fazer jornalismo investigativo dentro de um arquivo, no caso, de um arquivo norte-americano. A matéria é importante também para ressaltar como estamos atrasados na definição de uma legislação que garanta o acesso a documentos públicos – uma outra luta da Abraji.

De que formas temas tão variados abalaram a ditadura?

F. M. – Esses temas formaram, creio, uma espécie de agenda da sociedade civil naqueles anos. Os jornais expressavam o desejo de liberdade, de respeito aos direitos humanos, de justiça social, de honestidade e moralidade no trato com o dinheiro público. A insistência em se abordar esses temas certamente ajudou a minar as bases sociais e o apoio à ditadura.

Qual foi a influência do jornalismo no golpe de 64 e no esfacelamento da ditadura?

F. M. – A grande maioria dos jornais era favorável à derrubada do governo João Goulart e festejou o golpe. Mas, anos depois, esses mesmos jornais ajudaram a derrubar a ditadura. Isto, ao mostrar os porões, ao relatar os casos de tortura, de corrupção, ao falar dos escândalos. Claro que esse desgaste dos militares não se deve apenas à imprensa: em 1974 o eleitorado deu uma grande vitória ao MDB, partido de oposição ao regime. De uma certa forma, havia um diálogo entre a tal sociedade civil e os jornais. Esse diálogo colaborou para o fim do regime.

Este livro, ao mesmo tempo em que interessa a jornalistas e estudantes, é também um livro em que a história está presente. Qual é a ligação entre história e jornalismo, ainda mais num período de exceção?

F. M. – O jornalismo escreve a história todos os dias. Uma escrita meio complicada, sujeita a erros, às dificuldades naturais da pressa, da falta de uma maior perspectiva histórica, de um distanciamento dos fatos. Nos jornais, nas revistas, na TV, a história é contada na hora em que ela acontece, o que, muitas vezes, causa alguns problemas e até mesmo injustiças. Mas é importante que essa emoção e esse calor sejam revisitados, revelados às novas gerações. Eu me surpreendi nesse processo de organização do livro. A qualidade do material é muito boa, há relatos emocionantes, vibrantes. Confesso que adoraria ter assinado algumas daquelas matérias, ou mesmo todas elas.

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Trecho de ‘A casa das torturas de Petrópolis’

Lúcia Romeu nasceu em 1947, em Lavras, Minas Gerais. Jornalista profissional, veio para o Rio de Janeiro em 1969. Trabalhou como revisora na Apec Editora e na Enciclopédia Britânica. Foi redatora do Departamento de Pesquisa do Jornal do Brasil, da Exped Editorial, da revista Pais & Filhos (Bloch Editores), das editorias de Economia, Rio e Nacional de O Globo. Foi também editora da Agência O Globo e subeditora Internacional da TV Manchete. Há 15 anos, trabalha como assessora de imprensa, tendo exercido a função em diversos órgãos públicos do Rio de Janeiro. Atualmente, é consultora de Comunicação Social da Ademi-RJ (Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário). Em 1981, conquistou o Prêmio Vladimir Herzog com as reportagens ‘A casa dos horrores’ e ‘A torturada fala com o médico da tortura’, publicadas na revista IstoÉ.

A casa dos horrores e o médico da tortura

Uma denúncia irrefutável – Lúcia Romeu

A existência da casa clandestina de tortura mantida pelos agentes da repressão na cidade serrana de Petrópolis (RJ), nos anos de chumbo da ditadura militar, era de meu conhecimento desde 1971. Naquele ano, de 8 de maio a 11 de agosto, minha irmã Inês Etienne Romeu lá fora mantida em cárcere privado, sendo barbaramente torturada, seviciada, estuprada e obrigada a me denunciar como subversiva. Eu tinha, portanto, uma motivação sobre-humana para revelar à opinião pública toda a covardia e sordidez que ela sofreu quando a oportunidade se apresentasse.

Foi necessária uma enorme paciência. A denúncia só poderia ser feita depois que Inês saísse da prisão para não colocá-la em risco. Ela cumpriu pena até 29 de agosto de 1979, no Instituto Penal Talavera Bruce, em Bangu, no Rio, saindo por força da Lei da Anistia. Foi a última, dentre todos os presos políticos, a ser libertada. Finalmente, em fevereiro de 1981, passados quase 10 anos dos tormentos vividos na casa de Petrópolis, apareceu a oportunidade. A revista IstoÉ, onde eu fazia free-lance, deu-me plena liberdade para apurar e redigir as matérias que foram publicadas sob os títulos ‘A casa dos horrores’ e ‘A torturada fala com o médico da tortura’.

A apuração, na verdade, começou com a própria Inês. Presa em São Paulo pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, em 5 de maio de 1971, foi transferida para o Rio e, a seguir, de olhos vendados, para a casa onde passaria mais de três meses. Durante o cativeiro, ela registrou na memória os codinomes de seus torturadores e do médico que a atendera, além dos nomes dos presos políticos que por lá passaram e foram executados. Num determinado dia, ouviu o número do telefone da casa. Em outro momento, descobriu que estava em Petrópolis. Também viu no local o dono da casa e guardou seu nome: Mário. Quando conseguiu ter o primeiro contato com sua família, no dia 11 de agosto, Inês estava um trapo humano, destroçada, mas lúcida e com as lembranças vivas do que soubera e presenciara.

Assim, com a ajuda de nossa irmã Geralda, que a acolheu quando conseguiu sair do cativeiro, Inês redigiu um relatório sobre tudo que acontecera. Esse relatório de 1971 foi a base da apuração feita tantos anos depois. O primeiro passo consistiu em descobrir o endereço do centro clandestino de tortura a partir do número do telefone e do nome do dono do imóvel. Por óbvias razões de segurança – além de irmã de Inês, eu respondera a Inquérito Policial Militar –, fiquei de fora dessa fase inicial. Mas uma pessoa teve um papel fundamental: o jornalista Antônio Henrique Lago, que pesquisou em catálogos antigos de Petrópolis, na Biblioteca Nacional, e encontrou o número guardado por Inês, associado ao nome de Mário Lodders.

Lago havia feito anteriormente uma reportagem para a Folha de S. Paulo, intitulada ‘A repressão à guerrilha urbana no Brasil’, em conjunto com a jornalista Ana Lagôa. Era baseada numa entrevista em off com o coronel Adyr Fiúza de Castro, que foi chefe de Polícia do I Exército, comandante da VI Região Militar, integrante do Centro de Informações do Exército e responsável pela montagem do sistema repressivo nos anos de 68 e 69. Entre outras informações, ele revelou que os militares usavam aparelhos clandestinos e deu como exemplo a casa de Petrópolis. Inês leu a reportagem, quis conhecer seu autor e mandou-lhe um recado para que a visitasse na prisão. Lago foi vê-la várias vezes, até que um dia ela lhe perguntou se ele poderia ajudar na descoberta do endereço da casa e revelou que tinha o número do telefone. Ele assim o fez.

Fez mais: um tempo depois, foi ao local com um fotógrafo e descobriu que Mário Lodders tinha, na verdade, duas casas na mesma rua. Uma onde morava com uma irmã, e outra, a cem metros, que cedera para ser o centro clandestino de tortura. A pretexto de estar fazendo uma reportagem turística, Lago fotografou as casas e seu próprio dono. Depois, levou as fotos para Inês, que reconheceu Mário Lodders e onde ficara. Confirmado assim o endereço, Lago, a pedido de Inês, fez um contato com a OAB, na época presidida por Eduardo Seabra Fagundes, que a visitou em seguida na prisão, acompanhado de mais dois advogados. (…)

Assim que saiu da prisão, Inês foi à OAB, onde deu um depoimento formal e recebeu apoio para fazer a denúncia. Combinado o dia da ida a Petrópolis, 3 de fevereiro de 1981, a convocação de alguns órgãos da imprensa foi feita pela própria OAB. Foram chamados os jornais Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo, o Jornal do Brasil e a Tribuna da Imprensa; a TV Globo e a TV Bandeirantes; e algumas rádios, entre elas, a Rádio JB. Eu fui cobrindo pela revista IstoÉ.

A pauta passada referia-se a uma denúncia de tortura, sem detalhes, para preservar a segurança de Inês. Na verdade, dentre os jornalistas, só Lago e eu sabíamos do que se tratava. Também por uma questão de segurança, a avaliação feita foi a de que a denúncia teria que ser veiculada no mesmo dia e para isso era decisivo o papel de rádios e TVs. Naquele momento, Lago já tinha saído da Folha de S. Paulo e estava como chefe de reportagem da TV Globo.

Com Inês, fomos em caravana para Petrópolis na manhã de 3 de fevereiro, uma terça-feira. ‘A cena foi dramática.’ Assim descrevi na abertura de meu texto para IstoÉ o encontro de Inês com Mário Lodders. Na frente de todos, Inês o reconhecera e ele acabou admitindo, depois de negar, que a conhecia também. As rádios noticiaram, a Band também, e a matéria foi ao ar à noite no Jornal Nacional, já então líder de audiência. Segundo Lago, ‘foi a primeira vez que o Jornal Nacional veiculou uma denúncia da ação clandestina da repressão’. A matéria divulgada, de quase dois minutos, mostrava o encontro entre Inês e Lodders, com som ambiente. No dia seguinte, os jornais também destacaram a notícia.

Naquele momento, Inês já sabia, por conversas anteriores com outros presos políticos, a verdadeira identidade do médico que a atendera no cativeiro com o codinome de Carneiro: o psicanalista Amílcar Lobo. Assim, dois dias depois da denúncia da casa, fomos – Inês, o então deputado federal Modesto da Silveira, o fotógrafo A. Fontes e eu – de surpresa ao seu consultório no sofisticado bairro de Ipanema, na Zona Sul do Rio. O Carneiro era o Lobo. Frente a frente com Inês, em tenso diálogo, ele confirmou que fora convocado a ir ao ‘aparelho’ de Petrópolis como tenente-médico do Exército. Com um gravador escondido, registrei toda a conversa para IstoÉ. Perguntei-lhe se sabia que lá era uma casa onde se torturavam presos, e Lobo aquiesceu com a cabeça.

Depois que saímos de lá, avaliamos que seria temerário guardar essa informação por quatro dias. Estávamos numa quinta-feira, dia de fechamento da revista, que só estaria nas bancas no domingo. Inês, então, procurou o Comitê Brasileiro de Anistia, que divulgou a denúncia. À noite, no último telejornal da Globo, Amílcar Lobo já aparecia na tela confirmando tudo. A repercussão foi grande.

No domingo, 8 de fevereiro, IstoÉ circulou com as duas reportagens, com edição de Antônio Carlos Fon. O diálogo entre o médico da tortura e a torturada era exclusivo da revista e foi chamada de capa. Os jornais passaram a investigar e a publicar os verdadeiros nomes de alguns torturadores cujos codinomes foram revelados no encontro entre Inês e Lodders em Petrópolis. A resposta dos comandantes militares veio forte. Eles divulgaram duras notas condenando o revanchismo, mas, pela primeira vez, não negaram a tortura. Afinal, ela havia sido confirmada por um dos seus, o tenente-médico Amílcar Lobo. A capa de Veja, de 18 de fevereiro, foi uma foto do então ministro do Exército, Walter Pires, com o título ‘A reação dos militares’. Na mesma semana, O Pasquim publicou a íntegra do relatório feito em 1971, já atualizado com as novas descobertas.

A coragem de Inês e a atuação de Lago foram decisivas para que tudo isso fosse revelado. De IstoÉ, recebi total apoio de Maurício Dias, então chefe da sucursal Rio, e de Aluízio Maranhão, que ficou comigo até alta madrugada, no dia do fechamento da edição. Sua presença solidária deu-me tranqüilidade para escrever e foi ele quem aprovou os textos, assim que coloquei o ponto final. Em última instância, o mérito foi também de Mino Carta, diretor de redação, que deu a todos nós liberdade para levar adiante a denúncia.