Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A gramática do português brasileiro

Em Gramática Pedagógica do Português Brasileiro, o pesquisador em linguística Marcos Bagno compila o que os leitores de Caros Amigos conhecem de seu trabalho através da coluna que mantém na revista. Bagno defende a libertação da língua praticada no Brasil das regras seculares do português de Portugal e uma gramática que contemple os modos do falar brasileiro.

O livro, publicado pela editora Parábola, já está nas livrarias. Na entrevista abaixo, Bagno descreve um pouco o que está na obra.

O livro derruba o mito de que falamos todos a mesma língua no Brasil esclarecendo que monolinguismo e homogeneidade linguística são bem diferentes. O que caracteriza o português brasileiro contemporâneo?

Marcos Bagno– O português brasileiro contemporâneo é como qualquer outra língua viva contemporânea: uma língua em constante mutação, instável, sempre em processo de se fazer e refazer. Toda e qualquer língua viva é sempre uma língua que “está”, nunca uma língua que “é”, porque nós falantes não paramos de modificar nossas línguas o tempo todo. Num país gigantesco como o nosso, com situações sociais tão diversificadas, climas, etnias, economias diferentes etc., a língua também é diversificada, heterogênea, variável e mutante.

O que deve vir primeiro: o estudo da língua ou o domínio da escrita e leitura?

MB– Sem dúvida nenhuma, o domínio da leitura e da escrita, ou seja, o letramento. Saber ler e escrever com competência e criatividade é o conhecimento mais importante para a plena conquista da cidadania numa sociedade republicana e democrática. O estudo da língua, o estudo específico e técnico da língua, deve ser deixado para depois que a pessoa tiver um bom grau de letramento. Além disso, no processo de aprendizagem da leitura e da escrita é inevitável que a pessoa estude também o funcionamento da língua, reflita sobre ele, intua as regras. Mas isso pode ser feito sem análise sintática e sem decoreba de nomenclatura.

O que seria uma política linguística para o Brasil?

MB– Seria uma política com dois focos, um para o interior e outro para o exterior. Para o interior do Brasil, ela deveria contemplar o ensino do português brasileiro urbano de prestígio, contemporâneo, tal como ele já vem sendo descrito pela pesquisa linguística brasileira nos últimos quarenta anos. É perfeitamente possível, hoje, elaborar material didático de boa qualidade usando o que já sabemos, e sabemos muito, da gramática real do português brasileiro. Temos de produzir, portanto, dicionários e gramáticas afinados com essa realidade do português brasileiro, reconhecendo o português brasileiro como uma língua independente do português europeu, com sua própria história e sua própria gramática e seu próprio léxico.

Ainda no plano interno, é preciso reconhecer o Brasil com uma das nações com maior multiplicidade linguística de todo o mundo: temos quase 200 línguas diferentes faladas em nosso território, mas durante toda a história fomos iludidos com o mito do monolinguismo, que justificava inclusive o extermínio dos povos falantes de línguas indígenas. Reconhecer as línguas como patrimônio cultural, simbólico e identitário de milhões de pessoas significa permitir que elas falem suas línguas, aprendam a ler e a escrever nelas, possam divulgar essas línguas por meio impresso, audiovisual, informatizado etc. É uma questão de direito, o direito linguístico.

No plano externo, o Brasil precisaria assumir o que ele de fato é, a nação mais importante de língua portuguesa, e empreender uma divulgação agressiva da nossa língua, por meio de leitorados no exterior, produção de material didático para o ensino do português brasileiro a estrangeiros etc. Nossa política linguística ainda é muito subserviente às decisões dos portugueses, que são minoritários em quantidade de falantes.

Essa nova abordagem da língua, o português brasileiro, auxiliaria na crise da educação no Brasil?

MB– Não seria a única solução, mas certamente colaboraria muito para melhorar a qualidade do que se ensina e se aprende. Se nas escolas pararmos de ensinar regras que não fazem parte da gramática do português brasileiro, se pararmos de tentar convencer os alunos de coisas que não fazem nenhum sentido (como a concordância maluca de “vendem-se ovos”), se deixarmos de querer ensinar um estado de língua de 350 anos atrás (“vós poderíeis”), se nos preocuparmos mais com a leitura e com a escrita e menos com a obsessão classificatória… assim talvez possamos começar a destruir a antipatia secular que a escola implantou nas pessoas com relação ao estudo da língua.

Como a linguagem popular pode influenciar a versão culta do português falado no Brasil? Quais as influências no léxico, na construção sintática e modos de dizer?

MB– Já podemos começar questionando: o que é “linguagem popular”? O que é uma “versão culta” da língua? As antigas divisões muito rígidas entre “língua popular” e “língua culta” já perderam todo o sentido na sociedade brasileira contemporânea. A mobilidade social intensa, que cresceu ainda mais na última década graças aos programas de inclusão social que fizeram surgir a chamada “nova classe média”, tornou essas fronteiras muito mais instáveis, líquidas ou simplesmente acabou com elas. Hoje são mínimas as diferenças linguísticas entre a fala de um cidadão de classe alta e a de um cidadão de classe baixa. Além disso, as pesquisas mostram que os chamados “erros” cometidos na “linguagem popular” também ocorrem na “língua culta”, só que na boca dos privilegiados eles aparecem como “lapsos” ou “licenças”. O rico não erra, comete lapsos. O pobre não, erra feio. Essas diferenças de avaliação social são muito mais fundas e sérias do que as diferenças propriamente linguísticas.

No livro você diz que a mudança linguística é inevitável e é impulsionada pelos próprios falantes. As variantes linguísticas populares tão estigmatizadas, hoje, como “menas coisas”, podem vir a ser futuramente gramaticalizadas e dicionarizadas?

MB– Perfeitamente. Costumo dar como exemplo o caso do particípio passado do verbo “pegar”. No dicionário Caldas Aulete, da década de 1950, a forma “pego” era atribuída a “pessoas ignorantes”. Hoje os dicionários registram a forma “pego” sem nenhum comentário, porque o uso acabou impondo a forma nova. E é assim que acontece desde sempre. Se hoje falamos português brasileiro e não latim, é porque, ao longo dos séculos, os falantes foram transformando a língua em todos os seus aspectos até ela ficar tão diferente do que era antes a ponto de receber outro nome. O português brasileiro é a continuação histórica do latim, algo como um “latim falado errado”, para usar a terminologia do senso comum…

“Os linguistas têm se limitado a descrever as relações entre língua e sociedade: trata-se agora de transformá-las.” Como seria essa transformação?

MB– Os linguistas têm acumulado muito conhecimento sobre as línguas, mas muitas vezes não se dão conta de que esse conhecimento tem o poder de destruir velhos mitos culturais, desmentir preconceitos sociais e colaborar para uma efetiva democratização das relações sociolinguísticas. Podemos transformar essas relações levando a um público cada vez mais amplo as nossas descobertas, mostrando como é a língua de fato e não a língua idealizada das gramáticas normativas e do ensino tradicional. É o que tento fazer com a minha Gramática.

Qual a verdadeira dimensão da gramática e a sua importância para o conhecimento da língua?

MB– O termo “gramática” encobre muitos sentidos diferentes. Para o linguista, “gramática” é o nome que se aplica a todas as regras que fazem uma língua funcionar. Assim, faz parte da gramática do português brasileiro a regra que nos leva a dizer coisas como “ainda não chegou os livros que eu pedi” ou “os menino tá tudo lá fora brincando”, junto com “ainda não chegaram os livros” ou “os meninos estão todos lá fora brincando”, porque todas essas construções seguem regras, não são frutos do acaso ou da “burrice” dos falantes. No entanto, por razões históricas e socioculturais, nem todas as regras de funcionamento da língua recebem a mesma avaliação social: algumas são tidas como “boas” e “bonitas”, enquanto outras são tidas como “ruins” ou “feias”. Essas avaliações são exclusivamente ideológicas, nada têm que ver com fenômenos propriamente linguísticos. Mas são essas regras seletivas e selecionadas que entram na descrição dos livros chamados “gramáticas”, que são tradicionalmente obras normativas, prescritivas, ou seja, que deixam de lado muita coisa que existe na língua para só incorporar o que uma certa tradição considera correto.

Normalmente o professor de língua portuguesa ensina a norma padrão, pois o aluno vai à escola para aprender uma variedade de língua que ele desconhece. As outras variantes são apresentadas como algo exótico e pitoresco. Na realidade o professor está ensinando a hegemonia do padrão culto da língua e a desqualificação e repressão do padrão popular.

MB– A coisa é mais complexa do que isso, porque hoje em dia nosso professorado provém majoritariamente das camadas sociais C, D e E. Grande parte dos que se formam docentes vêm de famílias com pais e mães pouco letrados ou mesmo analfabetos. Nossos docentes hoje são muito mais portadores das “normas populares” do que os de antigamente. Assim, é pouca a diferença entre o que fala um(a) professor(a) e o que fala um(a) aluno(a). Na escola, hoje, convivem sem problemas as muitas variedades do português. Com isso, a norma-padrão tradicional, que sempre foi muito artificial e anacrônica, perde totalmente o seu sentido na escola de hoje. Por isso, muitos docentes ficam espantados ao descobrir que determinadas construções que eles mesmos usam são consideradas “erradas” pela tradição. Assim, o mais importante, na formação docente, é antes de tudo o letramento desses mesmos docentes, que não têm bom domínio da leitura e da escrita porque vêm de ambientes sociais e culturais onde a leitura e a escrita não têm um peso significativo. Aí está o grande nó: como querer desenvolver o letramento dos alunos se os próprios professores não têm um letramento suficiente? Enquanto esse nó não for desfeito, dificilmente levaremos a educação a melhores patamares.

Norma-padrão (culta ideal) e norma culta real (mais próxima da realidade do falante) podem conviver ou são excludentes?

MB– Não só podem como convivem. A atividade linguística de um povo independe das prescrições, das determinações de meia dúzia de supostos dirigentes dos assuntos linguísticos. A língua é parte integrante do próprio ser de cada indivíduo: nós somos a língua que falamos e ela nos constitui como seres sociais. Todo indivíduo falante é portador de uma ampla intuição linguística e de um repertório linguístico poderoso. A função da escola é ampliar ainda mais esse repertório, levando a pessoa a conhecer outros usos, sobretudo os que não fazem parte de sua vivência sociocultural. Daí a importância da leitura e da leitura de textos literários, da literatura consagrada, porque são atividades ausentes do ambiente familiar da grande maioria dos nossos aprendizes. Conforme já disse, as fronteiras entre as variedades linguísticas são cada vez mais fluidas, há uma forte e intensa mixagem de normas e variantes hoje no Brasil.

O livro é destinado aos professores de língua portuguesa, o próximo passo seria construir a didática da gramática do português brasileiro? Como traduzir essa teoria para os alunos do ensino básico?

MB– Essa teoria não tem que ser traduzida para os alunos do ensino básico. Os alunos do ensino básico têm que aprender a ler, a reler, a re-reler, a escrever, a reescrever, a re-reescrever etc. Nesse processo de letramento eles vão se apoderando, intuitivamente, da gramática (do funcionamento) da língua. O professorado, no entanto, tem de conhecer muito bem, muito profundamente, com profundidade teórica e científica, o seu objeto de trabalho, não para “ensinar gramática”, para saber reconhecer os fenômenos linguísticos que vão surgindo em sua prática pedagógica.

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[Solange Americano é formada em Letras pela USP e atua no programa Educação de Jovens e Adultos (EJA)]