Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Entre a realidade e a ficção

A Guerra do Paraguai é um acontecimento de importância crucial dentro da História do continente sul-americano. Entre 1864 e 1870, nações emergentes, proto-Estados recém-libertos de suas condições de colônia, foram jogadas em um conflito fratricida por fronteiras e afirmação política. Para tal, foram mobilizados 135 mil soldados brasileiros. Destes, 30 mil iriam morrer ou desaparecer nos campos de batalha. Os historiadores ainda debatem sobre as conseqüências humanas e econômicas da guerra para o povo paraguaio. Calcula-se que pelo menos 75% da população masculina pereceu. Ao todo, aproximadamente 200 mil a 300 mil paraguaios, a depender da fonte de informação, morreram de tiro, fome ou doença durante aquele pesadelo de seis anos.

Para a formação da civilização brasileira, no entanto, foi um marco histórico de conseqüências libertárias, malgrado o assustador número de vidas humanas sumariamente ceifadas nos campos do Mato Grosso e nas terras encharcadas da fronteira com o Paraguai. A partir daquela guerra, formou-se entre nós o conceito de soberania nacional, embora agregado diretamente – e daí, para sempre – ao conceito de tutela militar. Além disso, foi do convívio de oficiais do Império de Pedro II com seus colegas da Tríplice Aliança (Argentina e Uruguai) que cresceu, na caserna, a ideologia republicana.

Deste tempo de heroísmo e insanidade, herdamos mitos ufanados, como o do Duque de Caxias e Tamandaré. Em compensação, passagens da guerra foram deliberadamente omitidas dos livros escolares. Pouco se escreveu sobre a forma cruel e sanguinária como soldados – desprovidos de quase tudo – eram jogados nos campos paraguaios. A historiografia oficial ignorou (na verdade, ignora até hoje) a rotina de saques, estupros e intolerância étnica que se seguiu à ocupação militar brasileira, ao final do conflito. Também quase nada se diz sobre a convocação coercitiva dos chamados ‘Voluntários da Pátria’ – em grande parte, formados por negros escravos enviados para a morte no lugar dos filhos dos brancos do Brasil de então.

Este Fragmentos da Grande Guerra usa e abusa da liberdade autoral, tanto na abordagem do tema como na construção dos personagens. Não há pretensão de se julgar a História, nem muito menos freqüentar as trincheiras de versões cavadas, ao longo das últimas três décadas, por revisionistas ou biógrafos oficiais do Exército. A falta de registros confiáveis releva essa discussão, na maior parte do tempo, ao status de falsa polêmica. Isso inclui o tamanho da participação inglesa no conflito e o número de mortos da população paraguaia. Essas dúvidas pairam sobre o texto apenas como pontos de reflexão dos protagonistas. A Grande Guerra (assim chamada pelos guaranis), como os personagens reais apresentados no livro, mistura-se à paisagem para dar lógica à condução do texto. Para tal, resumi os acontecimentos históricos a uma fidelidade básica. Assim, são reais em sua totalidade as datas dos eventos, as grandes batalhas e muitos dos nomes dos comandantes brasileiros, argentinos, uruguaios e paraguaios. Em torno deles gravitam, sem prejuízo da História, a realidade e a ficção.

Pincei, por assim dizer, diversos cacos, a fim de montar com eles um mosaico de temas pertinentes à Guerra do Paraguai e à sociedade brasileira de meados do século XIX. O resultado é o livro que se apresenta. São páginas centradas nos sentimentos dos homens e na força das circunstâncias de um tempo – aliás, como todos os tempos – marcado pela violência e pela incerteza do futuro.

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Jornalista