Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Dois instantes, dois cenários

Cinco anos separam as duas edições de O espírito comum – editoras distintas, desta vez com o promissor selo da Mauad Editora. E diferentes são também os cenários que compõem os dois instantes. Se à primeira edição coube o papel de trazer um percurso de conceituação em torno da temática e do esforço de reinterpretação de um conceito tão marcado, este segundo instante define-se pela solicitação em torno das idéias que o conceito engendra. É impossível, neste instante, não recordar um dos teóricos basilares da temática, o alemão Ferdinand Tonnies, que também teve seu livro lançado em dois momentos de sua vida.

Em 1887, quando lançou o seu Gemeinschaft und Gesellschaft (Comunidade e Sociedade), o livro passou quase despercebido pelo campo acadêmico e pelo público em geral. Entretanto, sua segunda edição, em 1912, alcançou um sucesso inesperado, tornando-se um best-seller na Alemanha, naquela época arrebatada pelas idéias nacionalistas. O tema encontrava naquele momento ampla penetração popular. Com o advento do regime hitlerista, por motivos aparentemente óbvios, as idéias comunitaristas passaram a ser estigmatizadas pelo campo acadêmico, sendo deixadas de lado por um longo período.

Quando a temática em torno da comunidade ressurgiu nos anos 80, na França, o debate polarizou-se entre dois teóricos: Jean-Luc Nancy, com o seu célebre A comunidade inoperante e Maurice Blanchot, autor de A comunidade inconfessável. Parte desta época o instigante questionamento de Blanchot: ‘Afinal para que serve uma comunidade? Apenas para que não nasçamos e morramos solitários?’

Na verdade, depois de uma infinidade de conceituações e apropriações indevidas – algumas delas em vigor ainda hoje, como as relacionadas a gueto, tradicionalismo, localismo e tribalismo –, a idéia de comunidade, se ainda não alcançou o podium teórico, certamente desponta como uma das questões mais imperiosas da atualidade. Esta preocupação não se restringe apenas ao nível teórico, mas também, e principalmente, ao estatuto de projeto político alternativo.

A idéia de comunidade passou de temática menor à prerrogativa global. Vêem-se sem assombro, nos quatro cantos do planeta, os mais respeitados teóricos do momento, das mais variadas áreas de pensamento, confluírem na direção da valorização das estruturas de vinculação e pertencimento. Muito tem sido publicado e felizmente muito mais tem sido realizado. Hoje, inúmeros são os projetos – normalmente fora da área de abrangência dos governos constituídos – cuja preocupação básica é composição de novos formatos de estrutura social. Entre a primeira (1997) e a atual edição de O espírito comum: comunidade, mídia e globalismo, muita água correu sob a ponte. A busca central do livro é a experiência comum, que unifica, na produção do social, a diversidade das relações de sentido ou a descontinuidade das experiências físicas e éticas. Nele privilegiamos o recurso às categorias centrais de Tönnies (Gesellschaft e Gemeinschaft, sociedade e comunidade), não para opô-las como diferenças sociologicamente radicais, e sim como esquemas de relacionamento humano complementares.

A comunidade de que se trata em O espírito comum diz respeito aos agenciamentos interpessoais e midiáticos, que vêm procurando caminhos sociais e comunicacionais não regidos pelo fechamento organizacional que costuma caracterizar tanto as instituições quanto as corporações consentâneas ao espírito da globalização financeira do mundo.

Comunidade é a metáfora que, aqui, nos parece adequada para a construção de uma nova forma para o laço social. Não a usamos no quadro da bipolaridade substancial com que freqüentemente se interpreta, na vulgarização sociológica, a famosa dicotomia de Tönnies, e sim como um caminho de redescrição das tentativas sociais de produzir comunicação a partir de uma experiência comum, fora dos grandes circuitos do capital. Comunidade é, então, o que permite ao indivíduo e aos grupos vislumbrar a abertura para estender criativamente novas pontes sobre a dissociação humana. Pois bem, a ‘água’ que correu sob a ponte no intervalo das duas edições deste livro foi o resultado concreto de uma atividade que poderíamos chamar de ‘comunitarista’, sem o vezo conservador que esta palavra costuma ter para certos autores. A partir de cursos em nível de Graduação e de Pós-Graduação na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e de um Laboratório de Estudos em Comunicação Comunitária (LECC) – onde, dentre atividades múltiplas, destacam-se os cursos para repórteres populares de áreas carentes do Rio de Janeiro –, o estudo e a pesquisa da comunicação comunitária têm-se irradiado produtivamente para outras faculdades e núcleos acadêmicos. Esta nova edição justifica-se por sua pura e simples demanda por parte de professores e estudantes.