Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Cultura, cultura de massas e etnologia

O caos social, institucional e político brasileiro parece não ter solução. Mergulhados no problema ou simplesmente alienados em razão de viverem presos em suas torres de marfim nas universidades, os intelectuais digladiam-se e não encontram soluções. O debate parece estar estagnado. O livro O desafio à cultura, de autoria de Bruno Lussato e Gérald Messadié, adota uma perspectiva nada usual para problemas semelhantes que ocorreram na França.

No primeiro capítulo da obra, não sem incorrer num certo eurocentrismo, os autores procuram as origens da crise do Ocidente. Segundo eles, boa parte dos problemas ocidentais pode ser creditada aos conflitos entre a ‘cultura’ e a ‘cultura de massa ou etnológica’. A distinção entre ambas é feita tendo em conta de dois pares de opostos: quantidade x qualidade, rápida obsolescência x permanência.

Lucro e necessidade humanística

O próprio conceito de cultura, que vem sido construído ao longo dos séculos, sofre a pressão da modernização das sociedades européias. Para o senso comum e parte da crítica especializada, não há ou não deveria haver distinção entre ‘cultura’ e ‘cultura etnológica’, pois a hierarquia entre obras de arte não pode ser feita com base em critérios objetivos. Além disto, as massas não têm acesso à cultura da elite, de maneira que não seria justo depreciar a ‘cultura etnológica’. Como acreditam que ‘…só há enriquecimento pessoal na cultura de qualidade’, os autores entendem que a distinção não só é necessária, como essencial. A ‘cultura de massas ou etnológica’ é tóxica e produz a crise ocidental justamente porque não é capaz enriquecer humanisticamente seus destinatários.

No fundo, os autores sugerem a seguinte questão: o que vem primeiro, o lucro dos produtores da cultura etnológica ou as necessidades humanísticas dos destinatários desta produção cultural?

‘Ninguém ouve rádio’

Cedo ou tarde, o Brasil também será obrigado a responder a essa pergunta. Há muito, optamos pela valorização da ‘cultura de massas’. A televisão brasileira intoxica diariamente os telespectadores com programas de conteúdo duvidoso (para não dizer asqueroso, mesmo). Os cinemas exibem qualquer porcaria, desde que seja ‘made in USA’. Nas rádios, dominadas por rocks estrangeiros, programas evangélicos e gospels, a música brasileira é um produto raro (certamente porque o Brasil é um lugar exótico e distante, cujos músicos só fazem sucesso na Europa e EUA). Música clássica brasileira, então, é ‘mosca branca’ cujos acordes só voam nas ondas das rádios públicas de limitado alcance territorial. Faço uma pausa para contar aqui um incidente que ocorreu comigo.

Sou fã da Rádio Cultura FM. Há alguns anos, não tinha TV em casa e todos os dias escutava a programação da mesma das 8:00 às 22:00 horas. Durante uma noite de Natal, escutava a Rádio Cultura e foi realizado um sorteio de brindes para os ouvintes. Liguei e fui informado que deveria ir pessoalmente à Rádio Cultura retirar meu brinde. No dia marcado fui à sede da emissora e lá acabei recebendo não um, mas vários brindes. Segundo o rapaz que me atendeu quase ninguém havia ligado ‘porque quase ninguém ouve a rádio’.

Mahler e a rede de casal

Nossa Constituição proíbe a censura e assegura a liberdade de informação. Mas não somos livres. Quando ligamos nossos rádios, somos obrigados a consumir apenas ‘cultura etnológica’, certamente porque existem músicos que não são bons o bastante para pagar o tradicional jabá. Segundo o critério mercadológico Mahler, Prokofiev, Stravinski, Beethoven, Carlos Gomes e Villa Lobos são péssimos músicos. Para a maioria da população brasileira certamente nem são músicos.

‘Mahler?’, pergunta intrigado o ambulante que pretende me vender uma rede. Apressado, olho no relógio. ‘É a marca de seu relógio?’. E dispara ligeiro como quem percebeu um bom negócio ‘Quer trocar seu Mahler usado por uma rede de casal novinha e bem boa?’

Projeto arquivado

No capítulo seguinte, os autores tratam da massificação e suas destruições. O mito norte-americano diz que ‘…para fazer melhor e mais barato, é preciso manter laboratórios de pesquisa e estes custam de tal modo caro que só os gigantes podem oferecer-se esse luxo’. O bom senso replica: ‘… a possibilidade e o interesse de manter departamentos de pesquisa não é apenas uma questão de fundos: é também uma questão de cultura.’ Em seguida, Lussato e Messadié dão uma série de exemplos da ineficiência da pesquisa quando conduzida por especialistas incapazes de avaliar o alcance social dos projetos que realizam ou a utilidade cultural dos fundos que gerenciam.

Ao ler o capítulo, é impossível deixar de questionar os paradoxos da pesquisa no Brasil. Todos os anos os pesquisadores e agitadores culturais clamam por mais recursos para a pesquisa universitária. Mas os resultados dos labores dos pesquisadores ou são minguados ou tão misteriosos que não podem ser compartilhados com a sociedade. Você já participou de um projeto de pesquisa universitária cujo resultado foi solenemente arquivado? Isso já ocorreu comigo. Mas como sou rebelde incurável, publiquei o resultado do meu trabalho na internet e mandei um e-mail irônico ao reitor da instituição desautorizando-a a utilizar o material que produzi.

Bancos de dados ineficientes

No capítulo 3, os autores tratam da centralização e perguntam: ‘Foi a massificação que engendrou a centralização, ou foi o contrário?’ Segundo os autores, a centralização é um fenômeno político que se tornou privado à medida que as empresas passaram a sofrer do mesmo gigantismo que o Estado. Mas como a paralisia e ineficácia estatais começaram a afetar os negócios, os empresários logo perceberam que tinham que fazer algo. Assim, as empresas passaram por um verdadeiro vendaval de reestruturações, cortes de pessoal, remodelação administrativa etc. A informática surgiu e passou a ser empregada como o Santo Graal da eficiência com economia. Ilusão, dizem os autores!

Segundo eles, uma ilusão que ‘…convinha tão bem à paixão centralizadora! Constituíram-se mesmo bancos de dados gigantescos, sem se tomar bem consciência da inércia intrínseca do computador e até do perigo que há em se acumular demasiados dados. Ora, essa falsa riqueza pode ser tão nociva como onerosa. Os bancos centrais de dados podem paralisar as decisões que devem ser tomadas – pela simples razão de que os seus programas de tratamento tendem a ser cada vez mais complexos e, por isso, cada vez menos fáceis de utilizar, e, enfim, cada vez menos fiáveis. Além disso, esses bancos tornam pesados os custos de gestão.’

‘O sistema está fora do ar’

Neste quesito o Brasil não deixa nada a dever à Europa. Há bem pouco tempo comprei um eletrodoméstico numa unidade de uma grande rede de lojas. O aparelho estava com defeito e tive que solicitar uma troca. Algumas horas após a compra, falei com a mesma vendedora. Mas o aparelho não pôde ser rapidamente substituído porque ela simplesmente não conseguia entrar no sistema informatizado da rede de lojas.

‘O sistema gerencia tudo!’, dizia ela orgulhosa enquanto tentava, em vão, acessá-lo. ‘Quando você compra um produto, o sistema dá baixa da unidade no estoque virtual ‘centralizado’ e, conforme o volume de compras em cada uma das lojas conectadas em tempo real, emite uma solicitação de compra ao fornecedor.’ Maravilhoso, pensei! Maravilhoso, mas não funcionava. O sistema estava sobrecarregado ou o computador que ela usava era um ‘lentium’? Após vários minutos de tentativas, a vendedora procurou sua gerente, que simplificou o procedimento (efetuou a troca e deixou para lançar a mesma quando o sistema funcionasse). Saí satisfeito, mas confesso que nunca mais comprarei algo naquela rede de lojas.

Estado centralizador

O Estado brasileiro é centralizado, sempre foi centralizado. Por mais centralizado que seja, todos os governantes clamam por mais centralização. Quando perceberam as potencialidades centralizadoras dos computadores e da internet, a fúria centralizadora dos administradores públicos brasileiros aumentou. Na atualidade, os órgãos públicos acumulam informações sobre os contribuintes, sobre criminosos, sobre seus próprios servidores, sobre as aposentadorias, nascimentos, mortes etc.

Contudo, se pretender restituir um imposto pago a mais, você esperará décadas por uma decisão judicial definitiva que será definitivamente cumprida quando você estiver morto. A polícia faz estatísticas dos crimes, mas o policiamento ostensivo nunca chega à periferia onde os criminosos se fartam. As aposentadorias que demoram meses para se transformar em realidades digitais rapidamente se tornam economicamente virtuais numa penada administrativa. Sabemos quantos brasileiros nasceram e morreram! Não sabemos como viveram, porque migraram ou, o que é mais doloroso, para que sustentaram um Estado que centraliza informações na internet se nunca buliram num computador?

Fim da dinastia Song

É assim que chegamos ao capítulo 4, ‘A burocracia, autora da guerra civil’. Mas será a burocracia um mal? A resposta dos autores é eloqüente.

‘No essencial, não: em certa medida, o modelo burocrático permitiu edificar os Estados, e particularmente a França, eliminando a arbitrariedade dos poderes locais em benefício do interesse nacional.’ Contudo, ‘…a evidência também obriga a verificar os seus defeitos. Depois de ter, por exemplo, contribuído para a unificação da China nos reinos Kin e Chu do século VIII antes da nossa era até o século II, a burocracia, ou, mais precisamente, o espírito burocrático imperial causou, com sua rigidez, o desabamento da dinastia Song. Para impor medidas que não correspondiam às condições locais, o imperador nomeou burocratas que lhe eram dedicados e que se revelaram incompetentes. No século XII, o império sucumbiu interna e externamente ao peso de sua inaptidão burocrática: a multidão esfaimada invadiu e devastou o jardim imperial e os invasores djurtchetes exilaram os dois imperadores Song para a Manchúria. A burocracia contribuíra para desfazer o que tinha edificado.’

A um palmo do colapso

O capítulo é interessante e complexo. Limito-me a fazer a transcrição acima porque o Brasil pode estar sofrendo na atualidade o mesmo problema que a China dos Song.

O Estado brasileiro custa 38% do PIB. Se considerarmos os custos da corrupção dos servidores públicos como tributo indireto que não gera benefícios para a coletividade, mas cujo custo é repassado pelos industriais e comerciantes para os consumidores (vide William Easterly, O Espetáculo do Crescimento, capítulo ‘Corrupção e Crescimento’), o peso do Estado brasileiro é imenso e a população está ficando cansada de suportá-lo.

O Brasil está destinado a sucumbir? As únicas previsões que sempre dão certo são as retroativas. Destarte, arrisco dizer que o Brasil está a um palmo do colapso. A prova cabal disto é a violência explodindo em nossas caras todos os dias. A burocracia estatal está se tornando incapaz de atender às expectativas da população ou de reprimir a barbárie que seu próprio peso fomenta.

Maio de 68 em escala planetária

Sob a mais severa crise de segurança das últimas cinco décadas, os senhores juízes e desembargadores ocuparam um lugar de destaque na mídia. Não porque conseguiram reduzir a criminalidade, mas porque aumentaram seus salários gordos e aposentadorias gratificantes. Preciso dar outro exemplo?

Um pouco mais adiante, os autor referem-se aos grupos terroristas da década de 1970 (Brigadas Vermelhas, Prima Linea, Rote Armee Fraktion etc.) bem como à desproporcional reação estatal. Assevera que inumeráveis ‘…regiões do mundo vivem assim, desde há vários anos, numa situação de guerra civil, larvar ou manifesta. Num tal contexto, a criminalidade difusa, por culpa da qual se tornou perigoso em numerosas cidades do chamado mundo livre viajar no metrô ou nos trens suburbanos, ou ainda ir para casa depois do pôr-do-sol, acaba por se dissolver no terrorismo político. A realidade é a de um vasto Maio de 68 em escala planetária. E não se vislumbra que esteja em vias de ter fim’.

Regulamentar a vida

O parágrafo seguinte foi escrito na década de 1980, mas não deixa de produzir um impacto muito grande, se levarmos em consideração nossa própria realidade neste princípio de século 21.

‘Por que? Entre várias outras razões, porque, desvalorizada pelos efeitos da burocracia, a vida humana já não tem o valor que as leis pretendem ainda atribuir-lhe. E porque, na ditadura burocrática, já não há outro meio de se fazer ouvir que não seja o estrondo do ato criminoso.’

Segundo os autores, a burocracia fomenta a desordem porque nunca diminui: só aumenta e é impotente para se auto-desregulamentar. Os burocratas raramente enxergam algo além da própria burocracia e de seus mesquinhos interesses salariais. O peso do Estado não lhes interessa. Mesmo quando o Estado está prestes a entrar em colapso, os burocratas seguem ampliando as despesas e aumentando a regulamentação da vida dos cidadãos. Nem mesmo os expoentes intelectuais das Universidades Públicas escapam da sina burocrática. São burocratas e, como bons burocratas, se comportam como se estivessem no melhor dos mundos.

A barbárie no entorno

Há bem pouco tempo, um professor universitário paulistano escreveu um artigo bombástico sobre a violência. Negou toda tradição humanista da Academia em que leciona e foi apoiado por diversos intelectuais. Fico me perguntando se os referidos intelectuais ignoram ou desprezam a terrível equação da universidade pública no Brasil, que pode ser enunciada mais ou menos assim:

CEU x ASCU = BENS

[custo econômico das universidades x alcance sócio-cultural universitária = barbárie no entorno que as sustenta]

Nossas universidades públicas são ilhas de conhecimento morto cercadas de barbárie por todos os lados. Quando a barbárie ameaça invadir sua ilha, os intelectuais burocratas gritam: ‘Mais rigor, mais rigor!’ Por que não deram vida ao conhecimento que produzem (se é que produzem algum) para minimizar a barbárie no entorno?

Emoções dos burocratas

O referido professor se disse chocado com um crime bárbaro que ganhou notoriedade na mídia em razão dos debates acerca da redução da maioridade penal. Sua defesa de uma ‘política criminal’ mais rigorosa é extremamente temerária. Não se pode pensar e realizar ‘política criminal’ com a projeção das próprias carências emocionais na coletividade. Por mais que sejam refinadas, as emoções do professor-burocrata são tão irrelevantes quanto as minha. No mínimo, tão irrelevantes quanto as das mães brasileiras cujos filhos são mortos todos os anos porque não conseguiram pagar suas dívidas nas bocas-de-fumo. Mortes que não são televisadas, nem investigadas porque diversos policiais recebem dos traficantes para dar-lhes uma ilegal segurança.

A realidade crua escarrada na cara dos jovens vitimados pelo tráfico todos os dias são as emoções dos burocratas que só se preocupam com as outras vítimas (as que consideram dignas de lágrimas) e com seus salários. Mas devemos perdoar o referido professor. Deve ser difícil para um filósofo-burocrata, se é que não repugna à filosofia tal aberração, meditar sobre o peso que ele mesmo representa para a sociedade.

Cabeças cortadas

Uma economia nacional deveria produzir bem-estar para o conjunto da população. Não é o que ocorre no Brasil. Neste país, a economia só beneficia uns poucos, dentre os quais se destacam os burocratas bem remunerados para fazer de conta que vivemos no melhor dos mundos, enquanto o país se desmancha a olhos vistos (juízes, desembargadores, professores universitários etc). Se o referido intelectual prestasse atenção ao website do IBGE, se a crueldade das estatísticas produzidas por aquele órgão também provocassem reações emocionais, talvez passasse a estudar melhor as vidas das pessoas nas favelas em volta da Universidade em que leciona e descobriria todo um continente que desconhece.

E olhem que, apesar de tudo, os vários Brasis que sustentam o Brasil ainda são países de gente sofrida e generosa. A grande maioria dos brasileiros vive pior do que os franceses antes da Revolução de 1789 e ainda não fizeram uma revolução, nem começaram a decapitar aristocratas em guilhotinas de forma organizada!

Os burocratas brasileiros deveriam ler e reler o livro de Lussato e Messadié. Mais do que ler, deveriam aprender a dar mais importância à cultura crítica do que aos dinheiros que recebem dos agentes da cultura etnológica. As páginas de O desafio à cultura podem servir como eficientes guilhotinas contra sua obsolescência e peso econômico. Caso contrário, suas próprias cabeças podem acabar sendo cortadas. A obra tem vários outros capítulos, mas não vou prosseguir. Minha intenção é apenas despertar o interesse pelo livro e já fiz mais do que devia.

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Advogado, Osasco, SP