Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Caça aos dinossauros

Há dez anos o Museu Britânico convidou Harold Bloom para uma palestra sobre a imposição do computador no ato de leitura, transformando aquela relação sensual em virtual. Bloom estranhou. “E o que eu tenho a ver com isso?” Responderam que a função do crítico era defender o livro. Ao que Bloom reagiu: “Mas não há mais o que defender, o livro já é um dinossauro, extinto”.

E continuou em sua casa em New Haven, Connecticut (EUA), alternando períodos no apartamento novaiorquino, ambos abarrotados de dinossauros, lançando no meio tempo mais alguns, o último Anatomia da Influência(dos livros!). Sempre refletindo sobre “esse momento difícil que vivemos” porque o grande problema mundial é a educação. “Fui professor a vida inteira e sei que por aqui não pensamos…”

Em “por aqui” Bloom refere-se ao planeta Terra, Brasil incluso, e foi ele que abriu o caderno dinossauro (“Babelia”) do El País (ver “Canonizador”) no último fim de semana (26-27/11), antecedido pelo retrato do criador de um caldo de cultura televisivo na França, Bernard Pivot, apresentador primeiro do Apostrophes, depois, justamente, do Bouillon de Culture, dinossauros muito bem sucedidos nos anos 1980 e 90. “Quanto mais gente se interessar pelo livro, melhor, a crítica se democratiza pela internet, vivemos um fenômeno de massas”, diz Pivot. Mas, atenção: “Dezenas ou centenas de internautas, quando recomendam um livro, influenciam na sua compra, mas as críticas literárias na internet não vendem livro”. E cita o pior defeito dos críticos: “Quando escrevem para eles mesmos ou para os amigos. Não escrevem para o público”.

Sem informar, sem entretar

O crítico literário alemão Marcel Reich-Ranicki que também manteve a literatura em dia na televisão com Quarteto Literário, reconheceu: nessa área falta independência, potência e provocação. Na mídia virtual, a atividade é decepcionante. Contrariando o título do livro de Bloom, Reich-Ranicki lastima: a crítica literária perdeu a influência.

Em A Arte da Ficção o crítico inglês David Lodge alerta para uma distinção fundamental – a crítica literária erudita e aquela feita por jornalistas de obras recém-lançadas, subliminarmente para divulgá-las. Segundo Lodge, ambas tornaram-se lamentáveis. A primeira ficou impenetrável, fechada no seu acadêmico castelo do saber. A segunda, pouco analítica e muito subjetiva. Sugere: “Um crítico não deve aproveitar a ocasião para fazer política literária, um favor a um amigo, para vingar-se de alguma mágoa pessoal do passado ou aproveitar a ocasião para mostrar que é mais inteligente do que o autor resenhado”. Por que não utilizar o simples recurso de respaldar as opiniões com argumentos e exemplos instigando o leitor a tirar suas conclusões?

Nem tripudiar nem babar em cima, são algumas das regras do jornalista Manrique Sabogal depois de ouvir pelo menos 15 especialistas sobre o que deve ser uma crítica equilibrada (ver “Radiografía de la crítica literária”).

1.Situar o autor, dizer quem é e o que representa o livro em sua obra;

2.Situar o livro, julgá-lo com a perspectiva de uma larga tradição literária;

3.Utilizar argumentos racionais para que o leitor possa compreender e julgar;

4.Informar, educar, entreter;

5.Pouca sinopse e trama levemente destrinchada;

6.Informar sobre o estilo, o significado e a carga simbólica do livro;

7.Dizer o que o autor pensa sobre o tema do livro;

8.Dizer o que o crítico pensa sobre o que o autor do livro diz sobre o tema do livro;

9.Nem tripudiar nem babar. A opinião ponderada e a fundamentação na medida são mais convincentes do que uma qualificação definitiva e brutal;

10.Estão proibidos adjetivos publicitários. Afinal quem deve tirar conclusões é o leitor.

O suplemento “Babelia” do fim de semana dá uma aula e faz pensar sobre a tristeza de Harold Bloom. Nós não pensamos. A crítica literária brasileira, com raras exceções, deixou de ser crítica. Atenta contra os 10 mandamentos de Sabogal especialmente o quinto. Por que devemos ouvir tintim por tintim a trama de um romance, às vezes até a chave do final (“Hi!, já contei!”, lastima o crítico vulgo divulgador), sem argumentos racionais, sem conhecimento do resto da obra ou do panorama literário (secular!), com rasgos de superficialidade ancorada por adjetivos supérfluos, excessivos, que lembram a queixa de Lodge – “um crítico não deve aproveitar a ocasião para fazer política literária, um favor a um amigo, para vingar-se de alguma mágoa pessoal do passado ou aproveitar a ocasião para mostrar que é mais inteligente do que o autor resenhado”? Sem informar. Principalmente sem entreter nem velhos nem novos leitores. Não será por esse motivo que o suplemento “Folhateen”, da Folha de S.Paulo, fechou, pela falta de talento para atrair o público alvo, os jovens?

Sonho e prazer

Aos amigos tudo, aos inimigos tripudiar; aos marionetes das editoras tudo, porque uma linha, uma resenha, um adjetivo nos veículos de comunicação mata de vez ou vende o livro feito pão quente e promete graças para a divulgação dos próximos lançamentos da mesma editora, que fatura. Aos leitores, a mediocridade, a descrição da trama, da história, como se isso fosse o mais importante numa obra literária. Não é.

 O vencedor do prêmio Brasil Telecom deste ano, Rubens Figueiredo (Passageiros do Fim do Dia, Companhia das Letras), foi um dos editados por Edney Silvestre na Globo News (Espaço Aberto Literatura) do último fim de semana. O autor, meio sem jeito de olhar para a câmera e mais à vontade com os dinossauros que o cercam, ensinou melhor do que qualquer crítico por que começou a traduzir literatura direto da língua russa e acaba de colocar nas estantes um primor de Guerra e Paz,de Tolstoi, em português. “Mergulhar nesse universo do século passado ou retrasado ensina uma forma de fazer literatura que não tem nada a ver com essa do mercado de hoje, que as pessoas se habituaram a fazer (a ler e a criticar)”.

Falta carga simbólica. Falta o que o músico de jazz italiano Paolo Conte (o último disco, Nelson,é dedicado a seu cão) usa para se defender da mesma tristeza de Bloom: “Vivemos tempos sombrios, não se respira no mundo um ar artístico e falta roupa nova”. Como artista ele diz que nunca se deixou influenciar pela realidade. “Mantive a comodidade do sonho, da fábula, o prazer de contar algo sem me deixar influenciar por problemas que podem me afetar como cidadão, mas não como artista”.

Falta abstração. Falta leitura. Falta distância do mercado.

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[Norma Couri é jornalista]