Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A vida de Marighella com fôlego de romance

No subtítulo da biografia escrita pelo jornalista Mário Magalhães, que será lançada na segunda-feira pela Companhia das Letras, Carlos Marighella (1911-1969) não é nem bandido sem escrúpulos nem herói do comunismo no Brasil. Marighella é “o guerrilheiro que incendiou o mundo”. Era monitorado pela KGB, a polícia política soviética, e pela CIA americana, convicta de que aquele era o substituto de Che Guevara “como o teórico principal da revolução violenta no hemisfério”. Recebeu recursos dos cineastas Jean-Luc Godard e Luchino Visconti e esboços de obras de Joan Miró para irem a leilão, e publicou artigos na “Les Temps Modernes”, revista dirigida por Jean-Paul Sartre. Com visibilidade no exterior, era o Brasil que o baiano Marighella queria incendiar, porém muitos de seus rastros foram apagados pela historiografia oficial, afirma Magalhães. Há nove anos, o jornalista decidiu reconstruir essas pegadas e retificar umas tantas outras, revelando fatos inéditos sobre a vida do guerrilheiro e sua morte em novembro de 1969, no ápice da ditadura militar, sob o governo Médici: morto em emboscada do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) em São Paulo, comandada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, Marighella estava desarmado.

– Esse fato pode ser levantado na Comissão da Verdade, mas o livro é sobre a vida fascinante de Marighella, não sobre sua morte. Por mais que tenha centenas de furos e revelações, é uma narrativa sobre uma vida trepidante. É praticamente impossível ficar indiferente a Marighella – afirma Magalhães.

A vida do guerrilheiro é contada em 760 páginas e três cadernos de imagens, alimentada por 256 entrevistados, 600 livros e 32 arquivos públicos e privados – com documentos da Rússia ao Paraguai, dos EUA a Cuba –, e costurada obsessivamente em apuração, escrita e reescrita. Em quase uma década de pesquisa, cinco anos e nove meses foram dedicados exclusivamente à biografia, fruto do desejo do então jornalista da “Folha de S. Paulo”, que em 2003 estava prestes a completar 40 anos e queria embarcar numa reportagem de fôlego. Para isso, precisava também de um personagem de fôlego.

Narrativa de ação e drama

No ritmo de Marighella, a narrativa ganha tom ágil desde o início, quando em maio de 1964 o foragido comunista leva um tiro no peito e é preso pelo Dops na Tijuca, no Rio, dentro de um cinema que exibia um filme para crianças. O embrulho de roupas que a zeladora do edifício no Catete – de onde ele fugira – carregava ao encontro com Marighella era cor-de-rosa. Uma menina de 14 anos levava o irmão e a prima pela primeira vez ao cinema. O ferido sentiu o sangue na boca. A narrativa é de romance, e era este o objetivo de Magalhães: uma grande reportagem gostosa de ler, e não um estudo de historiador ou cientista político. As 2.580 notas sobre as fontes utilizadas ficaram para o fim do livro, lembrando ao leitor que nenhuma informação é inventada, nem o gosto doce do sangue.

Da filiação ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) em 1934 à morte como guerrilheiro da luta armada contra a ditadura militar, passando pela atividade de deputado federal, participante da Assembleia Constituinte de 1946, Marighella viveu quatro décadas de História brasileira que também precisaram ser esmiuçadas pelo jornalista. Além dos documentos, Magalhães contou com os relatos de personagens como a professora de inglês de Marighella em Salvador, onde ele nasceu; familiares próximos, como o filho, Carlos Augusto, e a viúva, Clara Charf; políticos e figuras públicas como Fernando Henrique Cardoso, José Dirceu e Antonio Carlos Magalhães. E outros 250, como Jacques Breyton, empresário francês que lutara na Resistência contra a ocupação nazista. Em São Paulo, ensinava Marighella a fazer bombas e foi preso e torturado pelo Dops, à caça do guerrilheiro baiano.

– Na França, o Jacques foi preso pelo Klaus Barbie, conhecido como o carniceiro de Lyon. Mas ele disse que sofreu mais nas mãos do Fleury no Dops de São Paulo. Isso dá uma ideia do que era o Dops – diz.

Mais do que o silêncio da historiografia, o desafio de Magalhães era contar sobre um personagem que passou parte da vida tentando não se deixar à mostra – o que se reflete na escassez de fotos suas. Entre as informações inéditas levantadas, o jornalista cita a participação decisiva de Marighella na expulsão da revolucionária Pagu do PCB, pois ela trocava sexo por informações – obedecendo a ordens do próprio partido; o flerte com o candomblé; a organização da turnê da cantora Dolores Duran e do maestro Paulo Moura à União Soviética, em 1958; os pormenores do assalto a banco de 1º de julho de 1968; o envio mensal de dinheiro do governador de São Paulo Adhemar de Barros ao PCB:

– Marighella foi tesoureiro do partido mas, ao contrário de outros tesoureiros da posteridade, vivia com mulher e filho num quarto e sala de 56 metros quadrados no Catete. Muitas vezes não tinha dinheiro para jantar, seus três ternos e suas abotoadoras eram doados.

Foi a pesquisa de Magalhães que revelou as imagens do operário Virgílio Gomes da Silva morto. Com codinome Jonas, ele foi o primeiro desaparecido político da ditadura militar, que comandou o sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick, e morreu torturado em 1969. O jornalista não guardou o furo para ajudar a viúva do desaparecido.

– Temia que dona Ilda não viesse a ter tempo de procurar o cadáver do marido para lhe proporcionar um enterro digno. Eu não me perdoaria. Por sorte, ela está aí, vivíssima. E estão ainda em curso buscas no cemitério.

A biografia não tem apenas ação política. Sua história começa pelos pais de Marighella, um mecânico italiano e uma filha de escravos nascida nove dias após a abolição da escravatura com a Lei Áurea. Alfabetizada pelo filho, o primeiro de oito irmãos, a mãe católica prendia Marighella ao pé da mesa, e se sentiu culpada toda a vida pelos rumos do filho. O drama também povoa a relação com Clara Charf, companheira do guerrilheiro por 20 anos, a quem ele chamava de “branquinha arrumadinha”. Ela fugiu de Recife só com um vestido quando seu pai proibiu o namoro com o homem “negro, não judeu e vermelho” e rasgou as roupas da filha.

Manual de guerrilha do Brasil para o mundo

Marighella não estava deprimido na época em que foi morto, como se fez crer, afirma Magalhães. Poeta até nos momentos de extrema tensão, ele continuava um irreverente piadista e, como conta o biógrafo, entre a gravação de um e outro manifesto inseria músicas como o “Samba da bênção”. Era 1969, ano em que o combate dos guerrilheiros se intensificara no maior grupo armado de oposição à ditadura, a Ação Libertadora Nacional (ALN) – originária do Agrupamento Comunista, formado quando Marighella já fora expulso do Comitê Central do PCB. No mesmo ano, Marighella finalizou o “Minimanual do guerrilheiro urbano”, que “seria o seu passaporte para a eternidade”, diz Magalhães. Em 51 páginas, reunia dicas da luta armada urbana e mandamentos do guerrilheiro: “ser andarilho, resistir ao cansaço, à fome, à chuva, ao calor. Saber esconder-se e saber vigiar”. O biógrafo sustenta, porém, que “o barulho do 'Minimanual' decorreu mais do seu caráter de peça tonitruante de propaganda do que de inventário de macetes para o bom combatente”.

– Ele se reivindica como guerrilheiro e terrorista, no mesmo contexto do terrorismo contra os ocupantes nazistas na França na Segunda Guerra Mundial – conta Magalhães. – Com o “Minimanual”, ganha proeminência no exterior. No século XX, tirando jogadores de futebol e artistas, é impossível fazer uma lista de cinco brasileiros de maior projeção no exterior sem o Marighella. No Brasil isso só está mudando agora, com o vídeo do Racionais MC's, com dois milhões de exibições no YouTube.

Lançado este ano, o vídeo “Mil faces de um homem leal” cita alguns “comandos” do “Minimanual”. Outro olhar veio do documentário “Marighella”, lançado em agosto pela sobrinha do retratado, Isa Grinspum Ferraz.

– Em parte sua história foi narrada pelos segmentos da esquerda com quem ele rompeu de forma estrondosa. Nos livros escolares ele é retratado como um bandido. Há um incômodo com o espírito contestatório sintetizado na frase “O conformismo é a morte”.

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[Suzana Velasco, de O Globo]