Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Enmendando Cervantes

Dizem que o adágio ‘errar é humano’ encontra sua melhor tradução, em todas as línguas, no trabalho dos tradutores. Em razão do número de erros, ou de humanidades, falhas, desses transportadores de línguas. Para não me perder a imitar os circunlóquios de escritores de real talento, daqueles que falam de labirintos em cuja saída há um tigre, digo logo a que vim. Esta semana, tive a preocupação de comparar o Don Quijote de la Mancha, da edição da Real Academia Española, 2004, com O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha, da Editora Itatiaia, de 1984. Escrever é o diabo. Disse comparar edições, e já a esta altura, no começo destas notas, sou obrigado a me corrigir. Porque eu deveria ter dito: Esta semana, tive a curiosidade de ver o quanto ignoro o espanhol, e para isto me pus a comparar o que eu compreendia do Cervantes original com o Cervantes traduzido por Eugênio Amado. E mais precisamente, que minha horas são pequenas, tive o encanto e o desencanto de comparar o capítulo VIII da primeira parte, o da aventura dos Moinhos de Vento, nas duas edições.

Bueno. A primeira impressão deixada por nosso tradutor é que ele é um aperfeiçoador de Cervantes. E do gênero dos mestres implacáveis, dos que não perdoam ao original nem o título. ‘Del buen suceso que el valeroso don Quijote tuvo en la espantable y jamás imaginada aventura de los molinos de viento…’ transforma-se em ‘Do bom sucesso que teve o valoroso Dom Quixote na espantosa e nunca imaginada aventura dos moinhos de vento…’

Mirem, aparentemente, não houve transformação. Mas houve, mirem outra vez, seguramente houve uma troca, um câmbio, na ordem do sujeito e do verbo. Enquanto o original, mais modesto, contenta-se com a ordem direta, El valeroso don Quijote tuvo, o aperfeiçoador de Cervantes achou melhor língua evitar o que lhe pareceu uma colisão de sílabas, no que seria O valoroso Dom Quixote teve, do ‘te’ final de Quixote com o ‘te’ inicial de teve, te-teve, e por isso, e por mais donaire e elegância, pôs o sujeito após sua ação, e com isso foi além das intenções do mais moderno clássico da história, porque lhe deu um quê de ambigüidade. No câmbio, O bom sucesso teve, possuiu, o valoroso cavaleiro. Ou seja, a partir do título, Dom Quixote começa a sofrer os golpes.

Este parágrafo agora deveria receber o nome de ‘Donde se prosigue la narración de la desgracia de nuestro caballero’, mas não, vamos adaptá-lo para um ‘Onde se prossegue a má ração de ar e graça do mestre cavaleiro’. Isto porque de Cervantes foi cambiada até a pontuação, a narração mais que feliz do escrito, por uma perseguição, a má ração mais infeliz de um cristo. Em lugar das vírgulas originais, o autor recebeu pontos-e-vírgulas. Ao que parece, nada de mais. Isto lhe ocorre até mesmo em diferentes edições espanholas. Adiante. ‘Bien parece – respondió don Quijote – que no estás cursado en esto de las aventuras: ellos son gigantes; …’. Ao que respondeu o nosso tradutor: ‘Bem se percebe – respondeu Dom Quixote – que não és versado nesse assunto de aventuras; aqueles ali são gigantes; …’. Os dois pontos do original, que anunciam uma explicação do que se afirma, se transformam num ponto-e-vírgula de pausa. ‘Si tienes miedo’, dizia Dom Quixote, se temos medo, continuamos nós, digamos logo o efeito de tais mudanças, antes que nos ponhamos a orar nessa fera e desigual batalha. Com dois pontos:

Alterando o ritmo

Mudar, transformar uma pontuação, é o mesmo que mudar o ritmo de um texto, de uma frase. E o ritmo, em um texto, longe está de ser um atributo exclusivo do poema, do verso. Mas não só. Mudar estes sinais de aparência insignificante, que traduzem um código universal, é o mesmo que mudar o pensamento. Isto, para quem escreve, para quem se tortura para que o leitor não seja torturado, é de uma clareza elementar. O pensamento quando vem, vem sem pontos, vírgulas, parágrafos ou interrogações suspensas como as chamas do Pentecostes. É na exposição que essa massa amorfa se veste e se reveste de pontos, vírgulas, perguntas e ênfases. Isto para que se expresse algo semelhante à massa amorfa, para que esse mundo sem forma melhor se conheça, porque antes da exposição vagava nas trevas em busca de ser. Ora, está visto que mudar pontos em vírgulas, ou substituir dois pontos por um ponto-e-vírgula é um pouco mais grave que trocar seis por meia dúzia. Os restauradores de pinturas, esses tradutores das artes plásticas, não mudam sequer uma tonalidade do original, em sã consciência. Mudar o ritmo, e com isto mudar também a clara forma do pensamento, significa, antes de uma tradução, uma clara vigília democrática de Bush. Um desrespeito, que transforma o traduzir em um intervir.

Vejam, olhem e mirem: se um borra-papéis qualquer escreve ‘gosto de comer comer e beber beber’, antes de qualquer mudança do gênero ‘gosto de comer, comer, e beber, beber’, um revisor deveria perguntar ao borra o que ele quis mesmo expressar, se era comer e beber até uma arrebentação pantagruélica, ou se quis simplesmente dizer que come tudo que seja alimento, o substantivo comer, e se bebe tudo que se convencionou chamar de bebida, o beber. Imaginem agora um criador que escreva algo como

‘Levantose en esto un poco de viento, y las grandes aspas comenzaron a moverse, lo cual visto por don Quijote, dijo:

– Pues aunque movais más brazos que los del gigante Briareo, me lo hábeis de pagar.’, e receba tais melhoras e emendas:

‘Soprou, nesse instante, um pouco de vento, e as grandes asas principiaram a mover-se. Vendo aquilo, disse Dom Quixote:

– Ainda que movais mais braços que os do gigante Briaréu, haveis de pagar-me.’.

Para não ressaltar o óbvio, nota-se que no original há uma narração que é um diálogo entre Cervantes e o leitor, uma eterna piscadela de olhos entre seres inteligentes, enquanto no traduzido resta apenas um contar uma história, no modo mais insulso e convencional. Onde se dá mesmo essa (de)gradação? Para ser bem justo e verdadeiro, havia que mostrar todo o conjunto traduzido. Mas se pelo dedo se conhece o gigante, então vale a amostra desse trecho do vulto de mais de cem braços. Mirem: onde em Cervantes corre livre a frase ‘Levantose en esto un poco de viento, y las grandes aspas comenzaron a moverse, lo cual visto por don Quijote, dijo’, o tradutor corta o fluxo, põe um ponto ao meio, como um coito interrompido que recomeça mal e mal, sem a graça de antes: ‘Soprou, nesse instante, um pouco de vento, e as grandes asas principiaram a mover-se.’. Ponto. Cessou o movimento. Então, ‘Vendo aquilo, disse Dom Quixote’, pronto, perdeu-se o encanto, o ritmo, a concatenação, ¡Aquí fue Troya!, diria o cavaleiro. E onde se dá a piscadela do original ao leitor de todos os séculos? – No início do diálogo seguinte, diálogo louco, já se vê: ‘- Pues aunque movais más brazos que los del gigante …’. E onde se dá o corte, a amputação da piscadela? – Na morte do Pues, do Pois, na tradução. Ao dizer ‘ – Pois ainda que…’, Dom Quixote continua, como uma conclusão, como um desabafo de raiva irritada, o diálogo da sua fala anterior com a vil criatura de muitos e ameaçadores braços. No traduzido o que há é uma constatação, diante de uma pirâmide: – Ainda que movais mais braços que os do gigante… quarenta séculos vos contemplam, poderia ser acrescentado. No corte, na fuga do Pues, ¡Aquí fue Troya!

Na verdade, o corpo inteiro do traduzido faz-nos ver que o tradutor, nesse particular de melhorar a pontuação de Cervantes, exerce o secular direito do ‘Quem pode o mais, pode o menos’. Já antes de emendar Cervantes nos pontos, ele o havia curado das voltas e volteios de linguagem, que são um espetáculo e um sabor à parte, diríamos, se isto não constituísse a pele indissociável do manco. Se o conjunto inteiro do narrado se transforma em um contar uma história simplesmente, tanto faz que ‘Si da el cántaro en la piedra o la piedra en el cântaro’, porque de uma forma ou de outra, ‘mal para el cántaro’, parece-nos dizer o tradutor, como num refrão citado por Sancho Pança. Ou seja, o que é necessário traduzir? – O incidente do Quixote diante dos moinhos de vento. Mãos à obra, portanto. Afinal, isto não é poesia (e aqui existe um preconceito – uma universal ignorância – de se acreditar que somente a poesia, encarnada no poema, receba tradução excepcionalmente cuidada). Isto porque a prosa é a prosa, relato retilíneo, objetivo, como um código de leis para selvagens. E a poesia, ah, cuidado, a poesia é o poema é fogo é sarça a vomitar ardente na tábua de Moisés. A prosa, não. É coisa que todo o mundo fala, mesmo que não se dê conta. Tanto faz se o cântaro bate na pedra ou se a pedra bate no cântaro. Mirar e Saber, Guerra e Combate são a mesma coisa, ou ninguém nota a diferença, pensam. Afinal, essas palavras não estão em um verso, e por isso traduzem: ‘… com cuyos despojos comenzaremos a enriquecer, que ésta es buena guerra’ = ‘… com cujos despojos começaremos a enriquecer; será bom combate’; ‘ – Mire vuestra merced – respondió Sancho’ = ‘- Saiba Vossa Mercê – observou Sancho’.

Estilo de época

E aqui mais uma vez nos vemos forçados a uma adaptação do ‘Quem pode o mais, pode o menos’, para um ‘Se todos assaltam um clássico, desrespeito pouco é nada’. Há tradutores que não se pejam de escrever que o Dom Quixote é uma obra volumosa (pesada, difícil e pesada), escrita em estilo e linguagem de outra época, cheia de arcaísmos e construções sintáticas fora de uso, e que por isto resumiram, cortaram, amputaram falas e discursos dos personagens! Adaptaram-no, este é o nome, para um público jovem, da era do rápido e descartável do século 21. Um processo de educação pelo avesso, ou invertido, que em vez de ascender o leitor, avilta a leitura. O que termina por traduzir o engenhoso fidalgo em um ser maltratado, com cortes, jamais imaginado. – Así es la verdad – respondió don Quijote -, y se no me quejo del dolor, es porque no es dado a los caballeros andantes quejarse de herida alguna, aunque se le salgan las tripas por ella. Nesse mundo e universo de assaltos bárbaros, portanto, nada há de mais em que uma gradação da palavra, uma nuança, um quê da pitada de sal que faz uma larga diferença não se observe.

– Non fuyades, cobardes y viles criaturas, que un solo caballero es el que os acomete.

– Não fujais, cobardes e vis criaturas, que estais sendo acometidas por um cavaleiro apenas.

O sal, a pitada, a diferença entre a expressão e o medíocre, aqui, está na equivalência entre ‘solo’, ‘só’ em português, e ‘apenas’. E se assim dizemos não é para deixar a impressão de conhecida e estudada reflexão gramatical, de domínio maestro de gêneros de palavras e da sua morfologia. Porque isto simplesmente não temos. A coisa, a estranheza, veio antes de qualquer fundamentação teórica, licenciada, bacharelesca. Mas como o pensamento não se dá no mesmo tempo e forma da sua exposição, consideremos primeiro o ponto de vista estrito do léxico.

A tradução trocou um ‘só’ adjetivo por um advérbio, ‘apenas’. O dicionário Aurélio registra para ‘apenas’ três definições, e se o tradutor não desejou dizer que os moinhos foram acometidos por um cavaleiro logo que, mal, concluímos que eles foram atacados por um cavaleiro a custo, dificilmente, ou por um cavaleiro somente, com modos adverbiais – De que modo me atacais? gritaram-lhe os moinhos. – De cavaleiro, respondeu-lhes o Quixote da tradução. Bueno. O dicionário Houaiss nisto o segue, nessa estranha mania que têm os dicionários de se perseguirem uns aos outros. Ele também registra para ‘apenas’ três definições, e a menos ruim para esse Dom Quixote brasileiro é agir à maneira de. No entanto, para ‘só’, que solo acometer para o cavaleiro sozinho. No Aurélio há oito definições, das quais cinco vêem ‘só’ adjetivo, e uma como advérbio, somente, neste sentido, apenas. Com o exemplo: ‘Não escolha profissão pelas vantagens monetárias’. O que para a tradução comentada seria equivalente a um, ó Quixote, não escolhas acometer só cavaleiro, apenas. E mais uma vez o Houaiss nas definições o segue, para continuar a tradição e confirmar a traição, do tradutor, só e somente.

Porém a estranheza maior, a estranheza real, não vem dessa troca de classe gramatical do adjetivo solo para o advérbio apenas. Se fosse isto somente, 99,999…% dos leitores nem notávamos. Não foi ela, portanto, que nos chocou. A coisa, a mudança, a permuta e melhora de Cervantes vem do que a narração diz no original e do que passa a dizer no traduzido. Mirem. Enquanto na edição espanhola o Dom Quixote grita, – Non fuyardes, cobardes y viles criaturas, que un solo caballero es el que os acomete, na edição brasileira o Dom Quixote parte num grito para concluir numa consideração de cavalheirismo: – (Grita) Não fujais, cobardes e vis criaturas, (e aqui começa o descenso) que estais sendo acometidas por um cavaleiro apenas (conclui, com uma reverência à senhora moinho). Não é má vontade para o traduzido, nem muito menos perseguição ao tradutor. Vejam. No original, Dom Quixote grita que não fujam, ó covardes, porque contra monstros, trinta ou quarenta reunidos, e de mais de cem braços cada, ataca um só e isolado cavaleiro. A luta, a batalha será fera e desigual. No traduzido, o cavaleiro parte, mas parece ter um arrependimento na hora justa do embate, e o Rocinante recebe um duro freio, talvez, porque o cavaleiro faz a consideração gentil, ou queixa, de que é apenas um cavaleiro. Tudo porque o tradutor fez a equivalência apressada, ou afoita, entre só e apenas no acometimento do louco eterno.

Com esforço, compreendemos a solução desastrada do tradutor. Se ele fosse literal (o que não seria totalmente ruim, creio, pela semelhança entre o espanhol de Cervantes e a norma culta no Brasil), ele escreveria: – Não fujais, cobardes e vis criaturas, que um só cavaleiro é quem vos acomete. Seria meio duro aos ouvidos, este ‘vos’, talvez, que na fala cotidiana só ouvimos nas citações dos versículos e varões bíblicos. Daí o torneio, o circunlóquio para a construção passiva, ‘que estais sendo acometidas por um cavaleiro’, que na fala é tão ruim e estranha quanto um ‘vos’ de púlpito de igreja, e, pior, a quebra da ação da voz direta, que é a voz de todo sujeito raivoso. Imaginem um possesso a gritar, ‘O senhor será morto por mim, apenas’. Ou ele nada fala, e mata, ou anuncia curto, ‘Vou matá-lo’, e executa.

Há, no entanto, uma passagem pior, pois no inferno jamais haverá medida. Mirem, olhem e vejam, porque assim escreve Cervantes no original:

‘Y en diciendo esto, y encomendándose de todo corazón a su señora Dulcinea, pidiéndole que en tal trance le socorriese, bien cubierto de su rodela, con la lanza en el ristre, arremetió a todo el galope de Rocinante y embistió con el primero molino que estaba delante; y dándole una lanzada en el aspa, la volvió el viento con tanta fúria, que hizo la lanza pedazos, llevándose tras sí al caballo y al caballero, que fue rodando muy maltrecho por el campo. Acudió Sancho Panza a socorrerle, a todo el correr de su asno, y cuando llegó halló que no se podía menear: tal fue el golpe que dio con él Rocinante.’

Assim escreve Cervantes no traduzido:

‘Isso dizendo, encomendou-se de todo o coração a sua senhora Dulcinéia, pedindo-lhe que o socorresse em tal transe; e bem protegido pelo escudo, com a lança em riste, arremeteu a todo galope de Rocinante, e investiu contra o primeiro moinho que se lhe deparou; e cravando-lhe a lança na asa, girou-a o vento com tanta fúria, que se partiu a arma em pedaços, arrastando após cavalo e cavaleiro; o qual, todo machucado, foi rolando pelo campo. Acudiu-lhe Sancho Pança, pondo o asno a correr o mais que podia, e, ao acercar-se do amo, viu que não podia mover-se, tal foi o golpe que sofreu com o Rocinante.’

Não falaremos aqui da mudança de ritmo da frase em todo o trecho destacado. Depois dos assaltos sofridos por Cervantes nas traduções de quatro séculos, e depois dos expurgos sofridos pelo Dom Quixote nas criativas adaptações para a juventude, isto, mudar o seu ritmo, é nada. Isto não é poesia, digo, poema. Guardar o ritmo seria um luxo. Olvidemos ainda a rodela, um escudo pequeno e redondo de madeira, que se transforma em escudo, arma defensiva de placa muito resistente, na tradução. Isto não é poesia, digo, poema, e portanto deve ser traduzido pelo genérico, jamais pelo peso específico do substantivo. Falo de coisa mais grave. O leitor atento deve ter observado que no original Cervantes fala em ‘y dándole una lanzada en el aspa, la volvió el viento con tanta fúria, que hizo la lanza pedazos, llevándose tras sí al caballo y al caballero, que fue rodando muy maltrecho por el campo’, e que no traduzido isto se transforma em ‘e cravando-lhe a lança na asa, girou-a o vento com tanta fúria, que se partiu a arma em pedaços, arrastando após cavalo e cavaleiro; o qual, todo machucado, foi rolando pelo campo’.

Note-se, estamos no ponto culminante da ação do feito mais famoso do cavaleiro andante. E é justamente aqui o lugar onde o desprezo ao narrado mais se consolida. No culminante do incidente. Vejam, no original, ao primeiro impulso da lança na asa do moinho, o vento fez voltar, volvió, a asa do moinho contra Dom Quixote e Rocinante. É um lance e uma lançada de bumerangue. O ridículo é imenso. No traduzido, não, o vento gira a asa, gira, não devolve nem retorna o golpe, e de tal maneira que ficamos sem entender por que ao girar cavalo e cavaleiro se destroçam. Pelo traduzido, imaginamos que a lança se meteu no caixilho da asa, e Dom Quixote, agarrado à lança, foi levantado para o alto, ele e o cavalo. Mas essa imaginação é incapaz de qualquer questionamento da mecânica. Que lança potente é esta, e que força possuía o magro cavaleiro, a ponto de suspender pelos ares o seu peso e o do cavalo? Mas a lança, coitada, se fez em pedaços, pelo vento em fúria contra o arremesso do louco. E Dom Quixote gira, mas não exatamente levado pela asa do moinho, Dom Quixote gira sobre o solo, à procura de terra nos pés, como todo corpo gira por não saber ao certo onde cair. Roda, diz-se, porque o seu movimento não é rigorosamente reto. Ele gira na cabeça também, que já não possuía um giro certo. Ele gira do mesmo modo que nós giramos, ao receber um golpe que nos deixa a ver estrelas. Atordoados ficamos.

E assim atordoados por esse golpe, a girar pela desatenção ao verbo volver, que mudaria uma cena culminante, nem sequer notamos que Dom Quixote nos diz em espanhol que vencerá afinal com a bondade da sua espada. Porque em português ele nos diz que vencerá com a excelência da sua espada. Bondade = excelência. Isto é nada. Não faz mal que a espada do original tenha perdido o fio da ironia. Bobagem, dizemo-nos.O cavaleiro e nós estamos igualmente atordoados. Isto não é poesia. Para quê tanta atenção aos incidentes e palavras de uma obra pesada?

–¡Aquí fue Troya! ¡Aquí mi desdicha, y no mi cobardía, se llevó mis alcanzadas glorias, aquí usó la fortuna conmigo de sus vueltas y revueltas, aquí se escurecieron mis hazañas, aquí finalmente cayó mi ventura para jamás levantarse!

Oyendo lo cual Sancho, dijo:

–Tan de valientes corazones es, señor mío, tener sufrimiento en las desgracias como alegría en las prosperidades; y esto lo juzgo por mí mismo, que si cuando era gobernador estaba alegre, ahora que soy escudero de a pie no estoy triste, porque he oído decir que esta que llaman por ahí Fortuna es una mujer borracha y antojadiza, y sobre todo ciega, y, así, no ve lo que hace, ni sabe a quién derriba ni a quién ensalza.

A tradução é essa Fortuna de Sancho Pança.

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Jornalista, autor do romance Os Corações Futuristas