Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

“Cachaça ruim essa de Itabira”

Fez triiimmm o telefone do apartamento de Carlos Drummond de Andrade. O itabirano atendeu e ouviu este por-favor: jogue fora aquela garrafa com cachaça de Itabira, pois é horrível, não desce nem com limão. A voz era do poeta, ensaísta, crítico e professor goiano Gilberto Mendonça Teles, possivelmente vítima de um golpe que ainda vige no comércio itabirano.

Na primeira visita à cidade de Drummond, o autor de Saciologia Goiana almoçou num restaurante onde lhe serviram boa cachaça. Gostou e comprou três garrafas. Guardou a dele e deu as outras de presente, uma para o autor de Boitempo. Quando Gilberto Mendonça Teles abriu, para beber com um poeta maranhense que o visitava no Rio de Janeiro, ó desagradável surpresa. Ligou logo para Drummond, avisando-o sobre a péssima cachaça de Itabira.

Quase 30 anos depois, O TREM levou a Nezito Sampaio, tarimbado dono de armazém em Itabira, o caso da cachaça que feriu o paladar de um poeta e por pouco não arranhou a garganta de outro. O goiano caiu no golpe da provadinha, suspeita Nezito Sampaio. Um comerciante oferece a um freguês viajante uma amostra de um bom produto – cortesia da casa. Estimulado, ele compra várias unidades para viagem. Longe da vista da vítima, o escroque embrulha uma mercadoria barata, de má qualidade. Simples, certeiro e bem sacana.

A seguir, em entrevista exclusiva, Gilberto Mendonça Teles fala também sobre livros, abdução, Goiás, Minas, a prostituta que pendurava poemas dele na parede, o médico que não cobrou do poeta e outros assuntos. “O Brasil só atingirá a sua maturidade política e econômica se cada estado, município, distrito, povoado, biboca do mato dentro adquirir a consciência da sua sustentabilidade cultural”, diz.

Gilberto Mendonça Teles passava de madrugada por Ipanema, foi abduzido para o planeta Attynk, a bordo da nave TWgW2sr, e recebido pela simpática etezinha Nikolli: “Oi, poeta, bem-vindo. Vamos tomar um chazinho. Conte-me como é seu país, é bom viver lá?” O que responderia?

Gilberto Mendonça Teles – Não houve muita surpresa na abdução, sobretudo nas altas horas de Ipanema, perto do Pavão-Pavãozinho, onde há sempre um pavão misterioso levantando voo para algum planeta ainda por descobrir – utópico e ucrônico como a Ilha dos Bem-Aventurados ou a dos Amores, um daqueles paraísos que Luciano de Samosata soube parodiar no início do cristianismo. Só num lugar assim, um ar-tesão como o Gilberto poderia encontrar uma etesinha (sic) tipo Nikolli, capaz de ir logo lhe oferecendo um pouco de chá das cinco (“Chá de poejo para o teu desejo/ chá de poaia e rabo de saia”). Combinamos que só depois do chá conversaríamos sobre o meu país e sobre a vida por lá. Pedi-lhe que, para o sentido maior da nossa intimidade, era preciso abolir o título honorífico de “senhor”. Assim, depois do que disse à etezinha, e que não fica bem publicar aqui, o poeta começou a explicar que o seu país tem a forma de harpa, por isso nele há sempre música, sendo muito bom viver por lá. O problema é que há muito tempo o instrumento anda desafinado, na corda política, na da educação, na da seriedade administrativa, produzindo sons estridentes como o da corrupção. Nikolli se sentiu triste e me pediu para continuarmos outro dia. Prometeu tomar um chopinho comigo em Copacabana. Mas antes que eu voltasse, pegou um livro, Linear G, e me leu trechos do poema “Formação da Consciência Nacional”: “É só ir expulsando os índios, matando-os se for preciso./ Acasalar-se com as negrinhas e plantar alguma roça/ para povoar e garantir a ‘legitimação’ da posse./ Fazer santo de pau oco para esconder ouro e diamante/ assim como os vice-reis fizeram com a Coroa./ Fica desde logo instituída a lei do mais esperto./ No início do século XX os seringalistas/ punham pedras para aumentar o peso da borracha/ e ainda hoje nas feiras se escondem as frutas podres/ no meio das sadias para enganar os fregueses/ e nalgum lugar do Distrito Federal/ tudo se faz e se desfaz et coetera e tal”. Leu depois uma estrofe de “O Estilo”, onde se diz que há por lá (aqui): “A arte do sim pensando o núncara,/ garantindo a eleição com asa adúncara,/ jeitinho de encobrir com véu e rábula/ e pôr dentro da cueca alguma fábula/ ou lixo ou dólar, toda coisa lúbrica/ que ninguém sabe nem viu nesta república”.

O senhor esteve em Itabira duas vezes. Ficou-lhe algo dessa viagem?

G.M.T. – Itabira, cidade que todo leitor obstinado da obra de Drummond deseja conhecer. Na primeira vez, 1983, eu havia alugado um apartamento em BH com o fim de acompanhar meu filho em dois transplantes de córnea. À espera dos acontecimentos e tendo já terminada a leitura do livro que levei para revisão, aceitei o convite de uma amiga, professora de letras, para visitar Itabira. Andamos pelas ruas, tentando identificar referências de poemas. No almoço em um restaurante, pedi um aperitivo, uma cachacinha local. O dono nos serviu uma muito boa, e tão boa que comprei logo três garrafas: para mim, para a professora e outra para levar ao Drummond. No Rio, telefonei-lhe e marcamos uma visita: fui com a garrafa de pinga, feliz por poder comentar com ele a visita à sua terra. Dias depois, foi à minha casa um poeta do Maranhão. Abri a garrafa que havia trazido de Itabira – era muito ruim, álcool puro, impossível de beber, nem com limão. Penso que o dono do restaurante se enganou e me vendeu outro tipo diferente da que trouxe para provar… Telefonei a Drummond e pedi-lhe que jogasse fora a garrafa que lhe dei. Telefonei também à professora de BH. Apreendi que o certo é experimentar sempre ou como disse Camões: “Melhor é exp’rimentá-lo, que julgá-lo:/ Mas julgue-o, quem não pode exp’rimentá-lo”. No livro Plural de Nuvens, o poema “Parêntese”, alusão à Serra do Curral, documenta essa viagem, citando o nome de Itabira: “Talvez eu não devesse estar aqui/ de mãos vazias, remoendo lembranças,/ puxando pelas palavras mais simples/ como se estivesse catando pulgas/ no pelo-sinal dos verbos e verbetes./ Talvez eu não devesse estar aqui/ como um homem cordial, pensando/ na ho(n)ra do primeiro enfarte/ e esperando furar esta fila de córnea/ para os olhos do meu filho./ Talvez devesse estar aproveitando/ Este fim de semana, conhecendo/ Itabira, vendo o rio das Velhas/ e tentando surpreender nas cavernas/ o claro enigma da grande poesia./ Talvez fosse melhor abrigar-me no parêntese/ da serra e ficar contemplando/ o transplante de nuvens e neblinas,/ como se depois de mim, o dilúvio/ e a solução cortada de soluços”. Fui outra vez a Itabira, em 31 de outubro de 1995, para dar um “depoimento sobre Drummond” na TV Cultura local. Falei sobre o sentido de transformação e permanência ao longo de seus livros, enaltecendo assim a atualidade de sua criação poética. Fui convidado pelo secretário municipal de Cultura, de cujo nome não me lembro agora [Márcio Sampaio]. Dormi num bom hotel e pude curtir melhor a simpatia da cidade que, pela data, festejava o aniversário do poeta que um dia me escreveu a respeito de umas anotações que eu fazia sobre a Seleta Drummond, com textos de prosa e verso escolhidos por ele e comentados por mim. Uma das perguntas que lhe fiz por carta era sobre um verso que não encontrei no texto escolhido. E Drummond assim me respondeu: “A ‘pedra de ferro, futuro aço do Brasil’ deve ter sumido de todas as edições posteriores a SM [Sentimento do Mundo] por dois motivos. Primeiro, porque o ferro de Itabira não é beneficiado lá, e vai todo, ou quase todo, para o estrangeiro. Segundo, porque o verso é um tanto enfático e menos acomodado ao tom elegíaco do poema. Meditando sobre ele agora, porém, resolvo restabelecê-lo. Afinal, brotou das entranhas, em hora de nostalgia, juntamente com os demais versos… e acabei me reconciliando com ele, graças a você”. Por falar em pedra, é bom explicar o sentido que dou ao famoso poema “No Meio do Caminho”. No meu livrinho Caixa-de-Fósforo, depois de um poema aos 70 anos de Drummond, que ele me agradeceu numa carta, escrevi em nota de rodapé que “o poeta se casou em 1925. Em 1927, nasce e vive alguns instantes seu filho Carlos Flávio. Em julho de1928, a Revista de Antropofagia publica “No Meio do Caminho”, onde, a meu ver, a palavra pedra deve ser lida como hipértese de perda: a ‘pedra’ tumular a assinalar a ‘perda’ do filho”.

Há algo ainda carente de estudo na obra dele ou tudo já foi escarafunchado?

G.M.T. – Numa conferência na Universidade de Lisboa, em 2007, sobre “O privilégio de ler Drummond”, falei/escrevi que a obra de um grande poeta é algo que não se entrega totalmente e sempre permanece desafiando as gerações de críticos e estudiosos. Assim, a riqueza, a complexidade e a força simbólica de uma obra como a de Drummond constituem um desafio permanente. E só a soma futura dos livros, monografias, ensaios e das interpretações poderá fornecer, se não a totalidade, pelo menos uma visão das principais tendências temáticas, técnicas e estilísticas de sua grande obra literária. Se esta é a opinião dos teóricos e estudiosos, não deixa de ser também, por outro ângulo, a de um poeta como Drummond que, num depoimento pessoal, me afirmou estar convencido de que o poeta trabalha sempre a mesma obra, como se houvesse um fundo permanente (o seu “armazém do factível”?), sempre retomado e expresso diferentemente pela vida afora. Cada poema, cada livro, cada obra retoma e acrescenta algo diferente que a verdadeira crítica (de agora ou do futuro) tem o dever de avaliar, independente das festividades em torno dela. Assim, meu caro Marcos, nem tudo foi escarafunchado ainda e muita coisa que o foi precisa com o tempo ser reescarafunchada por outros talentos críticos, à luz de novas teorias e fora dos entusiasmos universitários que se arrogam donos da obra do poeta, sem acrescentar quase nada de valor crítico no que escrevem sobre ela.

Temos em Itabira um governo obscurantista, inimigo dos livros. Qual a importância dos livros no desenvolvimento de uma cidade, um estado, um país?

G.M.T. – Como leio O TREM, sei do esforço e da independência do seu jornal no sentido de iluminar (no iluminismo da atualidade) a vida pública de sua cidade e região, conscientizando-a para que, passado o tempo noturno (que sempre passa), os valores culturais da arte e da literatura encontrem o seu renascimento. Foi sempre assim: o romance só apareceu depois que o símbolo totalitário se democratizou e o imaginário individual pôde ser expresso como arte e como literatura. Creio que o país só atingirá a maturidade política e econômica se cada estado, cada município, distrito, povoado, cada biboca do mato dentro adquirir a consciência da sua sustentabilidade cultural – palavra da moda, mas filosoficamente correta. Como se chegará a essa consciência? Pela educação, pelos livros, pela construção de uma inteligência que sustente a esperança numa vida melhor. Acredito nisso e, como exemplo, já remeti para Bela Vista de Goiás, onde nasci, cerca de dez mil volumes.

A literatura muda o mundo. A literatura não muda o mundo. Onde põe o xis?

G.M.T. – A literatura muda o mundo, como começou a mudar desde que a escrita foi introduzida na Grécia (VII a.C.) e os poemas de Homero motivaram o aparecimento dos poetas líricos e trágicos, na grande paideia que civilizou o mundo ocidental. Penso que a literatura na expressão “mudar o mundo” deve ser entendida como instrumento de conscientização: ela ajuda a dar ao homem o conhecimento, o saber necessário para que ele se situe condignamente no mundo.

Os jovens de hoje, tirando os tais gatos pingados, não leem poesia. A culpa maior é da escola brasileira?

G.M.T. – Não penso assim, acho que, mais do que “os tais gatos pingados”, muita gente lê poemas, o que não quer dizer que leem poesia. É que sempre se falou assim, mas ninguém fez ainda uma pesquisa séria a esse respeito. Claro que essa pesquisa não deve ser feita apenas nas editoras. Sei que há muita gente lendo, nova e velha. É preciso ver também as produções independentes, sobretudo agora com a facilidade de impressão e com a diversificação da leitura. É possível que hoje a escola, querendo parecer (não ser) moderna e fascinada pelo computador, venha descurando a leitura dos bons poemas. Mas não esqueçamos que poetas como Manuel Bandeira e Drummond só começaram a ser lidos na escola depois dos seus 40 anos.

Ninguém jamais conseguiu ler todos os bons livros. Isso o angustia?

G.M.T. – Claro que sim, tal como deve ter angustiado Harold Bloom: a angústia da leitura é uma doença da modernidade, embora no fim do século 19 Mallarmé tenha dito que leu todos os livros, o que é compreensível. O que mais me angustia não é a falta de tempo, mas a perda inútil de tempo, leituras inúteis que somos obrigados a fazer em livros, jornais e computadores. A angústia aumenta depois que se sabe que Drummond, em “Apelo a Meus Dessemelhantes em Favor da Paz”, disse estar “atrasadíssimo nos gregos”, pedindo angustiado: “Ah, não me tragam originais/ para ler, para corrigir, para louvar/ sobretudo para louvar”. Isso é a angústia.

Se pudesse escolher um poeta brasileiro morto para papear por meia hora, quem seria?

G.M.T. – Gostaria de conversar com Manuel Bandeira, não apenas meia hora: leria com ele os seus poemas para extrair deles a lição da simplicidade, do apuramento técnico e da luta que ele teve consigo mesmo para fazer o seu verso livre ficar tão próximo da linguagem comum sem perder a poesia. Acho que Drummond também gostaria de ficar batendo papo com ele, aliás já o fez na “Ode ao Cinquentenário do Poeta Brasileiro”.

O escritor Cyro dos Anjos perguntou-lhe, jocosamente: “Goiano, lá em Goiás se estuda literatura?” O senhor, ofendido, deu ao mineiro esta resposta: “Não estudamos muito bem, não, mas lemos muitas coisas ruins que escrevem por aí. Há pouco lemos um livro do senhor por lá”. Houve mesmo esse diálogo ou é lenda?

G.M.T. – É verdade. Em 1962, já professor da Faculdade de Filosofia em Goiânia, fui convidado para o quadro de professores da nascente Universidade de Brasília. Na primeira reunião para distribuição dos horários e das turmas, conheci Cyro dos Anjos, diretor do Departamento de Letras, onde eu ia trabalhar. Ele me disse que eu trabalharia com língua portuguesa, embora tivesse sido convocado para a área de literatura. Disse-lhe que gostaria de começar com a literatura. Foi aí que ele, querendo fazer graça, me fez, muito sem graça, a tal pergunta, a que dei a citada resposta, relembrada no meu poema “In Illo Tempore”. Coincidentemente, a UnB era mineira, de Montes Claros, como o reitor Darcy Ribeiro e o diretor do Departamento de Letras, Cyro dos Anjos, não se falando em outros professores que flanavam por lá. A vida constrói, entretanto, as suas voltas. Saí de Goiânia para Lisboa e fui logo convidado pelo Itamaraty a trabalhar em Montevidéu. Depois de quatro anos, recebi o AI-5 e achei melhor não voltar a Goiânia, onde nada se fazia sem consultar Brasília. Vim para o Rio de Janeiro, a cidade mais democrática do Brasil, onde estou há quase 40 anos. Um dia recebo telefonema de Afrânio Coutinho me convidando para dar curso sobre poesia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Lamentei, dizendo que estava cassado, ao que ele retrucou: “Venha assim mesmo, ninguém aqui está querendo dar curso de poesia”. Fui e encontrei lá o professor Cyro dos Anjos: a sua timidez, a sua voz suave e a sua angústia de perfeição literária. Pois não é que o diretor do Departamento de Letras me convoca para saudar Cyro dos Anjos nos seus 80 anos. Aceitei, com muita honra. Tive o bom senso de não aludir ao nosso passado nos primeiros tempos de Brasília. Creio que ele nem se lembrava mais daquele rapaz audacioso que causou rizinhos abafados entre efebos daquela troupe. Teci comentários elogiosos à sua obra e, mais tarde, na PUC, orientei um bom doutorado sobre O Amanuense Belmiro.

O que perde uma pessoa que ainda não lê Gilberto Mendonça Teles?

G.M.T. – Não perde nada, nem mesmo a possibilidade de me conhecer. Mas o diabo é que muita gente já deve ter perdido tempo com o meu lado crítico e até com a minha obsessão pela poesia. No fundo, as expressões grega do “êáëüò Üãáèüò” e da “áñåôÞ” resumem a minha filosofia de vida literária.

É verdade que uma prostituta colava poemas do senhor na parede do quarto dela? É lindo. Como ficou sabendo?

G.M.T. – É, sim. Eu tinha 19 anos e Celina, 24. Morava sozinha, numa pequena casa na Vila Operária, perto da zona. Quando chegava o fim do mês e recebia meu dinheirinho, ia visitá-la. Ela abria uma garrafa de vinho, pois sabia que eu não gostava de cerveja, e conversávamos até de madrugada. Eu frequentava a Faculdade de Direito e já tinha um bom emprego, por concurso. Escrevia muito e de vez em quando publicava um poema nos jornais de Goiânia. Um dia, ela me mostrou na parede de seu quarto, ao lado de uma estampa de santo e de alguns retratos, um poema em que eu falava de amor. E sempre que ia lá, no fim do mês, encontrava o recorte de um novo poema. Penso que acabou gostando de mim e não me cobrava nada, nem o vinho. Confesso que fiquei muito feliz por ver os poemas na parede do seu quarto. Mas essa felicidade foi a causa de nossa separação. Comecei a gostar dela e cheguei a lhe falar em casamento. Ela meigamente me disse: “Na outra vez vamos conversar sobre isso”. Achava estranho que ela me proibisse de ir lá no fim de semana, a partir de sexta-feira. Depois dessa conversa interrompida, nem cheguei a esperar o fim do mês e, numa terça-feira à noite, lá estava eu com um novo poema na mão. Leu-o e começou a me dizer: “Você sabe que esta casa não é minha. É do fazendeiro que vem no fim de semana: ele também pensa em se casar comigo e sabe de você, acha até que você é uma boa companhia para mim. Você é ainda muito novo, a sua vida vai lhe trazer outras alegrias, inclusive um casamento muito melhor”. Fiquei pê da vida e nunca mais voltei lá. No caminho de casa – morava com meus pais –, fui pensando o poema “Vida”, cuja última estrofe tenta “refletir” a minha angústia daquela noite: “A vida que chega e foge/ sem madrugada e sem tarde,/ fora demais possuí-la,/ tê-la entre os dedos, amá-la,/ senti-la a cada momento,/ depois perdê-la no tempo/sem conhecê-la jamais!” Marcos, você puxou a história, agora aguente o final. Dez anos depois, no lançamento do livro Pássaro de Pedra, levantei os olhos do livro que estava autografando e vi duas mulheres bem vestidas saindo da livraria. Logo que terminei o autógrafo, pedi licença e fui perguntar ao livreiro pelas duas mulheres: “Não sei quem são, mas compraram seu livro e saíram pela direita”. Saí atrás, alcancei-as, pedi licença e vi que era Celina. Desculpou-se por não haver pedido o autógrafo: não queria me constranger. Tirou um cartão da bolsa e me disse: “Espero o seu autógrafo neste endereço. Meu marido vai gostar de conhecer você”. Saí como um cachorro com o rabo entre as pernas. Marcos, só não compreendi o seu “como ficou sabendo?”, na pergunta. Eu é que deveria lhe perguntar: como ficou sabendo disso? Gostei que você achasse lindo. Lindo foi também o gesto elegante dessa mulher que nunca mais vi.

Vivemos uma época superabundante em informação e também da enganação travestida de informação. Qual a compreensão do senhor sobre esse assunto?

G.M.T. – Os meios de informação, além do jornal, o computador, a internet, o e-mail e o celular, só uso esses, aumentaram em dez anos a minha capacidade de produção intelectual. Eu me iniciei no computador quando fui professor na Universidade de Chicago, em1991, e de lá para cá tenho tirado todos os proveitos dele. Quanto ao e-mail, lamento apenas a quantidade de lixo que nos chega diariamente. É preciso saber selecionar para responder: se não, perde-se muito tempo com ele. A televisão brasileira não é capaz de veicular notícias positivas, mesmo quando denunciam a corrupção em Brasília, os crimes no Rio de Janeiro e São Paulo. O índice de audiência se marca por esses temas. E a audiência tem a ver com o nível de educação do povo brasileiro, logo o “melhor” é deixar o povo a ver navio ou futebol. Há no Rio de Janeiro, como em toda capital, um grupo de radialistas que perdem diariamente horas e horas discutindo o óbvio dos problemas dos clubes e dos jogadores de futebol, com muita gente boba que os ouve, que nem eu… Voltando ao e-mail,vai um poema sobre ele: “E-MAIL: por artes do saci ou da internet/ meu nome se encolheu – virou gilmete/ para evitar o golpe da mão-boba/ depois do nome colocar @/ e continuar mas sem mudar de tom/ a conexão de globo ponto com/ como não gosto que me grite ou berre/ nem é preciso digitar br”.

Ao professor: por que a questão do ensino no país ainda é vergonhosa, com professores mal-remunerados e escolas aos pedaços, entre outros pesares?

G.M.T. – Muito do que você afirma, questionando, está implícito em respostas anteriores, de maneira que devo apenas concordar, pondo ênfase num dos problemas do ensino, o da pesquisa, e criticar o sentido de horizontalidade (de expansão) que vem caracterizando a universidade brasileira. Há muitos anos que as federais têm um objetivo nacional: criar campi, estender-se pelo Estado. Quanto mais “campos” tiverem, mais importantes aparecem às verbas do MEC. Com isso, não conseguem aperfeiçoar seus professores nem modernizar os instrumentos pedagógicos, mas contavam com a “vantagem” de novos centros universitários na região. Por outro lado, por exigência da Capes os professores têm de pesquisar e produzir continuamente. O resultado são estudos apressados, com pesquisa livresca para congressos anuais, sem ou quase nenhuma contribuição para o pensamento científico. Para resolver o problema, os últimos governantes trataram de criar mais universidades, em vez de aperfeiçoá-las. A verticalidade vai cedendo lugar à chamada horizontalidade “democrática”.

É importante ouvir gente séria sobre este assunto crucial no Brasil: televisão. A TV Brasileira, refiro-me aos grandes canais, está insuportável. Como desburrificar o público que a TV burrifica?

G.M.T. – Sou amigo de um homem de televisão. Quando lhe ponho a questão de programas culturais, por exemplo, ele vem logo com o índice de audiência: se cai, não presta… Essa é a “filosofia”. Eles têm consciência de que o melhor é continuar como está, apenas com mudanças internas. Em time que está “ganhando” (dinheiro), não se mexe.

Como lida com este aço perfurocortante: a saudade?

G.M.T. – Um bom remédio é a poesia: um bom poema, que se lê ou se escreve, reduz o colesterol, elimina as tensões do corpo e aumenta as percepções da alma. O espírito, sem as dimensões de tempo e espaço, presentifica as lembranças, os acontecimentos, e por aí. O que era saudade se torna vivência – a vida bem ou mal vivida. Não é mais ou menos isso que Willian Wordsworth sugere quando diz: “Poetry is emotion recollect in tranquility”?

Ninguém escreve para ficar escondido e fracassar. Quer fazer sucesso, ganhar dinheiro para poder conhecer o mundo e poder escrever mais e melhor; quer ser lido por muita gente; quer ser admirado e respeitado como autor inteligente, sagaz, culto, que escreve textos enriquecedores. Como é para o senhor essa busca?

G.M.T. – É bonito o que você falou, mas há controvérsias… A primeira coisa é saber que a questão é redutora – diz respeito a quem escreve literatura (poesia, conto, crônica, romance, teatro, crítica e história literária)? Há quem escreve por passatempo, para se ver narcisisticamente no espelho da escrita, nem pensa em publicar, nem pensa em glória ou fracasso. Pode acontecer, entretanto, que o danado sabe mesmo escrever, tem talento: um dia alguém descobre, ou não. Não vou dar exemplo, mas existe. Concordo com o desejo, às vezes inconsciente, do sucesso. Quanto a ganhar dinheiro, não sei não, embora exista o que chamo salário indireto motivado pela aura da poesia, que a literatura muitas vezes proporciona. Exemplo: fui convidado a ser professor na Universidade de Chicago por causa do meu livro sobre as vanguardas. Outro: por causa da poesia – eu havia ganhado o prêmio Olavo Bilac da ABL com o livro A Raiz da Fala –, Afrânio Coutinho me convidou a ser professor de poesia na UFRJ. O verdadeiro escritor (poeta, ficcionista, ensaísta) é sempre tocado pela aretê, palavra grega da qual se originou o termo arte: o termo grego conserva, desde Homero, o significado original de “fazer o melhor” que se pode, de “escrever mais e melhor”, como na sua afirmação. Acho que tudo o mais que você disse tem sentido. Afinal, essa busca tem a ver com a famosa resposta de Paul Valéry, que não me canso de citar: Perguntaram-lhe se ele acreditava na inspiração. “Acredito que os deuses ou demônios nos dão o primeiro verso. Cabe a nós fazer o segundo”, respondeu. Um bom tradutor mineiro, Onestaldo de Pennafort, acrescentou: “Mas é preciso corrigir também o primeiro verso”. Aí está o significado maior do sentido da arte.

Conte-nos, por favor, uma história marcante, bacana, inspiradora, vivida pelo senhor na estrada das letras.

G.M.T. – Quase 60 anos do primeiro livro publicado, quase 60 livros, no Brasil e no exterior, sempre fiel a dois gêneros (poesia e crítica/ensaios), por enquanto. Penso que esta história é marcante, pois legitima a permanência e o valor social da poesia. É a história das córneas, dos dois transplantes. O médico do Rio achou que o problema dos olhos do meu filho devia ser resolvido no Hospital de Belo Horizonte, em 1983. Arranjei dinheiro, abri conta num banco de lá – os cartões de crédito não estavam popularizados –, aluguei um apartamento mais perto do hospital, pois era preciso esperar a doação da córnea. No segundo dia de espera, fui ao hospital e conheci o doutor Paulo Galvão, que ia operar o Antônio. Na conversa, falamos de poesia: ele tinha na gaveta o meu livro A Raiz da Fala, que acabava de ganhar dois prêmios. No final de tudo, fui acertar a conta na tesouraria, mas a moça me disse: “Aqui está escrito que o senhor não tem de pagar nada”. Fui procurar o médico e ele: “Poeta sério não paga”. Não é preciso falar da minha dupla felicidade – a do sucesso do transplante e o prêmio mais valioso dado pela poesia.

Há uma famosa frase: “O México está longe de Deus e perto dos Estados Unidos”. Goiás está perto de Minas Gerais. Isso é bom ou mau para Goiás?

G.M.T. – A frase, se é famosa, não me parece correta para um país que tem o culto da Virgem de Guadalupe. Mas vale pelo sentido de humor, sobretudo quando se pensa nos mineiros que saem do México para os Estados Unidos. A frase tem a ver com um poema em prosa do Mario Quintana: “A morte, simples mudança de estado: uma coisa assim como quem sai do Rio Grande e entra em Santa Catarina”. Quanto à pergunta, na parte final da boutade, lembro que o mesmo bandeirante que fundou Ouro Preto foi dez anos depois fundar Vila Boa, hoje Cidade de Goiás, que acabou dando o nome a todo o estado. O topônimo Goiás significa na língua dos seus indígenas “gente parecida”. Mas parecida com quem? Com os mineiros que foram para lá, tomando não só uma parte do estado (Araguari, Araxá), como acabaram ocupando todo o sudoeste do estado, deixando até cidade com o nome de Mineiros. Talvez seja por isso que é a região mais rica de Goiás e foi de onde – Jataí – Juscelino Kubitschek acordou para a ideia de Brasília. Talvez aí esteja a razão porque Drummond falou de “certo remorso de Goiás/ Goiás a extinta pureza”. Pelo que acabo de narrar, a proximidade teve o seu lado mau e tem agora o seu lado bom. Como eu vivo há 40 anos no Rio, toda vez que vou a Goiás – de carro, três a quatro vezes por ano e mensalmente de avião – tenho um prazer muito grande em atravessar o território mineiro, pois sei que logo chegarei ao goiano. Deixando de lado esse tom humorístico, gostaria apenas de lembrar que meu livro Arte de Armar, que arrebatou um grande prêmio dos mineiros, tem muito da essência cultural de Minas Gerais, chegando a dizer que “O mim de Minas pesa/ mineral e noturno”, alusão talvez a alguma musa morena de Cláudio Manuel da Costa. Por falar em poesia, nas três maiores cidades de Minas Gerais – Belo Horizonte, Juiz de Fora e Montes Claros – estudam-se os meus poemas. Não é à toa que gosto de poetas como os dois Alphonsus, pai e filho, Drummond, Emílio Moura, Henriqueta, Affonso Ávila e muitos outros, menos do vanguardismo ruim dos mais novos.

O senhor se irrita quando associam Goiás às duplas ditas sertanejas?

G.M.T. – Nada disso. Sempre gostei de música, dos clássicos e dos clássicos sertanejos. Dos novos, acho que vale a pena ouvir alguns textos de Leonardo. Gosto também da piada dos dois cornos goianos que, para se consolar, se juntam e formam uma dupla sertaneja. Já disse num poema de Saciologia Goiana que até já andei pondo chifre nas boiadas de Goiás.

Digamos que um goiano inventou uma máquina pela qual é possível falar e ser escutado por todos os brasileiros. Se fosse usá-la para falar durante um minuto, o que todos escutaríamos?

G.M.T. – Possivelmente, textos de Hugo Carvalho Ramos, Bernardo Élis, lido por Guimarães Rosa, e José J. Veiga. Nos meus poemas reunidos (Hora Aberta, 2003), há um poema prosaico que se intitula “Código de Honra”, em cujo primeiro item se fala da beleza das mineiras que conheci nos meus 18 anos. Os sálios, uma tribo dos antigos francos, codificaram um dia as suas leis, conhecidas como “leis sálicas”. Muito tempo depois, uma tribo de Goiás, assustada com os bandeirantes, que ameaçaram pôr fogo nos rios, e temerosa das gentes que chegavam de todas as partes, principalmente dos estados limítrofes, organizou o seu código de honra, hoje conhecido por “lei fálica”. Vale a pena observar o sense of humor, ou o imutári apucá da língua deles, com que iam distinguindo a procedência do forasteiro. O documento se encontra num dos bem organizados arquivos paroquiais do Estado. Nós apenas o traduzimos e os separamos em artigos, uma vez que no original era um texto só, com o título de Micoatiára cunhã koty, ou seja, “carta para (ou sobre) as mulheres” (mineira, baiana, piauiense, paraense, mato-grossense e tocantinense, sem esquecer a paulista e a carioca): “I – Se um goiano fizer mal a uma mineira, seja culpado em passar uma semana em Araguari ou à leitura de romances de escritor local”. No mais, um abraço à etezinha Nikolli, cujo nome me lembra Nicole, uma musa que me abduziu com os perfumes de Paris.

***

[Marcos Caldeira Mendonça é jornalista e editor do jornal O TREM Itabirano]