Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Ciência, comunicação e cultura científica

Hoje, como nunca aconteceu em toda a história, fala-se em comunicação científica e tecnológica; hoje, como nunca, há governos nacionais ou regionais que apóiam a criação e as atividades no campo da cultura científica e tecnológica; e hoje, como nunca, as próprias instituições científicas e as universidades consideram que a divulgação não é uma desonra, mas faz parte de sua obrigação. Os meios de comunicação de massa já não têm medo de tratar da atualidade das ciências e das tecnologias e recorrem a essas para esclarecer a atualidade em geral. Nunca como neste momento a investigação e o desenvolvimento das ciências e das tecnologias exerceram tão grande influência no nosso modo de vida e de trabalho, nas nossas concepções de espaço e tempo, nas nossas capacidades de intercâmbio e de comunicação em todo o planeta.

Apesar de tudo isso, embora sejam inúmeras as razões em favor da divulgação das ciências e das tecnologias, nota-se um significativo declínio em geral do número de alunos matriculados nas carreiras científicas das universidades. A falta de adaptação do ensino científico não basta para explicar esse paradoxo. Acaso haveria um caráter desumano intrínseco nas ciências que impeliria os jovens, em um número cada vez maior, a se afastar dos estudos científicos superiores? A pergunta permanece em aberto e, aparentemente, multiplicar os argumentos a favor não basta para modificar essa tendência. Outro paradoxo é o fato de que, ao reconhecimento da importância das ciências e das tecnologias pelo grande público, não corresponde um grau elevado de apoio aos centros de cultura científica. É preciso destacar que o público que freqüenta esses centros é composto, praticamente em sua maioria, de escolares acompanhados por professores preocupados em tornar suas disciplinas algo mais lúdico e atraente. Se abstrairmos esse segmento importante de visitantes que não decidem por si mesmos, o número de freqüentadores desses centros de cultura científica faz ressaltar um custo por visitante particularmente elevado para o contribuinte, em termos de investimentos.

Apesar dos resultados ocasionais em decorrência de fenômenos astronômicos, como a passagem de um cometa, ou da capacidade de comunicação de algumas notáveis personalidades científicas, a eficácia da divulgação das ciências e das tecnologias continua abaixo dos ambiciosos objetivos expressos em suas finalidades. É, pois, legítimo indagar sobre a lucratividade dos investimentos públicos nesse campo. Podemos nos perguntar sobre os consideráveis recursos que são gastos para erguer essas neocatedrais ou igrejas modernas, os modernos centros de cultura científica, em geral dotados de pêndulos de Foucault em lugar de campanários, e de laboratórios interativos em lugar de capelas, nos quais batalhões de escolares correm de uma atração para outra, dedicando um tempo reduzido a cada uma delas.

Tendência recorrente

Quais são as verdadeiras funções sociais, ou midiáticas, desses monumentos emblemáticos de concreto e vidro? Embora ninguém recuse esses generosos recursos em favor da ciência e de seu conhecimento aprovados pela coletividade, eles não são suficientes para realizar o projeto fundamental e histórico da divulgação das ciências e das tecnologias: aproximar, compartilhar e estimular. Então, quais são as estratégias que devem ser postas a serviço da divulgação das ciências e das tecnologias? A pergunta parece muito mais básica do que as rituais proclamações sobre o papel da ciência em nosso mundo e o imperativo de divulgá-la! Raramente bastou invocar e celebrar as mais belas e louváveis intenções do mundo, para que elas se traduzissem em realidade.

Na década de 70 do século passado, manifestou-se na Europa uma crítica contundente ao modelo tradicional de divulgação científica, acusando-o não apenas de estar dirigido a públicos cultos, que já tinham acesso à informação científica e tecnológica, mas também de sua ineficácia para cumprir as ambições de seu projeto inicial. Nessa perspectiva, o movimento da ação cultural científica na França desenvolveu modalidades estratégicas indiretas, a partir de situações cotidianas. Privilegiando um enfoque para o estabelecimento de relações com os não-especialistas, esse movimento deixava em segundo plano o tema dos conteúdos científicos, uma vez que, quando falta interação, a mais bela mensagem não tem outro destino senão o fracasso tático, estratégico e político. Enquanto a estratégia direta compromete e mobiliza recursos importantes de modo óbvio e explícito, a modalidade indireta, menos visível, insiste em uma compreensão das situações que lhe permite associar-se a dinâmicas e recursos alheios aos seus, sem que, às vezes, isto seja notado. Sendo realista, esse movimento reconheceu que, excluindo-se os cientistas e os convencidos, a palavra ‘ciência’ assusta a esmagadora maioria dos cidadãos, não apenas porque faz lembrar o doutor Mabuse e outros Frankensteins, mas também porque traz à memória fracassos escolares por incapacidade de compreensão ou de manipulação de conceitos. Com demasiada freqüência, o ensino das ciências funciona como um fator de seleção dos ‘bons’ e de exclusão dos ‘maus’. Depois, logicamente, slogans como ‘a ciência é divertida, criativa e ao alcance de todos’ … parecem mentiras!

Assim como não é suficiente enunciar um projeto, tampouco basta definir uma estratégia. Todas as flechas devem atingir seu objetivo, e não onde a gente quer ou diz que ele está, como, por exemplo, em um museu ou em um centro de cultura científica. A estratégia não é uma ciência exata, porque as condições nunca são semelhantes, porque os seres humanos pensam, se movimentam, compreendem, se perdem, aprendem, se adaptam e concebem contra-estratégias, pois é isso que exige sua sobrevivência, dependendo daquilo a que se aferram. Enquanto isso, as palavras-chave da estratégia são liberdade e criatividade: liberdade, porque se trata da livre vontade reivindicada de forma explícita ou implícita, e criatividade, não apenas porque as condições mudam e convém adaptar-nos a elas, mas porque o homem é um ser astuto que raramente se satisfaz com um estado de coisas permanente, impossível de contornar e refratário a qualquer alteração. Como explicar que os aviões, que há apenas cem anos eram chamados de mais pesados que o ar, voem? Porque uns loucos, do ponto de vista do sentido comum da época, não só sonharam com isso, mas também construíram máquinas incríveis para consegui-lo. A estratégia, fundamentalmente humana, faz com que a ordem das coisas minta. Ela permite dizer: não aceito o estado atual das coisas e vou inventar para transformá-lo.

É nisso que se baseia a razão de ser da divulgação, a comunicação das ciências e das tecnologias, da qual temos liberdade de participar ou não, cuja mensagem continuamos livres para entender bem ou mal, ou para entendê-la em parte, ou entendê-la ao contrário, ou não entendê-la absolutamente. Não se pode confundir a comunicação das ciências com ensino. Falar de comunicação em lugar de divulgação enfatiza uma relação que representa a condição prévia para que se possa considerar o tema dos conteúdos científicos, mais ou menos densos. A tendência recorrente a reduzir o tema da comunicação da ciência a mera transferência de conhecimento não apenas é uma ilusão, mas freqüentemente produz o contrário da intenção inicial: aproximar, compartilhar e estimular. A comunicação da ciência não pode se furtar a uma reflexão estratégica com o falaz pretexto de que inclui a palavra mágica ‘ciência’!

Dinâmica social

Em toda relação humana notamos a interação de pelo menos duas vontades. No entanto, não é porque uma delas esteja talvez animada por excelentes intenções, por exemplo, a transmissão de conhecimentos, que a outra se abandona como uma esponja sedenta, ávida por desfazer-se de suas representações preexistentes, seus medos ou seus repúdios. É impossível esquecer que o nível zero da estratégia visa à sobrevivência. Todo ser dotado de vontade própria desenvolve espontaneamente estratégias, eficazes ou não, destinadas à perpetuação de suas condições de existência e além de seu possível aprimoramento. O conhecimento particular e subjetivo que cada um amealha a respeito do mundo representa algo íntimo e essencial. Independentemente de seu valor em si, supor que seja possível transformá-lo com a varinha de condão da comunicação, com o pretexto de que as ciências modernas são as únicas dotadas de validade de explicação e poder, é conseqüência de uma ilusão totalitária e perigosa, além do mais ineficaz!

Pois bem, por trás da estratégia espontânea e tradicional da comunicação das ciências e das tecnologias, distingue-se a imposição determinada por essa modalidade direta, segundo a qual o público teria de compreender a ciência (public understanding of science), teria de estar consciente de sua importância (public awareness of science), teria de incorporar um nível de cultura científica indispensável (science litteracy)… Nesta perspectiva, como não perceber na avaliação dos níveis de cultura científica de diferentes países todo um arsenal de justificativas das necessidades de ampliar uma divulgação direta a fim de desenvolver o tema central de uma reflexão estratégica? A modalidade direta procede por comparação, mobiliza recursos importantes com a finalidade de uma interação da qual é esperada uma transformação qualitativa: a redução do déficit de conhecimento científico (déficit model). A esse modelo do déficit de informação e de cultura científica deve-se associar o do déficit estratégico de métodos tradicionais e espontâneos da divulgação científica.

Da mesma forma, de nosso ponto de vista, como tive oportunidade de anotar no artigo ‘A espiral da cultura científica’ [Boletim de Idéias, Fapesp, nº 3, dezembro de 2005, págs. 5 e 6], embora haja distinções teóricas e metodológicas fundamentais entre arte e ciência, há entre elas algo poderosamente comum. Trata-se da finalidade compartilhada por ambas, que é a da criação e a da geração do conhecimento, por meio da formulação de conceitos abstratos e ao mesmo tempo, por paradoxal que pareça, tangíveis e concretos. No caso da ciência, essa tangibilidade e concretude se dá pela demonstração lógica e pela experiência; no caso da arte, pela sensibilização do conceito em metáfora e pela vivência.

Por isso a expressão cultura científica nos soa mais adequada do que as várias outras tentativas de designação do amplo e cada vez mais difundido fenômeno da divulgação científica e da inserção no dia-a-dia de nossa sociedade dos temas da ciência e da tecnologia.

Melhor do que alfabetização científica (tradução para scientific literacy), popularização/vulgarização da ciência (tradução para popularization/vulgarization de la science), percepção/compreensão pública da ciência (tradução para public understanding/awarness of science), a expressão cultura científica tem a vantagem de englobar tudo isso e conter ainda, em seu campo de significações, a idéia de que o processo que envolve o desenvolvimento científico é um processo cultural, quer seja ele considerado do ponto de vista de sua produção, de sua difusão entre pares ou na dinâmica social do ensino e da educação, ou ainda, do ponto de vista de sua divulgação na sociedade, como um todo, para o estabelecimento das relações críticas necessárias entre o cidadão e os valores culturais de seu tempo e de sua história.

Metodologia, prática e aplicação

Louis Berlinguet, no prefácio ao livro When science becomes culture, que contém os trabalhos apresentados no simpósio internacional sobre o tema, realizado em Montreal, Canadá, em abril de 1994, escreve:

‘No passado, o pequeno grupo de cientistas que, com grande dificuldade, examinou as primeiras leis de nosso universo estava circundado pela sociedade. Com a expansão do conhecimento, nas palavras de Pierre Fayard, houve ‘uma revolução coperniciana que tende a fazer com que a ciência gire em torno do público, e não o contrário’. Hoje, quer queiramos ou não, estamos envolvidos em nosso cotidiano pela ciência e pela tecnologia. Desse modo, é melhor tentar conquistá-las do que permanecer passivo em face de seus desenvolvimentos’.

Como é possível realizar essa conquista sem estar envolvido diretamente no processo de produção, de difusão e de ensino e aprendizagem da ciência?

A resposta é ‘Pela divulgação científica’, isto é, pela participação ativa do cidadão nesse amplo e dinâmico processo cultural em que a ciência e a tecnologia entram cada vez mais em nosso cotidiano, da mesma forma que a ficção, a poesia e a arte fazem parte do imaginário social e simbólico de nossa realidade e de nossos sonhos, multiplicando em nossa existência única, e provisória, a infinitude de vidas e vivências que vivemos sem jamais tê-las vivido.

Com a inestimável colaboração de Pierre Fayard – em quem, aliás, esta Introdução buscou inspirar-se, particularmente no artigo ‘El tema estratégico en la comunicacion publica de la ciencia’, publicado no nº 28&29, de abril-setembro de 2003 da revista espanhola Quark, Ciência, Medicina, Comunicacion y Cultura –, planejamos organizar, com apoio institucional da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Centro Franco-Brasileiro de Divulgação Técnica e Científica (CenDoTeC) e a convite da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (USP), o seminário ‘Estratégias para a Divulgação Científica na Sociedade do Conhecimento’, programando-o para os dias 19 e 20 de outubro de 2006 e planejando-o para a discussão e o debate de idéias relacionadas com temas e indagações da família dos aqui apresentados e que, por sua vez, integram a sociedade da cultura científica.

Como resultado ainda dessas cooperações nasceu a idéia de se fazer publicar um volume de artigos, de autores nacionais e internacionais, tratando da comunicação da ciência, da difusão e da divulgação científicas, da percepção e da compreensão públicas da ciência e da tecnologia, tanto do ponto de vista teórico, como dos pontos de vista metodológico, prático e aplicativo. Um volume dedicado aos desafios da cultura científica na sociedade do conhecimento que no resumo do título do livro vem apresentado como Cultura Científica – Desafios.

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Lingüista, presidente do Conselho Superior da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)