Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Arqueologia das cinzas

A vida é assim. Segue seu ritmo cadenciado, monótono até, na sucessão previsível dos dias. Até que alguma coisa excepcional acontece e tudo então parece carregado de sentido, para o bem e para o mal. Foi o que sucedeu naquele 17 de dezembro de 1961, quando uma prosaica matinê circense se transformou na maior tragédia de Niterói. O Gran Circo Norte-Americano, com seu nome pomposo e tudo, pegou fogo num incêndio que ceifou a vida de centenas de pessoas, a maior parte delas crianças. É o tema do livro O Espetáculo Mais Triste da Terra (Companhia das Letras, 320 págs + 32 págs. do caderno de fotos, R$ 46), do jornalista Mauro Ventura, que reconstitui a tragédia em seus vários aspectos.

Não à toa, lá pelo fim do livro, Ventura, que é repórter de O Globo e filho do jornalista Zuenir Ventura, constata que uma experiência desse gênero desperta o que há de pior – e também o que existe de melhor – nas pessoas. Sim porque logo que começou a correr por toda Niterói a notícia de que havia centenas de pessoas queimadas e feridas no incêndio, montou-se, de forma espontânea, uma formidável rede de solidariedade. Enquanto a caridade agia à luz do dia, à noite se movimentavam os que saqueavam cadáveres ou procuravam de alguma forma tirar partido, inclusive político, da tragédia.

O livro ilumina esses desvãos e dá devido valor aos atos de abnegação. Mas vai além disso. É um trabalho valioso de pesquisa, aliado à boa disposição de repórter. Mauro entrevistou 150 pessoas, de médicos a sobreviventes, passando por artistas do circo que estavam em cena na função daquela tarde de calor excessivo no verão de Niterói.

Velocidade e fúria

Não foi fácil levantar a memória daqueles dias, conta o autor. Apesar de todo o tempo transcorrido, o tema ainda é tabu. Muita gente se esquivava ou perguntava ao repórter por que queria revolver aquela história triste, acontecida havia tanto tempo.

O próprio Mauro nem era nascido na época. Veio ao mundo apenas um ano e dez meses depois dos fatos que pesquisou. Só ouviria falar do assunto 30 anos depois, ao ver nas pilastras do Caju, zona portuária do Rio, a inscrição “Gentileza gera Gentileza”. Eram escritas pelo Profeta Gentileza, um tipo popular carioca que, dizia-se, havia enlouquecido quando perdeu toda a família no incêndio do circo, uma versão controversa.

José Daltrino era um pequeno empresário de cargas. Diz-se que quando soube do incêndio, saiu ao quintal da casa e cobriu-se de lama. Abandonou tudo, empresa e família, para, em sua versão, atender a uma voz que o mandava consolar as vítimas do incêndio e pregar a fraternidade entre os homens. Não foi o único tocado pelo incêndio do circo.

Fiel ao seu juramento de médico, um cirurgião, destinado à fama, empenhou-se a fundo no tratamento dos queimados. Mauro Ventura leu na autobiografia de Ivo Pitanguy que o atendimento aos queimados de Niterói fora “a experiência que mais marcara a sua vida”. Até então, a cirurgia plástica era considerada o ramo fútil da medicina. No tratamento dos queimados, ganhou respeito e credibilidade.

Por fim, Ventura ouviu de uma tia, na época moradora de Nova Friburgo, que pretendera levar as duas filhas, então crianças, ao espetáculo, mas desistira na última hora. Talvez tenha sido uma intuição. Talvez. De qualquer forma, a tragédia do circo despertara a curiosidade do repórter que agora pressentia, apesar dos anos decorridos, o cheiro de “uma boa história”, isca que costuma fisgar jornalistas de fato vocacionados para a profissão.

E essa história começa pelo fato de que o Gran Circo Norte-Americano nada tinha de norte-americano. Pertencia a Danilo Stevanovich, cuja família, até hoje, e apesar do sinistro de Niterói, continua no ramo circense. Batizou seu estabelecimento de “norte-americano” porque essa origem seria sinônimo de qualidade e competência, valores positivos associados aos EUA desde o fim da 2.ª Guerra.

Não que os próprios americanos não tivessem problemas. Afinal, 1961 não era um bom ano para eles. O astronauta soviético Yuri Gagarin tornara-se o primeiro homem a orbitar o planeta no interior de um artefato da indústria aeroespacial inimiga. Gagarin sustentava que, vista de fora, a Terra parecia azul, mas a cor que tirava o sono dos americanos era a vermelha, da ameaça comunista. Paranoia à parte, aos olhos dos brasileiros a simples menção de que algo era americano trazia à mente qualidades superlativas, da música pop ao cinema, passando pelo circo.

No entanto, tal selo de qualidade importado não se aplicava a alguns quesitos básicos do circo de Stevanovich, a começar pela lona, de material facilmente inflamável. Foi pela lona que tudo começou. Quem deu o aviso foi a trapezista Nena, irmã do dono do circo, que fazia seu número com dois colegas. Um deles, Grotto, viu uma luz suspeita na parte de baixo da lona. Desceu, tomou Nena pelo braço e esperaram que o terceiro artista, Sanchez, também pulasse para lugar seguro. Só então ela gritou “Fogo!”, senha para a debandada geral. As chamas subiram com velocidade e fúria incríveis e, como não havia saída de emergência, transformaram o circo em armadilha infernal para os cerca de 3 mil espectadores da matinê.

Sem certezas

O livro avança do sinistro, como dizem os agentes de seguro, para os seus desdobramentos. As cenas em hospital, por exemplo, as histórias da gente simples, relembradas muitos anos depois. Como a de Lenir, que fez questão de levar toda a família ao espetáculo depois de saber que a girafa era “xará” de sua filha, Regina. Naquela tarde, Lenir perdeu o marido e as duas filhas. Escapou viva, mas com muitas sequelas.

Há também registro da reação de gente importante, como o então presidente João Goulart, que visitou pacientes, impressionou-se com a extensão dos ferimentos de muitos deles e, depois, numa sala vazia, chorou.

Há também a crônica policial. Qual seria a causa do incêndio? Acidente? Incêndio criminoso? A versão oficial ficou com a última alternativa com a prisão de um certo Dequinha, de 22 anos, que, despedido do circo, jurara vingança. Mas nem as vítimas acreditavam na culpa de Dequinha (apelido de Adilson Marcelino Alves), um doente mental que gostava de confessar crimes imaginários. Em 1973, Dequinha fugiu da cadeia e apareceu morto, com vários tiros. Até o número de disparos é controverso. Alguns jornais falam em três, outros em 13. Nunca se descobriu quem puxou o gatilho.

De real, sobre o incêndio, sabe-se que as instalações elétricas eram precárias e que o principal hospital de Niterói, o Antonio Pedro, estava em greve naquele domingo. Sabe-se também que morreram, segundo dados oficiais, 503 pessoas, na hora do incêndio ou depois, de sequelas. Há quem ache o número conservador e fale em até mil vítimas.

Não há certezas nem como pesquisar esses dados. Em O Espetáculo Mais Triste da Terra, Mauro Ventura confronta versões e faz arqueologia. Uma arqueologia das cinzas, literalmente.

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[Luiz Zanin Oricchio é da Redação do Estado de S.Paulo]