Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Espanhol para principiantes

Quisera eu haver começado a aprender espanhol por um lugar da Mancha, de cujos nomes me recordasse. Se assim fosse, ‘en un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme…’, sim, ‘… no ha mucho tiempo que vivía un hidalgo de los de lanza en astillero, adarga antigua, rocín flaco y galgo corredor …’, sim, se assim fosse, muito melhor seria. De um ponto de vista humano, seria uma ventura e aventura. De um ponto de vista lógico, faria mais sentido.

Escrevo ‘lógico’, e já aqui começam os contra-sensos. Os professores, os livros que ensinam idiomas, tratam os aprendizes como algo mais que idiotas, pois que são, os aprendizes, absolutos zeros de conhecimento. Os que desejam falar, que digo?, até mesmo os falsos modestos que desejam apenas compreender uma língua, são vistos pelos mestres como estrangeiros mui longínquos, e de tão longe que se transformam em absolutos estranhos a qualquer experiência, terrestre, devo dizer. Como se os aprendizes fossem estrangeiros de outra galáxia, devo acrescentar.

Disto, desta idéia universal dos manuais didáticos de ensino de língua, eu já sabia. Mas nenhum ser humano está imune à surpresa, por mais que contra ela esteja preparado. As armadilhas da sorte são inesgotáveis. Vejam, acompanhem-me, por favor. Premido pela carência de aprender espanhol, fui a uma livraria, e travei, de travar, iniciar, e de travar, amargar, esse diálogo com o vendedor:

– O que você tem de espanhol?

– Espanhol em 30 dias?

– Não … – vontade tive de dizer, ‘espanhol para ler e escrever, para toda a vida’, mas disse: – Não, espanhol por mais tempo.

– Ah – e diante do computador vai correndo rápido os títulos de livros, e mais rápido ainda, sem pensar, pelo que me parece, me sugere: – Aprenda espanhol sem fazer força? Cartas de amor em espanhol? Dicionário? Duas semanas em Madri? Español ou Espanhol? Frases em espanhol? Gramática? O turista na Espanha? Paisajistas… ?

Agora, ao acordar esse diálogo, vejo que sou parcialmente culpado por tantos descaminhos em forma de perguntas. Por vício desses últimos tempos, fiz um pedido ao vendedor como quem faz uma consulta ao Google. Era natural que ele me respondesse com tantas entradas. Por isso me fiz mais claro, deveria dizer, mais específico, reduzindo o universo de consultas.

– Espanhol para quem não sabe. Espanhol para ler e escrever… Se puder, algo assim: Para aprender Espanhol.

– Ah… – e ele me olha como um farmacêutico olha para um homem que não pode pagar uma consulta a um médico, e por isso recomenda, com a ciência e conhecimento do atendimento no balcão: – Este aqui é muito bom. É muito recomendado: ‘Passo a passo’. Passo a passo alemão, Passo a passo francês, Passo a passo espanhol!

Ainda que desconfiado de tantos passo a passo, compro-o, porque grande era o meu desconhecimento dos outros passos além dos que eu desconheço em português. E aqui começa a nossa aventura, muito além da Mancha.

Já no prefácio, nos deparamos com um ‘simples, lógicos e práticos, os guias Passo a Passo fazem do aprendizado um verdadeiro prazer’, porque ‘Charles Berlitz, lingüista mundialmente famoso e autor de mais de 100 livros de ensino de línguas, descobriu métodos e técnicas simplificados…’. Bueno, já a esta altura sei que o livro promete, embora una luzita de desconfiança se acenda. As línguas, tão diversas quanto a criação humana, permitem uma abordagem com técnicas e métodos simplificados, como se fossem uma homogênea universalidade? Outra luzita: Charles Berlitz, de mais de 100 livros de ensino de línguas, é um autor, marca de produto ou nome que se vende como uma franquia? Mas não perguntemos tanto, porque, nos passos prometidos, ‘os diálogos, além de interessantes, irão fixar-se facilmente em sua memória, pois baseiam-se em palavras imediatamente utilizáveis na comunicação’. E não prometem mal, porque já o primeiro diálogo é inolvidável.

‘– Buenos días, señor.

– Buenos dias.

– ¿Está libre esta mesa?

– Sí, señor. Siéntese, por favor.

– Con su permisso.

– Oh, perdone, señora.

– No es nada, señor.

– Camarero, un café negro, por favor.

– Si, señor, em seguida.

– Ah, Ramon, ¿como está Usted? …’

Acredito que os falantes Berlitz de todas as 100 línguas jamais compreenderão por que Ramon irrompe tão de repente nesta lição. O fantástico Charles Berlitz poderia responder que se não fosse Ramon seria Pablo. Mas a estranheza continuaria. Por que se nomeia alguém numa fala, quando nas anteriores ninguém fora nomeado? E o suspiro, que se supõe de uma senhora, é um anúncio de que muito sentira a falta de Ramon, e que agora se encontram às escondidas num café (poderíamos vê-la com o rosto encoberto por um véu negro numa tarde em Madrid?), e que por isso alguma revelação virá desse nomeado querido. ‘Ah, Ramon…’. Pero esta es la respuesta:

‘ – Muy bien, gracias. ¿Y Ud. ?’

Este casamento perfeito de absurdos, o suspiro e sua resposta, somente é comparável aos vários divórcios das linhas anteriores. Quem primeiro fala, o garçom ou o cliente? Pelo tratamento cerimonioso, gentil, de quem deseja vender alguma coisa, somente podemos concluir que é o garçom, quando diz, ‘Buenos días, señor’. No entanto, já na terceira fala, aquele que seria o garçom, pergunta, ‘¿Está libre esta mesa?’. Não, não pode ser. Então invertamos. A primeira fala é do cliente, que é muito educado, ainda que fuja do comportamento universal de que o pagante cumprimenta com o dinheiro. Entra o cliente: – Buenos dias, señor. E na terceira, pergunta: – ¿Está libre esta mesa? Ao que lhe responde o garçom: – Si, señor. Siéntese, por favor. E continua, o cliente, educadamente: – Con su permisso. Mas eis que ao sentar, pelo visto, senta-se no colo de uma senhora, porque (num salto?) se desculpa : – Oh, perdone, señora.

Esperteza nacional

Está visto que o diálogo, projetado para uma situação real, cotidiana, em um café, e que por isto deveria ter algum fio lógico, revela-se apenas um conjunto de linhas sem nexo, cujo único objeto é expor cumprimentos – buenos dias, perdone, com su permisso – e um suspiro, que nos envenena – Ah, Ramon!

Em outra lição, somos postos numa conversação (conversão?) de corrida de táxi.

‘– Taxi, ¿está libre?

– Si, señor. ¿Adónde va Ud?

– Al Hotel Ávila. ¿Está lejos?

– No, señor. No está lejos. Está cerca.’

As perguntas e respostas são curtas, como convém aos que se iniciam no estudo de uma língua, como parece achar um autor da franquia Berlitz. Mas ainda que em tão curtas linhas, ‘ele’ consegue o prodígio de aprisionar o nonsense. Se não, acompanhem: um indivíduo, que por todos os motivos não deve ser o motorista, pergunta antes de entrar, ¿está libre? Resposta: Si, señor. ¿Adónde va Ud? Aí, em duas linhas, já está o desastre: motoristas, com seus táxis livres, não perguntam aos clientes aonde vão. Recebem-nos, põem-se a rodar, e se o cliente não diz aonde vai, o taxímetro grita um bem-vindo a cada quilômetro rodado. Mas este motorista Berlitz é um homem de bem, educado, que pergunta aonde vai o freguês. A ser interpretado pelo álcool e boa vontade do cliente, essa pergunta será gentil ou indelicada. Se for interpretado como gentil, o motorista apenas deseja ser útil a quem entra no seu carro. Mas se for tomado como um grosseiro, ele apenas quererá dizer que a este ou àquele lugar o seu táxi não estará livre.

Bueno, o táxi corre mais 2 linhas. Primeira – Al Hotel Ávila. ¿Está lejos? Segunda – No, señor. No está lejos. Está cerca. E aqui mais uma vez, nesta segunda, outro desastre. Vejam por favor: este livro é vendido no Brasil, e é básico, em qualquer método ou técnica, ou visão pedagógica, ensinar novos conteúdos a partir da experiência de quem aprende. E no Brasil, atenção, Berlitz!, um motorista de táxi nunca está suficientemente perto do destino ignorado pelo cliente. Entendem? Chega um estranho, que nunca pisou na cidade, e depois de entrar no táxi (perdei a esperança, ó vós que entrais), pergunta se determinado hotel é longe. Ora, por todos os defeitos da esperteza nacional, ele receberia a resposta de que o Ávila é longe, pero no mucho. Jamais, jamás que no está lejos.

Condenação perpétua

No penúltimo passo, o 25, chegamos ao importantíssimo capítulo ‘Como ler o espanhol’. E aqui se vê e se demonstra com mais clareza a limitação, a pobreza intelectual dos manuais facilitadores de acesso a uma língua. E tão patente é que bastaria a citação, sem qualquer comentário:

‘Em los periódicos verá que acostumbran ser muy breves em los titulares:

Celoso mató a su mujer – Huelguistas exigen aumento imediato – Régimen actúa contra amenazas …

La literatura española y latinoamericana es riquíssima. Aquí les presentamos um ejemplo de poesia seleccionado de Don Juan Tenório, uma obra mestra del teatro clásico español…’

E transcrevem-se versos, sem uma só observação que nos esclareça esta ou aquela palavra, esta ou aquela expressão, o que seria mais do que necessário, por se tratar de um texto que não é recente. Pensando melhor, é melhor assim, pois eis o que nos ensina sobre a prosa literária:

‘En cuanto a prosa Don Quijote de la Mancha está considerado como una de las grandes obras de la literatura mundial. En ella, tanto como en otras obras clásicas, encontrará el uso de vosotros y vos….’.

¿Que tal uma floresta de pontos de exclamação para tão alta expressão de asno? Será que Cervantes, nos seus personagens e nos seus diálogos desconhecia o tu? Será que ele não deixa o vosotros e vos para o tratamento respeitoso, cerimonioso, ou irônico? Será que esta é a característica que se destaca para se ler a prosa clássica e o Don Quijote?

Bueno, pero no siempre Berlitz es malo, por supuesto. Lá no último passo, no último capítulo, se escreve a sua mais importante lição: ‘Você sabe mais espanhol do que imagina’. Ah, se soubéssemos disto! Com muito mais gosto e proveito e luz começaríamos por…

‘Es, pues, de saber, que este sobredicho hidalgo, los ratos que estaba ocioso (que eran los más del año) se daba a leer libros de caballerías con tanta afición y gusto, que olvidó casi de todo punto el ejercicio de la caza, y aun la administración de su hacienda; y llegó a tanto su curiosidad y desatino en esto, que vendió muchas hanegas de tierra de sembradura, para comprar libros de caballerías en que leer; y así llevó a su casa todos cuantos pudo haber dellos; y de todos ningunos le parecían tan bien como los que compuso el famoso Feliciano de Silva: porque la claridad de su prosa, y aquellas intrincadas razones suyas, le parecían de perlas; y más cuando llegaba a leer aquellos requiebros y cartas de desafío, donde en muchas partes hallaba escrito: la razón de la sinrazón que a mi razón se hace, de tal manera mi razón enflaquece, que con razón me quejo de la vuestra fermosura, y también cuando leía: los altos cielos que de vuestra divinidad divinamente con las estrellas se fortifican, y os hacen merecedora del merecimiento que merece la vuestra grandeza.’

Como ninguém nos avisa, estaremos sempre condenados, os que principiamos a estudar espanhol, a entrar num café e cumprimentar, Buenos días, señor. Oh, perdone, señora.

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Jornalista e escritor