Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Aventuras de um repórter ousado

Ao completar 45 anos de carreira profissional, Luiz Salgado Ribeiro oferece um presente aos jovens e aos brasileiros de modo geral: o livro Andanças – histórias de um jornalista à moda antiga. Seus capítulos dão o sabor de folhear novamente as páginas de O Estado de S. Paulo, formatadas em oito colunas, com seções fixas de Terras, Índios, Igreja e a última página sempre reservada a uma reportagem especial.

O livro está sendo lançado neste 20 de abril, em São Paulo. Em relatos emocionantes e esclarecedores, Salgado testemunha uma parte significativa da vida no Brasil Central e na Amazônia dos anos 1960 e 70. Para a Primavera Editorial, o livro, caracterizado por relatos emocionantes e esclarecedores, agradará jovens jornalistas interessados na história da imprensa brasileira.

Paulista de Pindamonhangaba, o autor de Andanças começou a trabalhar em 1964, na revisão do extinto A Gazeta, mas alcançou o auge da carreira no Estadão. Foi correspondente em Manaus e coordenou a criação da Agência Estado. Trabalhou também na Folha de S.Paulo. Durante a chegada de gaúchos retirados da Reserva Indígena de Nonoai (RS), mudou-se para a recém-nascida Canarana, no leste de Mato Grosso, e ali editou o Jornal da Terra.

Uma espécie em extinção

Suas histórias se misturam à trajetória do jornalismo nacional. Ele viveu talvez o melhor tempo de bom plantio e de grandes colheitas no Estadão, bem antes do fax e do e-mail. Tempo em que o rádio, o radioamador, o telefone a manivela, os correios, os cabineiros – que recebiam notícias com o fone no ouvido –, os telex, os teletipos e os tradutores faziam pulsar o jornal, de Beirute, a capital do Líbano, a Rio Branco (AC).

Por sinal, foi esta a descrição perfeita do cotidiano do Estadão, noticiada numa reportagem especial a respeito do dia em que o jornal celebrou cem anos de vida independente, em quatro de janeiro de 1975.

Quatro décadas atrás, o repórter especial Salgado acompanhou construção da rodovia BR-230, a Transamazônica. Com muita disposição, indiferente a permanecer semanas e meses longe de casa, participou de contatos com indígenas isolados ao longo da rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém); conviveu com os sertanistas irmãos Villas-Bôas; e ajudou o pastor luterano, líder cooperativista e deputado constituinte Norberto Schwantes a construir cidades na selva mato-grossense. Enfim, preferiu retratar o Brasil real, mesmo tendo oportunidade de conhecer países europeus.

A respeito de si mesmo e da transformação vivida pelas redações, o autor desabafa:

‘Como a onça pintada, o urso panda e a baleia azul, eu também pertenço a uma espécie em extinção: a dos jornalistas que viveram o tempo em que um jornal de papel e tinta tinha muito mais informação, emoção, vida e força que o jornalismo da televisão.’

Os índios gigantes

E a óbvia conclusão, diante de um público possivelmente anestesiado diante do tempo real da internet e talvez conformado com a essência dos jornais da atualidade, feitos sem aquele investimento tão salutar na reportagem, mesmo aquelas feitas nos cafundós do Judas:

‘Com tamanhas e tão profundas transformações no ecossistema dos jornais, que jornalista da velha espécie poderia, ou ainda pode, sobreviver? Pena, nenhuma ONG protestou. Pior, parece que nenhum leitor também.’

Página 110 – ‘(…) Em janeiro de 1972, eu e o fotógrafo Rolando de Freitas acompanhamos o início da expedição dos irmãos Orlando e Claudio Villas Bôas, que procuravam afastar os índios kranhacârores da rota da rodovia Cuiabá-Santarém.

Esses índios estavam completamente isolados, não tinham contato nem com outros índios da mesma nação. Eles viviam perto da divisa do Pará com o Mato Grosso, na altura da Serra do Cachimbo e deveriam ser levados para o Parque do Xingu porque a sobrevivência deles estava ameaçada pela estrada.

Eles eram tidos como gigantes por um fato curioso: anos antes, quando os Villas Bôas contataram os txucaramães, encontraram na tribo um índio, chamado Mengrire, com 2,04 metros de altura. Como os demais não chegavam a 1,80 m, isso chamou a atenção. Os irmãos sertanistas procuraram saber a história de Mengrire e os txucaramães disseram que ele havia sido roubado, ainda criança, de uma tribo, a dos kranhacârores e que lá, todos eram altos como ele.’

Na Folha, o arquivo era ruim e ninguém consultava

Página 130 – ‘(…) A construção da Transamazônica foi a principal peça de propaganda do governo Médici. No final dos anos 1970, todos os jornais e revistas do país estampavam reportagens ufanistas a respeito da estrada, apresentando-a como a grande solução para integrar e desenvolver a gigantesca região coberta de selvas e, até então, praticamente intocada. Todos, não.

Desde a tal entrevista dada e negada pelo diretor do DER do Amazonas, o Estadão apresentava críticas contundentes ao grande projeto federal, apontando falhas que iam da concepção até a contratação de empreiteiras…’

Página 229 – ‘(…) Trabalhar na Folha depois de ter passado pelo Estadão foi uma sensação semelhante à de um músico que deixa de tocar em uma orquestra e vai para uma dixieland band, troca partituras e rígida coordenação de um maestro pelo completo improviso.

No Estado, o repórter tinha à disposição um ótimo arquivo, onde podia encontrar, com facilidade, tudo que já fora publicado sobre o assunto que ele iria tratar naquele dia. Aí dava para ver qual a posição do jornal sobre aquele assunto e muitas outras coisas que seriam básicas para escrever uma boa matéria.

Além disso, os editores sempre enfocavam os pontos que deveriam ser destacados na reportagem e o repórter ia para a rua com a cabeça feita sobre aquele assunto. Na Folha, nada disso. O arquivo era ruim e ninguém o consultava.

Nair Suzuki, a pauteira da editoria de Economia, tinha na cabeça todos os acontecimentos da área. Era um verdadeiro computador. Ajudava muito os repórteres a encontrar o foco para suas matérias, mas em síntese, suas pautas podiam ser traduzidas mais ou menos assim: `O assunto é tal. Vá lá e faça uma boa matéria!´’

‘Velhos repórteres, libertem suas histórias’

Coordenador-chefe de sucursais e correspondentes do Estadão entre os anos 1960 e 1970, o jornalista Raul Martins Bastos apresenta o livro, dando a noção exata de como tudo funcionava. Para ele, se todos os velhos repórteres fizerem o que fez o autor de Andanças, haverá como resgatar e preservar tudo:

‘Resgata-se a memória de um período extraordinário, complexo, rico, perigoso e fascinante de nossas vidas e da nossa história. Luiz Salgado Ribeiro não quer que sua história fique aprisionada nos arquivos – e nem em lugar nenhum –, daí a principal missão deste livro. Que, de certa maneira, é também um convite, uma convocação para os então jovens repórteres daquela época fazerem o mesmo. Libertem suas histórias.

Distribuídos por todos os estados, eles somavam 150. Todos trabalhavam todos os dias, o ano inteiro, cobrindo tudo, do arbítrio ao futebol.’

Para Bastos, há muito a ser contado e precisa ser contado por quem a viveu em todas as várias frentes do jornalismo daquela época.

Não que as outras histórias – do papel do jornalismo no enfrentamento dos anos de chumbo – não tenham sua imensa importância aqui reconhecida, é bom que fique claro. Mas, a bem da realidade, não se deve deixar que só apenas o relato do jornalismo de combate ocupe totalmente a história do jornalismo daquela época. Por que? Porque a despeito das dificuldades, da censura, das prisões, das torturas de jornalistas, o jornalismo avançou como nunca tinha avançado até então.

Os repórteres mateiros

Do Departamento de Produção saíam pautas, autorizações para viagem, pagamentos e tudo quanto se relacionasse à vida do correspondente. Pontual nas recordações da época de ouro do jornal, Bastos lembra que o Estadão possuía um corpo de repórteres de primeira linha.

Aliás, vários corpos de repórteres: os especiais, geral, saúde, educação, esportes, cultura, tecnologia, política, o de correspondentes nacionais, internacionais, do interior, uma enorme e magnífica máquina de capturar e produzir informações espalhadas por todo o país e no exterior, explica Bastos.

O doutor Júlio Mesquita Neto bancou tudo isso e muito mais. E muito mais foi a corajosa luta contra a ditadura, a censura, o arbítrio. Dr. Júlio precisa ter a sua história resgatada e contada direito, com o respeito e a consideração que ele merece.

Na Rua Major Quedinho nº 28, no prédio de esquina com um baita relógio no alto e, à altura do 1º andar, as manchetes correndo o dia todo no painel luminoso, Bastos comandava no centro de São Paulo uma gloriosa equipe espalhada por fronts a centenas e milhares de quilômetros de distância da sede.

Nesse mundão de repórteres, havia uma turma que quase nunca víamos, uns ermitões, uma espécie de legião estrangeira das missões impossíveis que, na falta de um nome melhor (e qual seria o nome melhor?), eram conhecidos como repórteres mateiros pela simples e boa razão de que trabalhavam preferencialmente no mato, no fim do mundo, no Brasil desconhecido. Eram eles que davam conta do mundo inimaginável para os leitores do Brasil e, pela reprodução de suas matérias, também aos leitores do mundo.

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Jornalista, editor do site Amazônias