Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Borat vai ao Congresso Nacional

Quem assistiu ao escrachado e engraçadíssmo Borat, de Sacha Baron, deve lembrar-se bem da cena em que o protagonista é agarrado por pastores e fiéis em êxtase para fazê-lo ‘aceitar Jesus’, quase na marra. Mas quem pensou tratar-se de uma encenação satírica se enganou redondamente: era um caso de candid camera, o humorista filmou o que realmente acontecia ao seu redor.

O episódio é lembrado por Umberto Eco num artigo para o jornal espanhol El Periódico (29/11/2008). Ironiza o autor de O Nome da Rosa:

‘Qualquer uma dessas cerimônias dos fundamentalistas norte-americanos faz com que o rito napolitano da liquefação do sangue de San Genaro pareça uma reunião de estudiosos da Ilustração.’

No resto do artigo, Eco observa, um tanto alarmado, que é cada vez menor a diferença entre as igrejas fundamentalistas – que pregam contra o aborto, contra Darwin, contra os judeus, contra a integração racial, contra os católicos – e, pasmem, os cultos católicos.

Desde a disputa eleitoral entre Jimmy Carter e Ronald Reagan (1979), a religião mostrou que veio para ficar de vez na política. As seitas fundamentalistas se alinharam com Reagan, que correspondeu às expectativas, nomeando juízes contrários ao aborto para a Corte Suprema. Se antes a isso se opunham os católicos, estes vão hoje se aproximando cada vez mais das posições fundamentalistas, retornando ao antidarwinismo e a dogmas anacrônicos. Na fila, estão os lobbies de armas, o fim da assistência médica, a política belicista. Vale não esquecer os pregadores fanáticos que chegaram a admitir a idéia de um holocausto atômico seria supostamente necessário para derrotar ‘o reino do Mal’.

‘Ensino humanista proibido’

Pois bem, aqui entre nós, no fim de 2008, as bancadas evangélica e católica na Câmara dos Deputados ‘conseguiram fazer com que o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia (PT-SP), criasse a CPI do Aborto, para investigar a venda irregular de abortivos como o Citotec e uma rede clandestina de clínicas de aborto no país’ (O Globo, 21/12/2008). Chinaglia, como se sabe, será substituído na presidência da Câmara em fevereiro próximo.

Ao sucessor caberá a instalação da CPI, cujos proponentes, os mesmos que se opuseram à liberação das células-tronco embrionárias, demonstram força: cerca de 220 assinaturas, a intenção de convocar mulheres judicialmente indiciadas por aborto e ameaças de abaixo-assinado com milhões de assinaturas para pressionar o futuro presidente da Câmara. Até o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, está na mira. O líder do movimento, deputado Miguel Martini (PHS-MG), avisa que o ministro será o primeiro a ser convidado a depor para explicar suas ‘teses abortistas’.

Como se vê, menos de um mês depois, o artigo de Umberto Eco, que visava a realidade preocupante dos Estados Unidos, já lança alguma luz sobre o que está acontecendo no Brasil. O risco é esse histórico resíduo do obscurantismo chegar às escolas, à cabeça ainda muito plástica dos muito jovens. Donde, a citação que Eco faz do carismático Pat Robertson, em 1986:

‘Quero que pensem em um sistema de escolas em que o ensino humanista esteja completamente proibido, uma sociedade em que a igreja fundamentalista assuma o controle das forças que determinam a vida social.’

Jesus nos salve!

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Jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro