Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ataques contra a Velha Senhora

Gray Lady Down é o título de um filme de 1978 com Charlton Heston, David Carradine e Stacy Reach como atores. Um submarino nuclear americano é abalroado por um navio cargueiro norueguês e afunda a uma profundidade superior a 400 metros. O filme conta a tentativa, bem-sucedida, de salvar a tripulação.

Gray Lady (A Velha Senhora, numa tradução livre) é o apelido carinhoso pelo qual The New York Times é conhecido há muitos anos. Ao usar o título do filme para escrever sobre o jornal, William McGowan quer passar, pouco sutilmente, a percepção de que o Times afundou. Para que não reste nenhuma dúvida, ele menciona no subtítulo do livro a expressão ‘declínio e queda’. E, ao contrário do filme, não há nele nenhuma tentativa de salvamento. McGowan é jornalista e escreveu para várias publicações, inclusive o Times.

The New York Times está realmente numa situação econômica difícil, com perda de leitores e de publicidade. Mas o livro, embora não ignore esse problema, não se concentra nele. O objetivo de McGowan é mostrar que os erros da linha editorial estão afundando o jornal. Sua crítica é arrasadora.

Realmente, o Times cometeu graves erros e merece ser duramente criticado. É demasiado poderoso para não ser examinado minuciosamente. É, de longe, o órgão de imprensa mais influente e respeitado dos EUA e provavelmente do mundo. Rupert Murdoch, que se tornou seu principal concorrente ao comprar The Wall Street Journal, reconheceu o peso da opinião do Times. Como disse, está sozinho nos EUA como o único jornal de circulação nacional dirigido a uma elite. ‘O noticiário das redes de televisão se baseia nele. E os jornais também. Tem uma enorme influência.’ Murdoch, como dono de jornais e de uma rede de TV, sabia do que estava falando.

Ataques ao multiculturalismo

Mas se o Times merece críticas, McGowan talvez não seja o crítico mais adequado. Ele aponta uma série de erros, distorções e falta de equilíbrio nas páginas do jornal. Como a redução do espaço dado à música clássica e à arte tradicional para promover o rap, as ‘artes populares’ e o ‘radical chic’; os critérios de escolha para a resenha de livros; a política de contratação e promoção de minorias, dentro do jornal, sem consideração ao mérito; a extremada preocupação em ser politicamente correto; a tendência liberal, ocasionalmente exagerada. A lista é longa. O autor relembra os casos de Jayson Blair, o repórter que inventou dezenas de notícias; de Judith Miller, a jornalista que escrevia sobre as armas de destruição em massa que dizia haver no Iraque; e mesmo de Walter Duranty, o correspondente que ignorou a fome na União Soviética que matou milhões de pessoas nos anos de 1930. Quase todas essas críticas são corretas; em sua maioria reciclagem – distorcida e exagerada – de velhas observações de terceiros ou de autocríticas do próprio jornal.

O ponto crucial é a chocante falta no livro do equilíbrio e da moderação que McGowan exige do Times. Ele dispara contra o jornal a partir das posições da direita americana. Combate a imigração de latinos e muçulmanos por considerá-los um perigo para o futuro dos EUA e fica alarmado com o elevado número de filhos de mulheres imigrantes. É perturbador, diz ele, que relativamente poucos muçulmanos vejam na guerra dos EUA contra o terror um esforço sincero de reduzir o terrorismo. O autor fica chocado com a preocupação do jornal em defender os muçulmanos, depois do 11 de setembro, contra eventuais ataques de ‘islamofobia’.

Se o jornal exagera na defesa, às vezes ingênua, do multiculturalismo, o autor parece ser contrário à variedade cultural e à diversidade racial do país e ataca o presidente Barack Obama por considerá-lo produto desse multiculturalismo e o Times por defendê-lo. O livro também arremete contra a juíza Sonia Sotomayor, de origem porto-riquenha, a quem acusa de racista, indicada por Obama para a Corte Suprema, com a bênção do jornal.

‘Enganar a imprensa usando táticas tóxicas’

Se nada de bom tem o autor para dizer de Paul Krugman, Frank Rich e outros colaboradores liberais do jornal, não falta simpatia pelos principais expoentes da direita e da extrema-direita americana, como Bill O´Reilly, da Fox News, Ann Coulter, Dinesh D´Souza, Rush Limbaugh ou o ‘Tea Party’.

Ao mesmo tempo que comenta ‘a falta de seriedade política e moral’ do Times, McGowan corre na defesa do ex-presidente George W. Bush, que considera ter sido por ele injustamente criticado. O jornal, por exemplo, apesar da pressão do presidente, divulgou informações confidenciais sobre a instalação de escutas clandestinas nos EUA, pela Agência de Segurança Nacional (ASN), sem autorização judicial. O autor aprova sua instalação e a reação de Bush, que considerou a publicação da notícia ‘ato vergonhoso’ que ajudava o inimigo e disse que o Times tinha ‘sangue nas mãos’.

Um grupo de 14 dos principais especialistas em direito constitucional enviou uma carta aberta ao Congresso dizendo que as escutas não eram legais e que o presidente não podia, simplesmente, violar a lei atrás de portas fechadas. A Justiça decidiu contra a atividade da ASN por ser inconstitucional e o Congresso se recusou a prorrogar o Patriotic Act (Lei Patriótica). Em represália, a Casa Branca orquestrou uma violenta campanha contra o jornal.

O editor da revista The New Yorker, David Remnick, que tinha apoiado a invasão do Iraque, escreveu: ‘Mais que qualquer outra Casa Branca na história, a de Bush tenta negar, ridicularizar, enfraquecer, deixar de lado, desvalorizar, intimidar e enganar a imprensa usando táticas tóxicas.’ E disse que, dado o histórico de desonestidade e incompetência do governo no Iraque, não era difícil discernir por que a Casa Branca encontra um inimigo nos editores do Times: a proximidade das eleições.

Rigorosa, equilibrada

Nem a carta dos especialistas em direito constitucional, nem a opinião de Remnick, são mencionadas por McGowan; sua visão do caso é que as escutas da ASN não eram ilegais, mas sem dizer por que, e que o Times foi desonesto e partidário.

Ao mesmo tempo, minimiza escândalos como os das prisões de Guantánamo e Abu Ghraib. Ele usa com frequência a palavra ‘tortura’ entre aspas, chega ao ponto de justificá-la e diz que outros preferem usar a expressão ‘abusos’. Reproduz a opinião de um colaborador do Wall Street Journal de que as contínuas notícias sobre Abu Ghraib no Times ‘tinham a intenção de desacreditar a legitimidade da guerra no Iraque’.

Quando o Times escreveu que a tortura não funciona, McGowan se apressa em transcrever a opinião de Robert Kaplan, um escritor conservador, e de ‘muitos outros’, dizendo que a tortura funciona. E, quando o presidente Obama proíbe o uso da tortura, o autor cita, com aprovação, o mesmo colaborador do Journal dizendo que, com essa medida, a guerra ao terror foi limitada a não muito mais do que uma conversa dura. Diz, justificando a necessidade da tortura, que, segundo o almirante Dennis C. Blair, as ‘técnicas avançadas de interrogação’ tinham possibilitado informações importantes para melhor entender a al-Qaida, uma declaração que parece bastante vaga. O Times é também escorraçado por dizer que a tortura é imoral, enquanto ‘comentaristas experimentados’, que o autor não menciona, dizem que se trata de uma ‘área cinzenta’.

É dessa área moralmente cinzenta que McGowan avalia o desempenho jornalístico do Times. No longo veredito final, o autor dispara contra o Times acusações de antiamericanismo, falta de patriotismo, arrogância antiburguesa, hipocrisia, desonestidade intelectual, relativismo cultural. É inútil procurar por alguma qualidade que equilibre tanta maldade e incompetência.

Em março de 1978, quando foi lançado Gray Lady Down, o crítico de cinema Vincent Canby, do New York Times, massacrou o filme. Certamente, ele faria a mesma coisa com o livro do mesmo nome, que deixou de fazer uma avaliação rigorosa, equilibrada e cada vez mais necessária do jornal. Os exageros tiraram força às críticas dos muitos e inegáveis erros da Velha Senhora, que não afundou e continua viva.

******

Autor do livro Os Melhores Jornais do Mundo; está preparando estudo sobre os jornais brasileiros