Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O longo (e árduo) caminho

O Grupo RBS, afiliado à Rede Globo e considerado o maior conglomerado de comunicação da Região Sul do país, lançou em dezembro último seu Guia de Ética e Autorregulamentação Jornalística, em evento revestido de pompa e circunstância. De pompa porque a solenidade privada contou com a presença de chefes e demais autoridades dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário dos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. De circunstância porque reuniu o presidente do Grupo RBS Nelson Sirotsky, que proferiu discurso “intransigente” (nas palavras dele) em defesa da liberdade de expressão, e o vice-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Carlos Ayres Britto. Registre-se que o contraditório passou ao largo de tal evento, no melhor estilo midiático brasileiro.

Convidado especial da atividade, Ayres Britto concedeu entrevista aos jornalistas da empresa e falou às autoridades presentes sobre o tema “Liberdade de Expressão e Transparência Pública”(disponível aqui). É de conhecimento público a dedicação profissional e o posicionamento político do ministro quanto às questões da comunicação, tendo sido dele a relatoria da ação que resultou na derrubada pelo STF, em 2009, da Lei 5.250/1967 (a Lei de Imprensa). Para o ministro, tal decisão foi um choque cultural necessário, pois a citada norma “consagrava a censura prévia, inclusive judicial, nos artigos de número 61 a 64”. Ayres costuma colocar-se como ferrenho opositor da censura prévia, no que não há controvérsia.

“Rastrear os atos”

O problema é a confusão que as altas cúpulas diretivas das companhias de comunicação fazem questão de produzir, e que muitas vezes encontram ressonância no Judiciário e na Academia (porque ninguém está livre do discurso social intermediado pela mídia e há quem comungue dos mesmos interesses), de que qualquer tipo de ação fiscalizatória configura censura prévia. Isto não corresponde à verdade. Afinal, defender a existência de uma base regulamentar clara e algum controle social sobre os atos de midiatização (não sobre o negócio, que é exclusivamente privado) está muito distante de qualquer imposição às emissoras de televisão ou rádio sobre os assuntos a serem abordados.

Ayres mantém a confusão entre censura de conteúdo e controle da mídia — este último, concretamente identificado como o estabelecimento de parâmetros a serem observados pelas companhias midiáticas e a fiscalização de seu cumprimento). Estabelecer parâmetros significa, por exemplo, levar em conta a diversidade sociocultural brasileira na definição da programação, ao contrário da perspectiva atual, centralizada em São Paulo e no Rio de Janeiro e imposta ao restante do país como se fosse o único modelo possível de representação de uma identidade nacional. Com a programação montada para atender às prerrogativas legais, quem continuará definindo quais serão os temas abordados na novela ou no telejornal para dar conta da descentralização da produção audiovisual é a empresa de comunicação.

Na entrevista concedida à RBS, Ayres reconheceu que a liberdade de expressão não se limita à ação dos jornalistas ou das companhias de comunicação, mas que consiste no “direito dos cidadãos de acessar e receber informações livres de qualquer tutela”. Para ele, entretanto, “qualquer relativização da plena liberdade de informação jornalística corre o risco de se transformar em censura prévia”. O ministro coloca a imprensa na mesma condição do Ministério Público e dos Tribunais de Contas, ambos órgãos responsáveis pelo controle do poder público. “Eles (mídia e órgãos oficiais) foram especificamente aparelhados pela Constituição para rastrear os atos dos administradores”, afirma o vice-presidente do STF.

Mídia não quer mais do que “credibilidade”

É interessante a abordagem jurídica de Ayres. Ele reconhece que os cidadãos têm direito a receber informação sem tutela, mas ignora o controle realizado pelas empresas de comunicação sobre a informação transmitida por elas. Dá tamanha ênfase à liberdade plena de atuação da organização jornalística que esquece que ela é prioritariamente empresa, e que os seus interesses enquanto agente privado não coincidem necessariamente com o interesse coletivo. Aliás, se já é difícil reunir os vários interesses, dos diversos grupos socioculturais, sob o guarda-chuva de um mesmo interesse público, o problema cresce quando envolve reconhecer no interesse privado a vontade de toda uma coletividade.

O Brasil vive hoje um regime democrático representativo pleno, do qual a liberdade jornalística faz parte. Mas não é possível manter a empresa jornalística acima da lei, carecendo o Brasil de um marco legal das comunicações capaz de reunir os vários textos legais vigentes, fracos e dispersos no emaranhado jurídico. A imprensa não tem papel semelhante ao do Ministério Público ou do Tribunal de Contas, pois, ao contrário destes, ela se guia pela acumulação de capital. Pode-se até discutir se o papel desenhado pelo ministro poderia corresponder à comunicação pública (autônoma do poder público e independente dos interesses de governantes e partidos políticos), mas certamente não cabe a uma emissora comercial.

O ministro entende que liberdade total da empresa de comunicação é indicativo de uma civilização avançada e de uma democracia consolidada. Mas pode-se vê-la como indicativo de uma avançada política neoliberal no setor das comunicações. Diz Ayres na entrevista: “A nossa autoestima estará no ponto mais e mais alto com a plenitude da liberdade de imprensa. Nos orgulharemos do nosso país e a imprensa também mais e mais se compenetrará do seu dever de se depurar internamente, democraticamente, fazendo jus a essa enorme confiança que lhe depositou a Constituição federal”. Mais adiante, reafirma que a mídia não quereria mais do que “credibilidade” (entretanto, sabe-se que a missão de toda empresa é o lucro, o retorno comercial a seus controladores, sendo o prestígio apenas o caminho para tal).

A tirania do capital

Para Ayres, o tempo será suficiente para limpar as empresas comerciais de comunicação de qualquer impureza que as desvie de sua missão constitucional (que chega a ganhar ares de sagrada) de controlar as ações do poder público – como se a companhia de comunicação deixasse em segundo plano as relações comerciais que mantém com os anunciantes privados; como se os recursos públicos investidos em editais e campanhas não tivessem consequência alguma sobre a cobertura jornalística; como se a adesão a determinado projeto político por parte dos acionistas da companhia tivesse repercussão nula no cotidiano da redação. O jornalista não é livre para produzir a matéria que bem entender. Há uma rígida cadeia de comando na organização jornalística, como em qualquer empresa.

O ministro chega a citar Montesquieu (“quem detém o poder tende a abusar dele”) e Lorde Hector (“se o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente”) na entrevista. Ora, se a comunicação já foi apontada como o quarto poder, quem detém esse poder se não a própria empresa de comunicação? Quem, portanto, tende a abusar dele? “Se nós cumpríssemos a Constituição, este país estaria muito bem. E é essa Constituição que assegura a plenitude de liberdade de imprensa”, afirma Ayres, sem citar a proibição constitucional à formação de oligopólios nos meios de comunicação. Todavia, a imprensa livre aí está, organizada na forma de oligopólios, contrariando frontalmente a Constituição.

Em um aparente esforço de concessão, o ministro reconhece a legitimidade da ação de conselhos sociais no campo da comunicação, desde que formados a partir da sociedade civil, “rigorosamente privados, fora da estrutura do poder administrativo, do poder judicial, do poder legislativo”. Para Ayres, o grande mal está em um conselho criado pelo poder público. O que não é percebido pelo ministro é que não há nada mais nefasto, em uma democracia, do que o controle exercido pela tirania do capital, a partir do interesse privado, à margem da lei e sem a fiscalização de qualquer órgão representativo da sociedade.

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[Valério Cruz Brittos e Luciano Gallas são, respectivamente, professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos e mestrando no mesmo programa]