Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Em memória dos desaparecidos políticos

A metáfora que dá título a este livro leva de volta à origem semântica um dos mais importantes marcos históricos da construção dos Direitos Humanos.

Em 1215, o habeas corpus nasceu na Inglaterra para conter o poder ilimitado dos reis e como exigência de justo processo legal. Ter o corpo levado à presença de um juiz queria dizer, simplesmente, apresente a pessoa com vida.

No Brasil de 2010, ao lado dos grandes avanços democráticos acumulados desde 1988, com maior nitidez nos últimos 16 anos e, sobretudo, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o tema da metáfora segue ainda cercado de dor, dúvidas, hesitações, mistérios, ocultações e impunidade.

Ter o corpo, neste livro, significa literalmente devolver às famílias, companheiros e amigos os restos mortais de um número expressivo de brasileiros e brasileiras que foram mortos – quase todos sob torturas – por resistir a um regime ditatorial que violou as regras da vida constitucional republicana durante 21 anos.

Comissão da Verdade

Acima de qualquer controvérsia ideológica a respeito daquele regime, desponta como certeza a persistência de uma dívida inegável do Estado brasileiro, ainda não resgatada.

O reconhecimento da responsabilidade do Estado pelas violações de Direitos Humanos praticadas durante a ditadura já está consolidado. Mas ainda faltam alguns passos indispensáveis para que se considere plenamente concluída a longa transição para uma democracia irreversível. Faltava também um livro-relatório como este, com o foco concentrado exclusivamente nos desaparecidos políticos em seu sentido mais amplo: quem não teve o corpo entregue à família conforme determinam as leis, mesmo as leis ilegítimas de um regime autoritário.

Na Constituição que Ulysses Guimarães proclamou cidadã em 5 de outubro de 1988, o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias já incorporou os primeiros marcos que balizam a necessidade de reparação. Durante o governo Fernando Henrique Cardoso, as leis 9.140 e 10.559 representaram um salto histórico nesse sentido, versando sobre a questão dos mortos e desaparecidos políticos, a primeira, e sobre direitos amplos de indenização material e simbólica, a segunda.

Durante o governo Lula, o lançamento do livro-relatório Direito à Memória e à Verdade, em agosto de 2007, abriu novamente o debate sobre a questão não resolvida de nossa reconstrução democrática. E esse debate vem crescendo e atravessa os Poderes da República, a imprensa, a universidade, a sociedade civil como um todo. As caravanas promovidas pela Comissão de Anistia, Brasil afora, o lançamento do projeto Memórias Reveladas, a campanha oficial de publicidade nos grandes veículos promovida pela Secom informando sobre os desaparecidos e a inauguração de 27 memoriais de homenagem aos que morreram na luta contra a ditadura são iniciativas que fazem avançar a consciência nacional sobre o que ainda falta.

Em 2009, para atender às determinações de uma sentença federal sobre a guerrilha do Araguaia, o próprio Ministério da Defesa organizou, pela primeira vez em quase 40 anos, um Grupo de Trabalho para promover a localização dos corpos de aproximadamente 70 militantes ou apoiadores do PCdoB que foram executados no sul do Pará entre 1972 e 1974. Em sua grande maioria, após intermináveis sessões de torturas.

O passo mais abrangente em oito anos de governo Lula foi o envio ao Legislativo, em 13 de maio de 2010, do projeto de lei que institui uma Comissão Nacional da Verdade para jogar luz sobre as violações de Direitos Humanos ocorridas naqueles 21 anos de regime ditatorial. A proposta de se criar tal comissão foi aprovada em dezembro de 2008, na 11ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos, e incorporada, já com alterações cautelosas, ao PNDH-3, lançado em 21 de dezembro de 2009.

Para leitura e discussão

Discordâncias entre as áreas da Defesa e dos Direitos Humanos foram arbitradas pelo Presidente da República, e um Grupo de Trabalho foi constituído por especialistas para elaborar esse projeto de lei, construído como esforço conjunto e exercício democrático de negociação e flexibilização entre argumentos contrários. Está nas mãos do Poder Legislativo decidir soberanamente sobre sua tramitação, assim como compete ao Judiciário decidir sobre qualquer demanda envolvendo caber ou não punição aos que violaram Direitos Humanos naquele período.

O livro Habeas Corpus sistematiza e resume todas as informações que foi possível colher ao longo de décadas a respeito da possível localização dos restos mortais, muitas vezes com datas e dados contraditórios entre si. Se existir algum grande mérito nessa compilação, ele cabe inteiramente ao esforço heróico dos familiares das vítimas, ex-presos políticos e ativistas que resistiram a décadas de portas fechadas, descaso, omissões, ameaças e até morte, como foi o caso de Zuzu Angel. A esses lutadores e a essas lutadoras, mães, irmãs, filhas, parentes de todo tipo, que nunca desistiram dessa busca, esse livro deve ser dedicado.

Ele se oferece como um primeiro guia para leitura e discussão entre os parlamentares que decidirão sobre aprovar ou não a criação da Comissão Nacional da Verdade. E, mais ainda, como um roteiro inicial para os próprios integrantes dessa Comissão, caso o Legislativo brasileiro assim o decidir.

******

Ministro de Direitos Humanos