Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Como Silvio Santos virou patrão

No livro O Marechal da Vitória (A Girafa), os jornalistas Tom Cardoso e Roberto Rockmann contam como o empresário Silvio Santos passou de camelô a apresentador na TV Globo e acabou virando patrão armando um ‘golpe’ contra o fundador da Record. Para se tornar sócio de Paulo Machado de Carvalho (1901-1992), patrono da Record, Silvio Santos usou um testa de ferro, segundo o livro. Ele tinha um contrato de cinco anos com a emissora de Roberto Marinho que o impedia de se associar a qualquer outro veículo.

Enquanto esperava o fim do contrato com a Globo, Silvio Santos, além da comprar 50% das ações da empresa, emprestou dinheiro para Paulo Machado. Ficou quietinho até se apresentar como novo sócio majoritário.

Leia a seguir trecho do livro O Marechal da Vitória, que fala sobre a ascensão de Silvio Santos.

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Havia muitos anos, Senor Abravanel deixara de vender mercadorias no centro do Rio de Janeiro. A aptidão para os negócios e o inegável talento oratório haviam lhe proporcionado prestígio, dinheiro e um novo nome: Silvio Santos. Estrela da TV Paulista nos anos de 1960, começara como garoto-propaganda das Lojas Clipper e, em pouco tempo, já comandava um dos programas dominicais de maior sucesso da televisão brasileira.

Quando o canal 5 passou para as mãos da TV Globo, em 1966, o animador foi mantido no ar. Roberto Marinho não queria se desfazer de um apresentador que, além de garantir audiência à emissora, pagava, e muito bem, para ser dono do horário.

Silvio Santos assinou contrato de cinco anos com a TV Globo e aos poucos foi tomando conta de todos os horários do domingo. Entrava no ar ao meio-dia e só saía às oito horas da noite. Roberto Marinho não tinha do que reclamar. A emissora atingia picos de audiência com os quadros apresentados pelo animador, como Show de calouros, Show da loteria, Vamos fazer média, Disco de ouro, Quem sabe mais, o homem ou a mulher?, Sinos de Belém e Boa noite, Cinderela. Para Boni e Walter Clark, Silvio Santos podia render uma mina de ouro à Globo, mas, com seu microfone dourado colado à gravata, estava a anos-luz do padrão de qualidade que os dois diretores pretendiam adotar na emissora dali para a frente.

Quando soube que Pipa Amaral colocara à venda as ações da TV e Rádio Record no mesmo ano de vencimento do seu contrato com a emissora de Roberto Marinho, Sílvio Santos não pensou duas vezes. Desprestigiado pelo núcleo de direção da TV Globo, mas rico o suficiente para tomar rumo próprio, o animador convocou Demerval Gonçalves, diretor-administrativo do Grupo Silvio Santos, para articular, em sigilo, a compra dos 50% do Grupo Record. Antes de iniciar as conversas, Demerval, como de praxe, resolveu fazer uma auditoria nas contas da Record. Foi o bastante para desaconselhar o apresentador a entrar no negócio:

‘O passivo, tanto da Rádio como da TV Record, está muito elevado. Sem contar a parte técnica, que precisa ser toda reestruturada. Não entre nessa, Silvio, é prejuízo na certa.’

‘Vou jogar uma ficha no cassino, Demerval. Por mim, o negócio está fechado.’

A transação, intermediada pelos irmãos Marcos e José Lázaro, caminhou normalmente. Silvio Santos, como todo bom negociante, conseguiu convencer Pipa Amaral a vender-lhe parcialmente as ações da Record. Só faltavam alguns detalhes jurídicos para o ex-garoto propaganda da TV Paulista se tornar sócio de Paulo Machado quando a bomba estourou: o grupo siderúrgico Gerdau, uma das maiores empresas do país, acabara de anunciar a compra de 50% do Grupo Record. A proposta era irrecusável: a empresa siderúrgica cobria a proposta de Silvio Santos e pagava à vista.

Silvio Santos sentiu o golpe. Além de perder o negócio na última hora, ele estava prestes a ser descartado pela dupla Boni e Clark, cada vez mais obcecada por aquela história de ‘padrão Globo de qualidade’. Para Roberto Marinho, o animador continuava sendo um garoto-propaganda de luxo. Se o seu estilo popularesco incomodava os dois diretores, não importava enquanto ele mantivesse a audiência em alta e alugasse o espaço na programação, a emissora o manteria no ar. Em 1972, Silvio Santos renovou com a TV Globo por mais cinco anos, mas dessa vez teria de cumprir uma cláusula, sabiamente incluída no contrato por Roberto Marinho: durante a vigência do acordo o animador não poderia ser sócio de nenhuma emissora de rádio e televisão do país.

Como havia perdido a compra da Record, Silvio Santos assinou o contrato achando que não surgiria tão cedo a oportunidade de ser sócio de outros grande grupo de comunicação. Não contava com mais uma surpresa. O Grupo Gerdau entrara no negócio à espera de uma parceria com o Jornal do Brasil, de Nascimento Britto. Seis meses depois, sem que a associação entre os grupos tivesse sido formalizada, a siderúrgica decidiu vender as ações.

Para Silvio Santos, ou ele comprava as ações ou estaria condenado a passar a década alugando horários em emissoras. A cláusula imposta por Roberto Marinho o impedia de fazer negócio, mas não de arrumar um testa-de-ferro. Alguém da confiança, que pudesse comprar os 50% da Record e guardasse o segredo até 1976, quando encerrava o seu contrato com a TV Globo. O apresentador pensou em Manoel da Nóbrega, seu ex-sócio do baú da Felicidade, nos anos 60, mas lembrou que o comediante era muito próximo dos Machado de Carvalho. Era melhor não arriscar.

Silvio Santos recorreu novamente a Demerval Gonçalves, que, antes de se tornar executivo de confiança do apresentador da TV Globo, cuidava da declaração de Imposto de Renda de vários empresários. Demerval lembrou-se de um cliente, Joaquim Cintra Gordinho, milionário que dividia o tempo entre os negócios no interior de São Paulo e na Califórnia. Discreto (quando não estava nos Estados Unidos, passava boa parte do tempo isolado em sua fazenda em Amparo, a 160 quilômetros de São Paulo), distante do mercado de rádio e televisão, Cintra Gordinho era o testa-de-ferro dos sonhos de Silvio Santos. Só era preciso um bom argumento para convencê-lo a fazer parte da trama, o que para Senor Abravanel, que ficara rico vendendo capas de plástico para títulos de eleitor na avenida Rio Branco, no Rio, não chegava a ser um problema.

No dia 14 de março de 1972, num quarto do hotel Hilton, em São Paulo, sentavam-se à mesa os representantes do Grupo Gerdau e o empresário Joaquim Cintra Gordinho. O negócio, fechado no mais absoluto sigilo, passava 50% das ações da Rádio e Tv Record ao misterioso fazendeiro de Amparo. Em casa, Silvio Santos estourava o champanhe: em menos de quatro anos, ele, finalmente, se tornaria sócio de Paulo Machado de Carvalho.

Silvio Santos jamais imaginaria que, semanas depois da transação com Cintra Gordinho, ele receberia um telefonema de Paulinho de Carvalho. Com dívidas cada vez maiores, o patrono da Record havia liberado o primogênito para fazer uma ousada proposta ao apresentador. Sem saber que a Gerdau havia vendido a parte de suas ações a um testa-de-ferro, Paulinho de Carvalho sugeriu a Silvio Santos que comprasse metade das ações da Gerdau e de Paulo Machado. Se o negócio fosse feito, cada um ficaria com um terço do patrimônio da Record.

O apresentador quase engoliu o microfone dourado ao ouvir a proposta de Paulinho. Ele já havia garantido os 50% das ações da Record com a Gerdau e, sem saber disso, o filho do dono da emissora propunha algo que parecia ainda mais vantajoso: o controle do grupo. Se a ideia vingasse, Silvio Santos passaria a ser sócio majoritário. O animador resistiu à tentação. Não seria tão lucrativo assim ser dono de uma empresa com sérios problemas financeiros – estrategicamente era mais interessante acompanhar, de camarote, como Paulo Machado conseguiria manter viva a Record até o final dos quatro anos que faltavam cumprir do seu contrato com a TV Globo.

Paulo Machado estranhou a atitude de Silvio Santos, que meses antes o procurara para comprar os 50% de Pipa Amaral, mas agora dizia não ter o mínimo interesse no negócio. Também era curioso o comportamento da Gerdau. A siderúrgica pagara à vista as ações, decidindo vendê-las pouco tempo depois. O filho, Paulinho de Carvalho, havia consultado a direção da Gerdau em busca de informações, mas a empresa mantinha-se em silêncio, argumentando que o sigilo fazia parte de uma cláusula contratual exigida pelo novo comprador.

Quem era, afinal, o misterioso sócio da Record? Paulo Machado não tinha tempo de brincar de detetive. Se o novo parceiro fazia questão de se manter anônimo, esperando para ver se o barco afundava ou não, ele, como sócio-fundador, não podia se apequenar. A Rádio Record conseguira sobreviver com o fenômeno Zé Bettio, mas a TV Record estava à beira do caos. Conseguir novas linhas de crédito, nem pensar – o grupo já devia uma fortuna aos bancos. A solução seria pedir dinheiro a alguém que conhecesse a fundo as contas da emissora e pudesse liberar o empréstimo que pedira uma auditoria na Record para comprar as ações de Pipa Amaral: Silvio Santos.

O empresário de 1,5 milhão de cruzeiros caiu nas mãos de Paulo Machado em poucos dias. Silvio Santos adorou a ideia de se tornar credor do seu futuro sócio, sabendo que o marechal, perto da bancarrota, teria capital suficiente apenas para rolar a dívida. Seria mais uma ficha para jogar quando chegasse o dia de anunciar oficialmente que ele não era mais um mero apresentador de show de calouros, e sim, dono de um grupo de comunicação.

Na primeira semana de junho de 1976, Demerval Gonçalves ligou para Paulinho de Carvalho. ‘Paulinho, precisamos convocar uma reunião. Seu pai tem de estar presente.’

‘Como assim. Demerval, que história é essa?’

‘O Silvio Santos precisa conversar com vocês.’

‘É sobre o empréstimo?’

‘Não, é sobre as ações da Record.’

‘As ações da Record que ele comprou do Cintra Gordinho?’

‘Que Cintra Gordinho?’

Acabara o suspense. Silvio Santos, livre do contrato com a TV Globo, era o novo sócio da TV e Rádio Record. Comprara as ações do empresário Joaquim Cintra Gordinho e já estava pronto para começar o trabalho no canal 7. Na avenida Marina, ninguém engoliu a história da transação. Para Paulo Machado, tudo não passava de um golpe sujo de Silvio Santos. Paulinho, refeito do susto, retornou a ligação para Demerval e deixou bem clara a posição do grupo:

‘Já fizemos a nossa assembleia dos acionistas, Demerval. Vocês vão ter de esperar a próxima.’

‘É simples, Paulinho: convoque uma assembleia extraordinária e anuncie o Silvio como novo sócio.’

‘Nada disso. Não vamos convocar assembleia alguma. A próxima é só daqui a dois anos. E ponto final.’

Demerval desligou o telefone e correu até a sala do patrão.

‘Eles estão irredutíveis, Silvio. Dizem que só vão conversar sobre as mudanças no controle acionário daqui a dois anos, quando convocarem nova assembleia.’

‘Eu sabia que eles reagiram assim, Demerval.’

‘E o que vai fazer?’

‘Vamos dar um susto neles. Pode deixar.’

Na manhã do dia 10 de junho de 1976, Murilo Atunes Alves, comentarista político dos telejornais da TV Record, tomava café na emissora, quando recebeu um recado: Paulo Machado queria vê-lo imediatamente na barbearia. Murilo estranhou a convocação. Todos sabiam que, naquele horário, o marechal gostava de ficar sozinho, apenas na companhia do barbeiro, lendo os principais jornais do dia. Ao entrar no salão, o jornalista percebeu que algo de muito grave havia acontecido. Paulo Machado, completamente transtornado, segurava um exemplar do Diário Oficial e esperava ansiosamente a sua chegada:

‘Murilo, veja o que eles fizeram! Publicaram uma portaria no Diário Oficial afirmando que o Silvio Santos é dono de 60% da Record!’

‘Como assim, doutor Paulo? Isso é impossível.’

‘Eles dizem aqui que a minha dívida de 1,5 milhão de cruzeiros com o Silvio Santos foi convertida em 10% das ações do Grupo Murilo. Você já trabalhou como advogado, me diga se isso está certo.’

‘Olha, doutor Paulo, pelo que eu sei essa transferência de dívida para ações só pode ser concretizada com a autorização da direção da empresa.’

‘Então eles estão fora da lei!’

‘Isso mesmo, doutor Paulo.’

Pela primeira vez em cinquenta anos, Paulo Machado deixou de fazer a barba antes de começar o trabalho. Acionou os advogados da empresa e entrou com um processo na 15ª Vara Cível de São Paulo intimando Silvio Santos a provar que ele era dono de 60% das ações da Record. Enquanto Paulinho de Carvalho convocava, no Rio de Janeiro, uma reunião na Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, a Abert, para explicar a posição do grupo Record diante do ‘golpe’ armado pelo apresentador, o pai desembarcava em Brasília. O velho marechal prometera ao filho que só deixaria a capital do país depois de conversar com o ministro das Comunicações do governo Geisel, Euclides Quandt de Oliveira.

A audiência com o ministro durou poucos minutos. Paulo Machado explicou a Quandt de Oliveira toda a trama armada por Silvio Santos e, no fim da reunião, num gesto simbólico, jogou várias medalhas em cima da mesa.

‘Aqui estão todas as condecorações que eu recebi pelos serviços prestados a São Paulo e ao meu país. Se a minha palavra não vale nada, prefiro me desfazer de todas as medalhas.’

Em outubro de 1976, com a intermediação de Quandt de Oliveira, Paulo Machado e Silvio Santos, enfim, entraram em acordo: os dois dividiram o controle do grupo Record, com exatos 50% para cada.

No início, a simples presença do suntuoso Lincoln branco de Silvio Santos na garagem destinada aos diretores era o bastante para perturbar Paulo Machado. Pela primeira vez desde que comprara a Rádio Record, em 1931, o empresário, centralizador por excelência, seria obrigado a repartir o comando de suas empresas com um sujeito que ele mal conhecia. Por sorte, Silvio Santos foi mais razoável do que se esperava. De cara, aceitou a proposta de Paulo Machado: sua equipe ficaria responsável pela parte comercial e administrativa, mas estava impedida de dar palpite nos setores artístico e operacional, que seriam geridos pelos Machado de Carvalho. Apenas uma exceção foi aberta ao ex-apresentador da TV Globo: ele teria autonomia para comandar um programa de variedades na Rádio Record, das 10 às 13 horas. Com microfone dourado e tudo.