Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

No jornalismo não há fibrose

É como se vivêssemos na terra do faz de conta. Dizem-nos: 1) o jornalismo chegou ao apogeu; não é preciso criticá-lo em demasia, apenas praticá-lo cotidianamente; 2) os meios de comunicação são assim mesmo: às vezes distorcem o que extraem da realidade, mas não devem ser questionados com ênfase desproporcional, porque, afinal, prestam um serviço à coletividade…

O livro de Felipe Pena que vocês vão ler a seguir está francamente na contramão dessas teses falaciosas, resignadas e dóceis, que prosperam numa sociedade marcadamente desigual e em profunda crise de valores. As falácias são produzidas pelas máquinas discursivas do jornalismo hegemônico, verdadeiras correias de transmissão (para usar a célebre imagem de Vladimir I. Lenin) do discurso neoliberal ainda vivo, apesar dos rotundos fracassos das políticas econômicas que apregoa. Um jornalismo cada vez mais minado pela falta de credibilidade, pela desconfiança do público e por ambições lucrativas que se superpõem ao dever de informar com veracidade e exatidão.

Felipe reage às mistificações difundidas por grande parte da mídia e seus fiéis epígonos. Da primeira à última linha, sem temer controvérsias ou fugir da sombra das patrulhas ideológicas, ele reivindica o imprescindível debate das ideias. E fustiga a renhida resistência à diversidade que caracteriza as corporações midiáticas, reafirmando, contra as vontades autoritárias, o valor do pluralismo como matéria-prima da democracia.

Dissenso interditado

A tônica dos 11 ensaios que compõem No jornalismo não há fibrose é a defesa transparente de posições e princípios. Em momento algum se tergiversa ou se cede a fórmulas fáceis de apaziguamento. Aqui, a defesa de posições nada tem a ver com o proselitismo ou retóricas de ocasião, muito menos com a enfadonha catilinária pró-mercado. Ela se elabora em sintonia com a complexidade do pensamento crítico, tão necessária para desvendar as linhas de força de uma época em que o jornalismo dos megagrupos, com frequência atordoante, esquece compromissos essenciais com a ética e afunda na discriminação, no preconceito ou na deturpação.

Uma das evidências notórias é a ruína de reputações que se segue a calúnias divulgadas em escândalos impressos ou audiovisuais, muitos deles não confirmados, depois, na apuração judiciosa dos fatos. Felipe Pena ressalta o imenso descompasso daí decorrente, pois as retratações, fora do contexto acusatório original, não têm o mesmo espaço nem o devido peso. O que o leva a esta certeza capital: “As feridas abertas pela difamação jamais cicatrizam”.

Também chama a atenção para as cínicas alegações de que são “critérios editoriais” que orientam os noticiários, quando, na verdade, costumam prevalecer mecanismos de controle da informação e da opinião, ao sabor das conveniências e idiossincrasias dos proprietários dos meios de produção. Como ele bem assinala:

“Gostamos do direito à liberdade, mas desconfiamos das responsabilidades inerentes a ela. Quando nos colocam regras de conduta, dizemos logo que é censura. A menos, é claro que sejam as regras do patrão. Aí, damos outro nome: política editorial.”

Trata-se, em síntese, de uma liberdade de empresa que, não raro, nega o contraditório, interdita o dissenso e reduz a margens quase invisíveis o que Eduardo Galeano, magistralmente, definiu como “a variedade de mundos que o mundo contém”.

Reflexão crítica

Além da relevante discussão sobre limites e problemas implícitos nos abismos éticos do jornalismo mercantilizado, Felipe Pena aborda uma série de instigantes temáticas que acabam por se complementar na sequência dos textos. Ele nos oferece análises sobre o culto midiático às celebridades e ao narcisismo; as relações de fronteira e sentido entre jornalismo e literatura; a significativa renovação do gênero biográfico; a sistematização das teorias do jornalismo em diferentes escolas interpretativas; a fantasiosa celebração das tecnologias de comunicação e suas ressonâncias socioculturais; e a espetacularização das programações e das notícias, dentro da lógica de comercialização adotada pela maioria dos veículos.

Em tal percurso, Felipe revela um estilo envolvente de expor sem pressa de convencer. Consegue criar uma atmosfera propícia ao diálogo em torno de seus argumentos, fazendo supor o desejo de aproximar-se do universo de compreensão e resposta dos leitores. Não é difícil perceber que, para ele, nas convergências ou nas discrepâncias, há um espaço possível de vinculação com o outro – aquele sutil movimento de dizer e ouvir que geralmente traduz um sentido de construção contínua do entendimento. O leitor, portanto, está no centro das atenções pulsantes do jornalista e escritor que se expande no teórico empenhado em intensificar os vasos comunicantes com quem o acompanha, ciente de que deve recusar consensos ilusórios e dividir as sementes da inteligência para ter direito a uma colheita mais farta. Resulta uma seleção de ensaios que lemos com a sensação de que, de alguma forma, somos partes integrantes da experiência de interrogar desenvolvida pelo autor.

Se me pedissem para eleger o principal mérito deste livro, eu não hesitaria em apontar as vertentes de reflexão crítica que nos proporciona em suas páginas – todas elas nucleadas por uma preocupação humanista que deve (ou deveria) inspirar o jornalismo e as teorias do jornalismo na contemporaneidade.

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[Dênis de Moraes é jornalista, doutor em Comunicação pela UFRJ e pós-doutor pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (Clacso, Argentina), professor da Universidade Federal Fluminense e autor e organizador de diversos livros, entre os quais A batalha da mídia (FLC, 2009), Cultura mediática y poder mundial (Norma, 2006), Sociedade midiatizada (Mauad, 2006) e Combates e utopias: os intelectuais num mundo em crise (Record, 2004)]

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[do release da editora]

“No jornalismo, não há fibrose. O tecido atingido pela calúnia não se regenera. As feridas abertas pela difamação não cicatrizam. Quem tem a imagem pública manchada pela mídia não consegue recuperá-la. Está condenado ao ostracismo.” É assim que o jornalista e professor Felipe Pena começa seu mais recente livro, que é uma coletânea de artigos apresentados em congressos nacionais e internacionais nos últimos anos.

No livro No jornalismo, não há fibrose, o professor apresenta histórias de pessoas anônimas e públicas, vítimas de notícias distorcidas e difamações. Felipe Pena usa exemplos como o da Escola Base, ocorrido em 1994, quando o diretor da instituição foi acusado de pedofilia e massacrado por diversos veículos da imprensa brasileira. Além de discutir conceitos complexos como liberdade de imprensa, opinião pública e sociedade da informação.

O livro também envereda pelas variações do jornalismo na atualidade, pelas interseções com outras disciplinas (como a psicanálise e a literatura, por exemplo) e pelas mudanças na carreira dos profissionais da imprensa, além de abordar algumas análises históricas e filosóficas.

Objetivo e amparado por ampla pesquisa bibliográfica e de campo, No jornalismo não há fibrose examina os caminhos possíveis para a combinação de um jornalismo responsável com a ética pública, o que é essencial para o bom exercício da profissão.

O autor

Felipe Pena é jornalista, psicólogo e professor de jornalismo na Universidade Federal Fluminense. Doutor em Literatura pela PUC-Rio, com pós-doutorado pela Université de Paris – Sorbonne III, é autor de 12 livros, entre eles três romances. Foi finalista do prêmio Jabuti em 2011, com o livro Seu Adolpho, uma biografia em fractais de Adolpho Bloch.