Daniela Arbex decidiu elaborar narrativa a respeito do incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, para que as pessoas não virem a página para esse caso. O livro Todo dia a mesma noite: a história não contada da boate Kiss (2018, Editora Intrínseca) tem a capa cinza, como foi a madrugada de 27 de janeiro de 2013. Na segunda e na terceira capas, estão inscritos os nomes das 242 vítimas. E, nas páginas, um coro harmônico composto pelas vozes de pessoas que atribuíram características únicas a cada um dos mortos, visto que não eram números.
O incêndio em questão foi causado por imprudência, superlotação e más condições de segurança do local, resultando em outros 680 feridos. A maior parte dos mortos foi asfixiada pela fumaça tóxica que tomou conta do ambiente interno. Apesar dos inquéritos apontarem vários responsáveis em uma série de falhas, poucos foram denunciados, gerando ainda mais dor aos parentes dos mortos.
Daniela é uma jornalista brasileira premiada, autora também dos livros Cova 312 (2015, Geração Editorial) e Holocausto brasileiro (2013, Geração Editorial). Ao analisar o seu trabalho, é interessante perceber a importância que ela dá à memória das pessoas comuns e também à coletiva, no sentido de escolher temas importantes que caíram no esquecimento e revelam muito sobre a história do país: tratamento desumano a pacientes psiquiátricos num passado recente, ocorrências obscuras da ditadura militar, falta de fiscalização ou morosidade/descrença da/na Justiça.
Outro elemento relevante em sua obra é a humanização. Num mundo ideal, poderia parecer estranho ressaltar essa característica na atuação de uma jornalista. Todavia, a mídia convencional geralmente se apressa em contar primeiro, dá ênfase a grandes acontecimentos por vários dias até que a novidade se torne comum e não gere mais surpresa. Depois, abandona o tema e seus “personagens”, que são substituídos por outra “tragédia”.
Quem fica com a dor, no entanto, não se esquece. Daí o título profundo do livro, referente ao caso da boate Kiss: todo dia é como se fosse aquela mesma noite. Um looping sem fim. Em entrevista para a equipe da editora Intrínseca, a autora lembra que, entre todas as centenas de palavras do livro, não há o termo superação. “Não se supera a morte de um filho”, diz. Tal questão-chave é constatada na abertura do capítulo 13:
Para quem perdeu um pedaço de si na Kiss, todo dia é 27. É como se o tempo tivesse congelado em janeiro de 2013, em um último aceno, na lembrança das últimas palavras
trocadas com os entes queridos que se foram, de frases que soarão sempre como uma despedida velada. Retomar uma história brutalmente interrompida sem os personagens principais exige uma reinvenção de si mesmo. Muitos pais que reconheceram os filhos mortos no chão frio do Centro Desportivo Municipal perderam a capacidade de trabalho, passaram a fazer uso contínuo de remédios ou de álcool e a sofrer de doenças mentais. Cinco faleceram, posteriormente, com problemas de saúde. Casais se separaram depois que um dos dois desencontrou-se de si mesmo. Algumas mães ausentaram-se voluntariamente da vida. E, mesmo tendo outros filhos, não foram capazes de se dedicar a eles de imediato. É como se a presença de um remetesse à ausência do outro, é como se elas não enxergassem mais nenhum. (ARBEX, 2018, p. 185-186.)
A investigação do que houve com as famílias dos jovens falecidos na casa noturna cerca de três anos após a ocorrência está relacionada à empatia. À busca por se colocar no lugar do outro, aprender com suas experiências, diminuir distâncias entre as pessoas e revelar por meio de detalhes o tamanho do impacto daquele incêndio: imensurável. A humanização percebida no livro de Daniela é o fio condutor das produções da área do gênero Jornalismo Literário, sendo que as pessoas que aceitam conceder relatos devem ser respeitadas profundamente. Ao apresentar características consideradas definidoras do gênero Jornalismo Literário pelo teórico Mark Kramer, a pesquisadora Monica Martinez elenca: apuração precisa, com mergulho na realidade; transparência no relacionamento com as fontes e com o leitor, deixando clara a intenção e ressaltando a veracidade dos fatos; preocupação com pessoas comuns e acontecimentos cotidianos, com os esquecidos; voz autoral; estilo; posição móvel do narrador; estrutura adequada à história e criação de sentidos. Tais elementos são identificados no livro aqui abordado.
A não-ficção presente nas 234 páginas vez ou outra parece ficção. Quem dera fosse. O livro é indicado para aqueles que se interessam pela literatura da realidade. Para Svetlana Aleksiévitch, escritora ganhadora do Nobel, cada pessoa carrega um pedaço de história. E, juntas, todas escrevem o livro do tempo. É necessário ouvir e transformar os relatos em algo com sentido, sem perder a si mesma, como fez Daniela Arbex. No prefácio de Todo dia a mesma noite, Marcelo Canellas considera que a pesquisa da autora é uma “recusa ao esquecimento”.
Apesar da ampla cobertura midiática que a ocorrência recebeu, a jornalista descobriu uma história não contada a partir da angulação: relatos nítidos e profundos de profissionais que atuaram no desastre, testemunhas, familiares. O lançamento, mais de cinco anos após aquele dia 27, veio para fixar a página. Para que, ao menos quem tiver acesso ao livro não consiga continuar a leitura do mundo sem sentir um pouco de desconforto ao desrespeitar a dor dos outros.
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Scheyla Horst é jornalista, especialista em Jornalismo Literário e mestra em Letras.