Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A revista que virou lenda

Assim como as matérias da revista Realidade, o livro de Mylton Severiano da Silva, o Myltainho, é daqueles que nos pega no lead e só conseguimos largar no ponto final. O livro conta todas as intrigas, brigas, reconciliações, fofocas, namoros e, é claro, todo o trabalho da revista que mudou o jornalismo brasileiro.

Myltainho, jornalista e autor de outros três livros, transformou a verdade e as histórias de Realidade num romance. É tão bom que parece ficção, com perdão pelo adjetivo – que, como se descobre no livro, era proibido na revista.

Mylton Severiano da Silva, que em Realidade era editor de texto, em seu livro foi um repórter paciente, minucioso e persistente. Por anos a fio conversou com antigos colegas, com os filhos dos que já se foram – todo mundo, enfim, que teve ligações com a revista ou escreveu sobre ela em reportagens, trabalhos acadêmicos e livros. E usou, com sabedoria, a herança deixada por Paulo Patarra, na forma de um diário e anotações sobre os três anos em que chefiou a revista.

Livro útil

Nas 368 páginas de Realidade – História da revista que virou lenda, jovens jornalistas e estudantes que vivem entrevistando os antigos repórteres vão conhecer os bastidores da revista. Saber como surgiu, como era feita, como e por que acabou.

Para jornalistas mais velhos, é a chance de reencontrar colegas com quem tiveram oportunidade de trabalhar em outras redações, anos depois. E confirmar as histórias que eles contavam sobre Realidade, que sempre foi tema de conversa em outros veículos.

Para os jovens jornalistas e editores, a maior preciosidade talvez sejam as anotações de Paulo Patarra, que mostram o projeto e os bastidores da revista.

Para os que não são jornalistas, mas que foram leitores de Realidade, uma oportunidade extraordinária de conhecer melhor os repórteres, redatores, artistas e secretárias que viveram os anos 1960 em toda a sua confusão e criatividade.

Para leitores que não são jornalistas nem nunca ouviram falar de Realidade, é um magnífico (olha o adjetivo!, olha a exclamação!) romance. Só que com histórias verdadeiras.

Myltainho foi um repórter preocupado com o fato, mas, no melhor estilo de Realidade, foi um condutor sensível ao contar a história de cada um de seus personagens, que deixam de ser apenas autores de matérias. São pessoas. Com suas contradições, qualidades, defeitos, vícios e sonhos.

Generoso, Myltainho falou de todos. E, fiel ao estilo de Realidade, não escondeu suas paixões, a favor ou contra. Conseguiu, com uma cuidadosa pesquisa e um belíssimo texto, fazer deRealidadeHistória da revista que virou lenda um romance fácil de ler e que vai ser muito útil para os jovens jornalistas e estudantes.

É o livro definitivo sobre Realidade.

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A ditadura se foi de vez?

Há 47 anos, eu estava no Jornal da Tarde, lançado a 4 de janeiro de 1966, de onde me passaria meses depois para Realidade, lançada em abril. O JT sacudiu o jornalismo diário, pela diagramação e pela linguagem. Realidade foi mais fundo. Mexeu com as estruturas do “sistema”, desafiou os conservadores, os preconceituosos, quebrou tabus. E em plena ditadura militar.

Neste momento, quase meio século depois, reflito sobre as perguntas que mais me fizeram os estudantes todos esses anos: por que não fazem mais uma revista como Realidade?, por que não fazem mais reportagens como aquelas? Muitos abrem a boca de espanto quando digo que é porque a ditadura ainda não acabou. Digo meio de brincadeira, mas leia este livro refletindo comigo: se a ditadura que matou Realidade já acabou, então por quê? (Mylton Severiano da Silva)

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Apresentação

Paulo Henrique Amorim

Uma vez, numa roda de almoço de domingo, Roberto Schwarz observou que uma das circunstâncias espantosas que cercam Machado de Assis é que ele tivesse existido no Rio provinciano, escravocrata, do fim do século XIX.

Ao lerRealidade – História da revista que virou lenda, do Myltainho, pendurou-se no trapézio que tinha na cabeça – já que falamos de Machado – ideia parecida: o que espanta nessa lenda do jornalismo brasileiro é que tenha existido na São Paulo provinciana, escravocrata, sufocada pelo regime militar.

Isso se deve, como diz o autor, à “Grande Banda”, “os loucos de 64”. E também a um completo irresponsável, o “Seu Victor” Civita, fundador da Abril no Brasil, que, movido pelo instinto animal do empresário, fez a Realidade e, depois, a Veja do Mino Carta.

Depois, baixou a “responsabilidade”: o filho, desde sempre mal intencionado, fechou a Realidade e transformou a Veja no que chamo de “detrito de maré baixa”.

Para quem trabalhou na Realidade (e na Veja do Mino), o que o Myltainho revela como documento valioso é a lucidez do nosso Maestro, o Paulinho Patarra. As anotações explicitam o dom de planejar, a estratégia, a visão que o Paulo tinha da futura revista, seu espaço no mercado – e especialmente a fórmula editorial.

Paulinho era um profissional! Ele tinha o pulso do momento e, por isso, convenceu o patrão.

O que a Realidade já nas bancas pôs para fora foi “o sentimento do povo” que o Paulinho carregava no peito. Trabalhei com poucos profissionais que sentissem o cheiro da galera, como o Paulo. Um talento.

Mais do que o editor-chefe e, na verdade, chefe de reportagem, o Paulo parecia daqueles políticos que sobem no palanque e dizem o que a massa quer ouvir: “Hum, isso aí não interessa a ninguém…”

A Realidade captou aquela ânsia de entender o mundo desorganizado dos anos 60, os costumes, os novos personagens, a miséria que São Paulo desconhecia: uma realidade que soltava um cheiro parecido com o dos mictórios dos bares que nós frequentávamos. Tudo misturado à intervenção militar.

Já sei que o Myltainho vai se perguntar, mas, Paco, e o “primeiro violino, o Sergio de Souza? Isso mesmo, Myltainho, o Serjão era o “primeiro violino”. Mas, quem escreveu a partitura foi o Paulo.

O Serjão dava ordem à casa. Com você. Você, na verdade, Myltainho, incentivava a desordem. Como a de dois alucinados jovens repórteres que o só o Paulo ousaria contratar: o Tonho, que era o Haf, e o Paco Maluco, o Perigoso, hoje mais conhecido como… Paulo Henrique Amorim.

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[Ligia Martins de Almeida é jornalista]