Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Defesa apaixonada do español

A educação escolar deficiente, a força colonial da língua inglesa, a invasão da internet com seus e-mails, chats e blogs, e a desídia dos donos do poder político, informativo e econômico não seriam elementos suficientes para acelerar a crescente deterioração do idioma espanhol, escrito e falado por 400 milhões de pessoas em 23 países? Ou seria preciso acrescentar a esse panorama desolador a recomendação do escritor colombiano Gabriel García Márquez, Prêmio Nobel de Literatura, para que se simplifique a gramática, começando, por exemplo, com uma reforma ortográfica, nela eliminando e mudando acentos escritos?

García Márquez disse isso e outras ‘cositas más’ no já longínquo 1º Congresso Internacional da Língua Espanhola, realizado na cidade de Zacatecas, no México, em 1997, mas as repercussões de tais declarações ainda incomodam os meios acadêmicos, jornalísticos e intelectuais da Espanha e do continente latino-americano. Faltava só uma elegante e bem fundamentada resposta às digressões lingüísticas, por assim dizer, do escritor, que na verdade parecia divertir-se ao escandalizar com seus argumentos os solenes e empertigados senhores gramáticos participantes do simpósio, obviamente irredutíveis defensores do idioma ‘a la antiguita’.

Na verdade, tal resposta chega numa oportuna reedição, agora em formato de livro de bolso (a primeira edição é de 1998), da obra do jornalista Álex Grijelmo, presidente da agência espanhola de notícias EFE e autor do Manual de Estilo do prestigioso jornal El País, onde trabalhou 16 anos, ocupando vários postos-chave da redação. Embora não seja filólogo ou lingüista, ele dedica boa parte do seu tempo e energias a essa luta interminável, muitas vezes ingrata e improdutiva, que é a defesa dos bons princípios e usos corretos de uma língua, no caso a espanhola. De forma independente e corajosa, o livro de Grijelmo reforça e enriquece as contínuas e vigilantes iniciativas da Real Academia de la Lengua Española, sempre ágil e competente na difusão e preservação do idioma.

Olha a vírgula

Com respeito e admiração pelo talento literário de García Márquez, ‘o escritor mais fascinante de quantos têm utilizado o idioma espanhol no século 20’, que atribui a uma gramática complicada o desinteresse, o fracasso e até mesmo o ódio dos estudantes pelo estudo do idioma, Grijelmo diverge, e observa que a simplificação das normas gramaticais, incluindo a abolição de acentos, não resolveria em absoluto o problema do fraco aproveitamento dos alunos na matéria, só tenderiam a piorar a situação, pois no fundo não se trata de um problema exclusivo de ortografia.

E bota fraco nisso, pois um relatório do próprio governo espanhol sobre o ensino secundário revela que cinco de cada 100 estudantes de 16 anos não compreende a lógica dos acentos. Num ditado de 71 palavras, os alunos cometeram uma média de cinco erros na colocação do til. E, desastre maior, 18% de alunos de 14 anos são incapazes de elaborar um relato bem desenvolvido, e 15% não sabem escrever uma história básica. O relatório não menciona o problema, mas tudo indica que aqueles que cometem mais faltas de ortografia são também os que não sabem se expressar. Seria tudo isso culpa de acentos e sinais de pontuação? Responde Grijelmo:

‘Trata-se de um problema humano e político. Uma sociedade que não escreve corretamente, que não fala com ordem, que não ama sua língua, se converte numa sociedade que pensa pouco e que terminará se sentindo inferior. E isso não só afetará suas empresas, seus organismos estatais, sua cultura.. Também a cada pessoa individualmente…’

Numa visão mais técnica do assunto, Grijelmo, para quem é fundamental o ensino de gramática, certamente aprimorada, apela aos estudantes para que não vejam o estudo lingüístico como um catálogo de memorizações como a geografia ou as fórmulas químicas:

‘Seria ótimo se pudéssemos explicar aos estudantes que a gramática e a sintaxe lhes serviriam no futuro para conhecer o sujeito e o predicado, de forma que nunca os separem com uma vírgula; e para encontrar o antecedente de um relativo e evitar assim que a frase perca o sentido. E para se expressar com clareza e precisão, de maneira que os outros possam entendê-los sem esforço…’

Muito depende também dos professores, adverte Grijelmo, não poucos vezes despojados de amor e dedicação ao ofício de ensinar o idioma, para não falar de despreparo e incompetência. Deveriam ter mais consciência da importância dessa tarefa, assim como aqueles que redigem as gramáticas escolares, cheias de tecnicismos para serem decorados, além de vazias da paixão de comunicar.

Corroendo por dentro

Num dos capítulos mais vigorosos do livro, Grijelmo aborda outro fenômeno inquietante nesse contexto, a manipulação interna do espanhol, a forma como a classe política maneja o idioma de acordo com suas conveniências e interesses, ‘por meios ainda mais perigosos.’

É quando fala uma figura importante, como o ex-chefe de Estado espanhol José Maria Aznar, especialista em termos pedantes, grandiloqüentes, puros eufemismos, que no fundo não diziam nada. Exemplo: ‘Os espanhóis sabem que o melhor destino para a sua poupança é o investimento na economia real do nosso país.’ Pergunta Grijelmo: ‘Existirá também uma economia irreal na qual não devemos investir? E como poderíamos investir numa coisa irreal, quer dizer, existe uma economia que não existe? E não seríamos idiotas ao investir dinheiro numa coisa assim? Evitou o presidente explicar de forma compreensível que existe uma economia ilegal, submersa, que ele já deveria ter eliminado?’

Folhear o Diário Oficial espanhol, informa Grijelmo, pode nos deparar ‘com magníficas pérolas, que refletem com fidelidade uma tendência desagregadora, que procura a incomunicação, mesmo em nível inconsciente’. Reza um projeto de lei sobre disciplina orçamentária:

‘O órgão de contratação competente, sem obrigação de tramitar expediente administrativo, poderá ordenar a execução do necessário para remediar o evento produzido, satisfazer a necessidade sobrevinda ou contratar livremente seu objeto, em todo ou em parte’. ‘Sem comentários’, diz o jornalista.

Grijelmo dá outro bom exemplo do espanhol utilizado com sinistras segundas intenções, ao mencionar o livro do colega argentino Carlos Ulanovski, Los argentinos por la boca mueren, que mostra como nos tempos do ditador Videla os lixões passaram a ser chamados de ‘cinturões ecológicos’, as favelas de ‘vilas de emergência’, e, pior ainda, os assassinados na sombra de ‘desaparecidos’. ‘As palavras impostas pelos poderes’, diz Grijelmo, ‘permanecem às vezes no tempo, e conseguem até deformar os conceitos históricos’. Daí a praga da linguagem politicamente correta foi só um passo, observa ainda o autor.

Outro problema sério são os estragos da informática e seus termos que enfraquecem e empobrecem o idioma, adverte Grijelmo:

‘Milhões de pessoas adentraram nos mistérios dos computadores, mas os programadores e quem toma as decisões fundamentais constituem um reduto. De sua torre de marfim, ditam palavras e manipulações logo seguidas de pés juntos por aqueles que se fazem passar por sacerdotes desta nova religião’.

Um professor citado por Grijelmo, Sergio Lechuga Quijada, sintetiza bem o problema: ‘Ao redor da internet desenvolveu-se uma linguagem pletórica de tecnicismos e de palavras de spanglish muita curiosa. O surpreendente não é o fenômeno em si, mas a absoluta passividade das pessoas que o aceitam, adaptam e utilizam sem o menor sentido crítico, com total falta de carinho pelo nosso idioma’.

Os chamados meios de comunicação tampouco servem de modelo a seguir pelos jovens escolares espanhóis, já anestesiados pela frenética linguagem gráfico-visual. A análise, em classe, de um importante jornal de esportes revelou, numa só edição, 700 erros, entre faltas de ortografia, sintaxe estropiada e textos empastelados.

Bem, diante desse acúmulo impressionante de problemas, ameaças, distorções, invasões, qual seria o futuro do idioma de Cervantes, cujo Don Quijote, fonte perene de beleza e profundidade lingüística, completa agora 400 anos de existência? Álex Grijelmo responde com um otimismo cauteloso:

‘Este idioma rico, culto, preciso e extenso corre certos perigos que nós, seus próprios donos, devemos conjurar, e com fé conseguiremos isso, com uma única condição: a consciência do problema.’

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Jornalista e escritor brasileiro radicado na Cidade do México