Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Chatô, a resenha que faltava

O Kaiser Guilherme II, da Alemanha, tinha o braço esquerdo defeituoso. Por conta disso, desenvolveu extraordinária força no braço direito. Seu aperto de mão era forte como ferro. E ele aumentava essa sensação virando os anéis da mão direita para dentro, de modo que as pedras se cravassem profundamente na carne dos que o cumprimentavam.

A não ser as vítimas dessa brutalidade, ninguém ficaria sabendo disso não fosse pela ação de Robert Massie, jornalista do Newsweek e depois do The Saturday Evening Post. Ao escrever o livro Nicolau e Alexandra, onde conta a vida do sucessor de Alexandre III, da Rússia, teve que falar também desse inacreditável Kaiser Guilherme II.

Em terras do Brasil, num lugar remoto chamado Umbuzeiro, nasceu um sujeito que tinha um dom singular. Fazer o possível agora e o impossível daqui a pouco.

E assim foi que esse personagem atravessou o mundo e foi dar na Inglaterra, tendo conseguido colocar uma roupa de cangaceiro em sir Winston Churchill e urinado dentro da Abadia de Westminster, no dia da coroação da rainha Elisabeth II, sem fazer uso dos sanitários.

Por sua ousadia, foi um aventureiro e por sua força de persuasão, foi um feiticeiro.

O percurso da vida desse personagem igualmente não chegaria a nosso conhecimento, não fosse o escritor Fernando Morais uma espécie de garimpeiro incansável e destemido.

Sim, porque o livro é um livro escrito sem medo.

O sorriso e a trapaça

Diz a lenda que, tendo tido negada sua entrada no inferno e sem ter para onde ir, Assis Chateaubriand foi condenado a vagar pelo éter, interferindo nos sinais de televisão.

Esse episódio é omitido da biografia escrita por Fernando Morais, visto que ao ensejo da elaboração da obra, ainda não era do conhecimento de ninguém.

A História é uma entidade abstrata, mas de nobreza certa e garantida. Por isso mesmo, a História não está disponível para quem quiser nela entrar. É preciso ter o aval dos homens.

Mas, a História também tem seus invasores. Para esses, a História fica com a porta fechada e, em tese, não lhes caberia entrar. Mas, aí se dá o mistério.

Vem um arataca lá do sertão de Pernambuco, abusado como ele só, bate em tudo que é porta, revira meio mundo, dá um pontapé na porta da História e entra.

Chateaubriand, desde moço, quando tudo começou, estabeleceu os símbolos que predominariam em sua vida por todo o tempo que lhe foi permitido respirar: o sorriso e a trapaça.

Conchavos e sinecuras

Não se trata aqui, convém explicar, de desancar a memória desse cidadão. Confesso que ao terminar a leitura do livro era essa minha intenção. Mas mudei, meu caro leitor, tive que mudar. Resolvi dar uma chance a esse filho da pátria.

No processo de fazer o texto, eu quis queimar-me na heresia de embarcar numa de ‘gostei disso’ e ‘não gostei daquilo’.

Mudei de novo, disposto a fazer uma análise psicológica desse personagem. Mas, verifiquei que não era o caso. Então resolvi pela difícil tarefa de só falar da obra, deixando para o final algum julgamento do personagem, se a inspiração me socorresse.

É uma obra onde o substantivo manda e o adjetivo obedece. Isso eleva seu valor. Para mim, o substantivo é a força de qualquer obra literária.

Retrata com a simplicidade de quem conta um caso da vida de um sujeito complexo, com um comportamento de difícil aceitação.

A obra mostra um panorama político ainda inalterado. As armações para favorecer candidaturas, os conchavos e as sinecuras.

Um murro na cara do poder

A realidade do poder da mídia como forma de alterar o próprio destino de uma nação, ou de intimidar pessoas, prevalecendo esse poder mesmo sobre princípios basilares da ética mais simplória. Assim, no tempo enfocado, ser educado e fino passa a ser algo secundário, se não desprezível. Pessoas tidas como de alta estirpe terminam por se curvar diante da selvageria e da barbárie, representadas por agressões verbais publicadas em páginas de jornais.

O livro tem um clímax que fica lá pelo meio, um pouco adiante, talvez. E um grande herói a quem só são dedicadas algumas linhas. Nem precisava mais. Vou revelar o nome dele, pois isso não vai comprometer nada para o leitor que ainda não leu. O nome é Paulo Bockel e seu feito foi dar um murro na cara de Assis Chateaubriand.

Não um murro qualquer, tipo murro de briga de rua ou murro de luta de boxe. Foi um murro redentor. Foi um murro na cara do poder. Um murro que eu já vinha há páginas me perguntando por que ninguém dava.

Pequeno, feio e falso

Um livro impressionante.

Leia, caro leitor, mas, fique calmo.

É perda de tempo esmiuçar as estripulias do personagem aqui, que isso é coisa para o leitor buscar no livro. Mas, de tal forma surpreende a forma como viveu, e de tal maneira rompeu com as convenções, que cabe dizer alguma coisa.

Tido pelas resenhas tipo ‘oitava série’ como ‘grande empresário’, isso, no duro, nunca foi. Apenas comprava empresas; não administrava nada. Mecenas, menos ainda. Teve pela pintura um deslumbramento de neófito, movido apenas pela superficialidade estética e pelo valor de mercado. Nunca foi, por falta da cultura específica, seletivo quanto a estilos.

Era mal-educado e pirracento como uma criança. Chamar o marechal Mascarenhas de Morais de imbecil foi um de seus feitos, assombrando o próprio filho, Gilberto, já diplomata de carreira. Tinha noção do certo, mas fazia o errado, para transgredir.

Sua verborragia virulenta era a forma que encontrava para expressar a tempestade que lhe ia dentro.

Era tomado de complexos.

Sentia-se pequeno, porque era baixo de estatura; sentia-se feio, porque, longe do tipo apolíneo da Germânia que amava, era irremediavelmente atarracado; e sentia-se burro, porque, mesmo diplomado, senador, embaixador e virtualmente poderoso, vivia o drama dos falsários. Sabia que sua vida era uma grande fraude. Ele sabia que não existia ou que se existia, não era legítimo. E ainda tinha o problema de carregar dentro de si as imagens dos jagunços sangradores de homens que povoaram sua infância. Desses, não se livraria jamais.

Ciente das novidades

Em análise psicológica sumária, pode se dizer que é possível que Assis Chateaubriand, de modo inconsciente e mercê de seu temperamento, tenha empreendido uma espécie de fuga do farisaísmo.

Ao rejeitar o caráter social da moral e fugir de qualquer espécie de dogmatismo, imprimiu à sua vida certo modelo de individualismo transgressor. Decidiu romper com as interdições, hierarquizações e sistemas simbólicos que delimitam e separam o homem do animal.

Na sua dialética interior, instintivamente, repito, conviviam em cumplicidade profunda a lei e a violação da lei; a ordem e a subversão da ordem.

Na falta da cultura necessária que lhe permitiria escolher uma linha filosófica de comportamento, estabeleceu para si um relativismo pessoal onde tudo era permitido.

Nem mesmo o fato de ter sido pioneiro na implantação da televisão no Brasil se constitui em feito excepcional. Merece registro apenas. O fato de ser o mais importante homem de mídia da época lhe conferia a obrigação de buscar estar ciente das novidades. O contrário seria omissão.

Rumo ao impossível

Tal era o homem.

Na busca de uma explicação para esse comportamento diferenciado busquei socorro.

E a solução veio de um ensaísta português, recentemente falecido, chamado Eduardo Prado Coelho.

Segundo esse autor, a existência humana se divide em autêntica e inautêntica. Ensina ele que na inautêntica, predominam as diversas formas de alienação próprias da vida em sociedade. Nela, há os instrumentos opressivos do capitalismo, o universo modelar do catecismo e da ‘moralina’ das boas ações e dos bons sentimentos. É o mundo dos discursos de inauguração e dos artigos de fundo, do adocicado da palavra virtuosa, da mediocridade resignada e quase feliz no seu destino dócil, livre de dúvidas. É o mundo dos comuns.

Já na autêntica, o homem se lança na exploração do possível, rumo ao impossível que lhe acena e o obceca, lugar absoluto da ação, limiar da loucura.

Esse, parece, era o mundo de Assis Chateaubriand.

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Estudante, Nova Iguaçu, RJ