Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Curso prático de jornalismo para uma nova sociedade

Cerca de uma centena de jornais e revistas independentes são publicados em Benghazi, quando esse número, à época da libertação da cidade, um ano atrás, era zero. Do ponto de vista jornalístico, são quase todos execráveis e, quanto a isso, acho que mereço uma pequena parte da culpa. Em outubro, por solicitação da Agência para o Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos (Usaid), viajei para Benghazi para treinar jornalistas líbios. Como parte do esforço para construir uma sociedade civil pós-revolucionária, a Usaid oferecera patrocinar uma rede de jornalistas conhecida como Mídia Líbia Independente (ILM, sigla do inglês).

Amira Sallak e Dania Zada, duas jovens líbias na casa dos 20 anos e viciadas em smartphones, trabalharam com a ILM no sentido de reunir 50 jornalistas para o meu seminário. Nascidos e crescidos no reino fechado de Muamar Kadafi, quando o verdadeiro jornalismo era proibido, estes projetos de jornalistas haviam aprendido sobre como coletar informações por meio de relances furtivos do mundo exterior: rápidas viagens a países estrangeiros ou, para aqueles confinados a Benghazi, os sinais de TV a cabo da Itália que transmitiam canais de notícias, assim como reapresentações dubladas do programa Esquadrão Classe A.

Todos os meus alunos tinham menos de 30 anos de idade e haviam entrado para a profissão egressos de outras atividades. Apareceram ex-enfermeiras, ex-estudantes de Medicina, ex-arquitetos e ex-engenheiros, assim como algumas outras pessoas, recém-saídas do segundo grau, que pareciam suficientemente jovens para não ter tido qualquer outra ocupação senão a revolução do Facebook. Nada sabiam sobre padrões, calúnia ou ética – exceto que esses conceitos existiam e que, eventualmente, teriam que aprender sobre eles. E estavam imensamente ávidos para fazê-lo. Na verdade, ao invés de pedir uma ajuda de custos diária, alguns ofereceram pagar pelo treinamento.

Preconceito anti-revolucionário

Amira Sallak, que passara alguns anos de sua infância na Inglaterra, alugou o andar de cima de uma pizaria próxima à Universidade de Medicina Al-Arab e instruiu os empregados do estabelecimento a manterem o fluxo de capuccinos enquanto refazíamos o jornalismo líbio. As TVs no andar térreo do restaurante ressoavam o dia inteiro, no volume máximo, com os jogos de futebol italianos, enquanto no andar de cima eu gritava termos como fonte, crédito e ação amigável de calúnia legal e os líbios os anotavam. Quando os termos ganhavam uma conotação técnica, Amira Sallak, com seus olhos grandes e véu azul, cantarolava as definições em árabe.

Apregoei um evangelho de objetividade, isenção de preconceito e independência – as virtudes canônicas do jornalismo norte-americano – e expliquei por que os jornalistas não devem ocultar matérias para proteger os poderosos, ou mentir, ou agir de forma ilegal, ou oferecer dinheiro às fontes, ou receber dinheiro das mesmas, ou fingir ser alguém que não é. Os estudantes apreciaram a teoria, mas na prática, desafiaram-me. Quase todos disseram, por exemplo, que não publicariam uma matéria em que os líderes do governo rebelde parecessem maus, pelo menos até que a guerra terminasse. (“Isso faz de vocês não jornalistas, mas propagandistas”, explodiu um dissidente, balançando os cabelos em desalinho, decepcionado.)

Pediram-me que explicasse o que, na opinião deles, eram lapsos na objetividade da mídia norte-americana. Preparei-me para enfrentar a palavra Palestina, mas ninguém a pronunciou. Em vez disso, um jovem de óculos queixou-se: “Nós lemos em seus jornais que somos ‘rebeldes’. Não somos ‘rebeldes’. Somos revolucionários.” Para os líbios, explicou, a palavra rebelde tem a conotação de desafio a uma autoridade legítima, como um pai, por exemplo, e faz os revolucionários parecerem criminosos e assassinos sem princípios. Nosso uso da palavra rebelde revela um preconceito anti-revolucionário. Respondi que o termo rebelde não era estigmatizado dessa forma em inglês. Os líbios – todos eles, revolucionários – não se convenceram.

O instinto de matar

No final do treinamento, dividi os estudantes em pequenos grupos e dei-lhes um exercício de reportagem: haviamos recebido uma dica anônima que dizia que o embaixador norte-americano recebera na véspera o fugitivo Saif al-Islam Qaddafi. Investiguem. Hunter Keith, um norte-americano do estado de Iowa que falava árabe e fora contratado pela Usaid, estava numa sala ao lado e fazia o papel do embaixador. Passei o número de seu telefone aos grupos, que também podiam entrar em contato com o motorista e o empregado do embaixador – cujos papéis eram desempenhados por dois líbios a quem eu instruíra para pedirem dinheiro em troca de de seus depoimentos. Se os grupos fuçassem, procurando desmentidos e confirmações, eles navegariam por um labirinto de inúmeras fontes duvidosas e acabariam encontrando o verdadeiro furo: a visita do embaixador não era Saif al-Islam, e sim um importante político cuja iminente nomeação para o novo governo seria, por si própria, uma matéria.

Em poucos segundos, o telefone de Keith vibrou em cima da mesa. “Senhor embaixador”, disse o primeiro a telefonar. “Aqui é Saif al-Islam. Nosso encontro de ontem foi bom?” Keith respondeu ao jornalista que não tinha a menor ideia do que estava acontecendo. “Senhor embaixador”, disse o seguinte a falar. “Aqui é a polícia. Nós o vimos embriagado, na rua, e precisaríamos que comparecesse aqui, para que possamos interrogá-lo.” No calor da perseguição, minhas aulas haviam sido esquecidas e a ética, desconsiderada. Com fontes extremamente frágeis, cada grupo apresentou a matéria dizendo que Saif al-Islam se encontrara com o embaixador. Um único grupo fuçou mais profundamente, e com diligência suficiente para chegar à verdade – porém, assim mesmo, conduzido pela mentira de Saif al-Islam.

Na realidade, é razoável dizer que meus alunos preferiam encontrar e executar Saif al-Islam ao invés de levantar a matéria. “Bom”, pensei, “você não pode se tornar um grande jornalista sem primeiro ter algum tipo de instinto de matar.”

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[Graeme Wood é jornalista]