Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Cultura na cesta básica cubana

O Brasil foi o convidado de honra da XIV Feira do Livro de Havana. Que ainda não terminou. Teve lugar em Havana, de 3 a 13 de fevereiro, mas se estenderá até 5 de março por 34 cidades. Iniciada em 1982, foi bienal até o ano 2000, mas desde então é anual.

Eis os números básicos de referência: 261 escritores de 30 países; 1.588 lançamentos de livros; 845 conferências, mesas redondas, oficinas, homenagens e leituras; 1.031 atividades relacionadas com produtos de informática e eletrônica; 1.137 atividades exclusivas para crianças; 1.430 atividades artísticas.

A anterior contou com 3.761.001 visitantes. E foram vendidos cerca de 4 milhões de livros! Não foram ainda concluídos os números que vão dar a exata dimensão dessa XIV Feria Internacional del Libro, cujo lema foi ‘Leer es crecer’.

No céu e na terra

Vinte anos depois de ter visitado Cuba pela primeira vez, em janeiro e fevereiro de 1985, eis-me a bordo de um vôo que não fará mais escala em Lima, indispensável interrupção num tempo em que o Brasil não mantinha relações diplomáticas com o país de Fidel Castro, para o fim de disfarçar um visto no passaporte. Digo disfarçar porque entrávamos no Peru, íamos a Havana sem visto nenhum e semanas depois reentrávamos outra vez no Peru, de onde tínhamos saído. Mas onde estivéramos? No espaço sideral? Em vez disso, esta vez fiz conexão no Panamá, de visto em punho, obtido de atenciosos funcionários do Consulado de Cuba em São Paulo.

Outras diferenças vão aparecer pouco a pouco. Nos anos 1980, voltávamos quase clandestinos da Ilha cercada de água por todos os lados – e no mundo inteiro pelos EUA, que a bloqueiam há décadas, em decisão que já ultrapassou qualquer irracionalidade, crueldade, imoralidade, tudo o que mais rebaixa o ser humano em qualquer tempo, pois o bloqueio é um ato terrorista, praticado contra um Estado soberano.

Mas rios de tinta são gastos para falar de transgressão a direitos humanos em Cuba, e muito pouco para dizer que ali pertinho, em Guantánamo, prisioneiros são interrogados pela maior potência militar do mundo sem que ninguém saiba o que está havendo com eles. Em território fora dos EUA, justamente para burlar a democracia e o Estado de Direito dos quais a potência se diz guardiã universal.

Naqueles anos, ao voltarmos todos queriam saber o que achávamos do enclave socialista na cara dos EUA. Mas onde publicar os textos? Lucélia Santos, Fernando de Barros e eu escrevemos nosso relato a seis mãos na revista Playboy, então dirigida por Mário Escobar de Andrade, que tinha idéias insólitas, como a de me pedir um perfil do pugilista Adílson Maguila algum tempo depois e ligar em horas mortas para dizer que tinha acabado de ter uma idéia e perguntar se era possível o projeto que engendrava nas trevas, que deveriam estar ocupadas pelo sono. Quem teria mais a dizer depois de Fernando Morais ter publicado A Ilha? Quem continuaria a dizer mais, depois que Frei Betto escreveu Fidel e a Religião?

Pois desta vez, uma leitora cubana, muito interessada em livros brasileiros, a quem encontrei na Feira, passou o tempo todo da conversa elogiando Frei Betto e me dizendo que o final da conferência do frade dominicano tinha sido apoteótico: ‘Ele encerrou a sua conferência gritando com ‘com Castro e com Cristo’, não é maravilhoso?’

Pirâmides de papel

Agora tudo mudou. Para melhor e para pior. Vários ministros foram a Cuba, entre os quais José Dirceu, Tarso Genro e Gilberto Gil. Este último, apresentado na Casa de las Américas como ‘ministro cantor ou cantor ministro’, subiu ao palco e, dando prosseguimento à apresentação de vários artistas cubanos, entre os quais um repentista muito divertido, deslumbrou a todos.

Quantos países de nossa laia podem oferecer ao mundo um ministro artista ou artista ministro, negro? A imprensa brasileira não pareceu interessada na singularidade: no mesmo dia a Folha de S.Paulo trazia na primeira página uma foto de Gilberto Gil sendo depilado por uma profissional que fizera o trajeto Rio-Salvador-Rio apenas para aquilo. Era verdade? Era! Mas era verdade também que o ministro dera show inesquecível na Casa de las Américas, em Havana, no bairro El Vedado, e teve por um momento a parceria da escritora e cantora Elisa Lucinda, cuja participação a ninguém deixou indiferente.

O signatário falou sobre a função social do escritor na Fortaleza San Carlos de la Cabaña, tomada por Ernesto Che Guevara nos albores da vitória de 1959. Antes, li dois contos em espanhol, traduzidos pelo poeta irlandês John Lyons, o mesmo que trouxe para o inglês o canto cósmico de Ernesto Cardenal, que, aliás, ao saber disso, me deu um livro autografado e quis saber de John Lyons, ora vivendo no Brasil, justamente numa cidade também chamada São Carlos, no interior de São Paulo, onde é professor universitário.

Na platéia, vários escritores que já tinham falado ou falariam depois, entre os quais a jornalista e pesquisadora da UFRJ Ivana Bentes, o poeta Carlos Nejar e o historiador José Murilo de Carvalho. Quem falava, ficava de frente para o escritório de Che, cujo nome aparece em antigas notas de pesos cubanos. ‘O amor e o ódio se irmanam na fogueira das paixões’, mas certamente haverá grande diferença, principalmente em ética e em dignidade, ter alguém como Che Guevara ou Henrique Meireles dirigindo a economia de um país!

Quarenta e cinco anos depois da Revolução que um filósofo como Jean-Paul Sartre denominou ‘furacão sobre Cuba’, turistas procuram desesperadamente essas antigas cédulas e compram a peso de dólar pesos cubanos com a assinatura de Che Guevara. Vamos ver se em futuras décadas outros turistas se interessarão pelas cédulas que Henrique Meireles assina no primeiro governo republicando presidido por ex-operário, o que não deixa de ser uma espécie de Revolução.

O ministro Tarso Genro precisa saber que certas estratégias da educação superior são repelidas no Brasil e em Cuba com igual intensidade, de que são exemplos as terríveis dificuldades impostas a convênios entre dois países nessa área. Acostumados ao cipoal de normas, comuns a estados socialistas, professores da Universidade de Havana, com os quais conversei, se mostraram desconcertados com a papelada brasileira, que leva os docentes, em vez de se aplicar à pesquisa e ao ensino, a preencher intermináveis torres de papel e a ocupar-se em reuniões, também excessivamente numerosas e excessivamente extensas, sobre questões menores.

Depois de Fidel

Na volta, nem bem desembarco, cato os jornais brasileiros para ver o que disseram da participação do Brasil na XIV Feira do Livro de Havana, que teve nosso país como convidado de honra. Silêncio. Deserto. Nada. Nada, não! Quando citada en passant, desleixo, falta de profissionalismo e insinuações descabidas, como a de supor que apenas ‘livros de autores esquerdistas’ tiveram vez na Feira.

Autores esquerdistas? Com uma pedrada só, ofensa terrível lançada contra respeitados editores europeus que lá estavam expondo! Eis alguns autores ‘esquerdistas’ cujos livros foram procurados e comprados com volúpia: Cervantes, Boccaccio, Shakespeare, García Márquez, Rubem Fonseca, Machado de Assis. Aliás, a Casa de las Américas, por iniciativa de seu presidente, Roberto Fernandes Retamar, inaugurou uma coleção, há mais de 40 anos, justamente com uma tradução de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Todos esquerdistas, pois não?

Cuba economiza em tudo. Menos em saúde, educação e cultura, que parecem não sofrer cortes orçamentários, tal é o admirável desempenho que apresenta nessas três áreas tão decisivas para o bem-estar de qualquer pessoa.

Mas alguns problemas persistem. Graves ainda. Cuba está menos pior do que esteve na década de 1990, quando os cruéis desdobramentos da queda do socialismo no Leste europeu levaram as pessoas a comerem folhas de árvores, como me disse um taxista. Mas, sobretudo para quem visita Havana Vieja, a coisa parece complicada demais: esgoto a céu aberto, prédios desabando, câmbio negro comendo solto no país que já conta com três câmbios, um dos quais é o que paga 90 centavos de peso por um dólar, prostituição descarada nas ruas etc.

Um editor brasileiro é abordado à porta do Hotel Plaza: ‘Queres uma noite de amor? São 40 dólares para mim, 20 para o porteiro e eu subo’. Sim, no mundo inteiro é mais ou menos a mesma coisa com a mais antiga das profissões, mas de uma menina de pele bonita, saudável, bem cuidada, com saúde, educação e cultura gratuitas, esperamos comportamento diferente. Afinal, a poucos passos dali, pode-se assistir a um balé com bailarinos que estão entre os mais talentosos do mundo, dirigidos por ninguém menos do que Alicia Alonzo.

De todo modo, a Feira do Livro de Havana esteve lotada o tempo todo. E os cubanos voltavam para casa com pacotes e pacotes de livros. Nos rostos das pessoas, a prova dos noves: a alegria. É um povo que sofre como poucos no mundo, mas em todos os bares, nos restaurantes e nas ruas há sempre alguém cantando alegremente.

Cuba é principalmente música. Talvez por isso o ministro Gilberto Gil tenha sido recebido em todos os lugares num clima apoteótico. Principalmente por músicos. Principalmente por músicos negros.

O ministro da Cultura de Cuba, Abel Prieto Jiménez, fazia questão de conversar com todos os escritores brasileiros que encontrava, inclusive reforçando convites e suprindo ‘esquecimentos’ brasileiros. Ao show de Gilberto Gil, o signatário teve acesso por convite do ministro cubano.

Não sabemos o que será Cuba depois de Fidel Castro. Vai depender do momento em que se dê a sucessão, pois em política tudo pode mudar de repente. Mas vários escritores brasileiros, entre os quais alguns da Academia Brasileira de Letras, palpitaram que o perfil de Abel Prieto Jiménez, a desenvoltura com que se move entre as pesadas estruturas do Estado e o inegável carisma completam um sério candidato ao lugar de Fidel Castro. O tempo dirá se nos enganamos.