Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

‘Eu prefiro pagar’

Uma das características mais notáveis da sociedade brasileira é a sua capacidade de pagar por todo tipo de serviço – bom, ruim ou inexistente. Mês após mês, vemos uma boa parte do nosso salário voar nas ‘linhas aéreas IR’; ano após ano, recebemos pontualmente o boleto para, religiosamente, pagar o IPVA, que na teoria deveria ser destinado pelos estados à manutenção das estradas do Brasil, mas que no melhor dos casos o que temos são longos caminhos esburacados, e assim por diante. A grande maioria dos brasileiros parece se conformar com um ‘Eu prefiro pagar’. E com a TV por assinatura não é diferente: ‘Eu prefiro pagar’ (por nada); pelo contrário, dita opção de TV se transformou em um serviço homogêneo, carente da menor criatividade produtiva, repetitivo e, além do mais, com tanta publicidade como na TV aberta.

Infelizmente, a marca nacional ‘Eu prefiro pagar’ alcança a quase todos os aspectos da organização econômica brasileira: educação (‘Eu prefiro pagar por uma educação particular boa’), saúde (‘Eu prefiro pagar por um plano’), segurança (‘Eu prefiro pagar um guarda particular’) etc.

É muito interessante o ‘Eu prefiro pagar’, normalmente por serviços muito mais custosos que os que se pagam no primeiro mundo, mas sem receber nada, ou quase nada, de qualidade por parte do Estado, que deveria estornar os impostos na forma de serviços públicos de qualidade e proporcionais às quantidades que são pagas.

Um show de Elton John

No começo, a TV por assinatura surgiu como uma alternativa diferenciada, de qualidade e livre de interrupções com publicidade na sua programação. Infelizmente, hoje o melhor que oferece é uma repetição infinita de um número limitado de produções que são apresentadas no mínimo duas vezes ao dia, nos fins de semana e ao longo do mês e do ano. Somadas a essa falta de respeito para com o assinante, as redes anunciam permanentemente ‘as grandes estréias’ de filmes que foram ao ar em inúmeras oportunidades, numa faixa de tempo curta demais, inclusive.

Considerando os valores das assinaturas, não é difícil assinalar que assistir a um programa no sistema de TV por assinatura é mais caro do que convidar a Elton John para um show privado na sala do nosso lar, mas, mais uma vez, o ‘Eu prefiro pagar’ entra cena.

‘Alfabetização’ digital

‘Eu prefiro pagar’ não só pelo indescritível prazer das repetições, mas também para assistir a publicidades tão abusivas e longas tanto como na TV aberta. Não poderia ser de outra maneira se só 11% dos lares do Brasil têm TV por assinatura e, destes, aproximadamente 70% estão na classe A, de maior poder de consumo. Um mercado publicitário tão poderoso não podia ficar (e não ficou), alheio às invasões publicitárias, mas de um jeito sutil, ‘homeopático’, a ponto de o assinante estar certo de que ‘prefere pagar por uma TV de qualidade’, pagando, no Brasil, duas vezes pelo mesmo serviço: paga pela assinatura e por assistir publicidade permanente, que inclui horas e mais horas de ‘programação’ de merchandansing.

Não é demais lembrar que as produções nacionais são quase inexistentes na TV por assinatura. Existem, logicamente, mas em um nível desprezível ante os conteúdos originados nos Estados Unidos.

Muito interessante é estudar os trabalhos que nos apresentam as origens da TV a cabo ou TV por assinatura no Brasil, mostrando as grandes coincidências com a nova tecnologia a ser implementada no país, da TV digital. Se o resultado futuro da TV digital no Brasil é o mesmo que o atual observado na TV a cabo, este país continuará consolidando, ou ‘globalizando’, o poder econômico da mídia com a desculpa de estar oferecendo a ‘alfabetização’ digital do povo.

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Químico, doutor em Fisiologia pela Universidad de Buenos Aires, Argentina, pós-doutor em Neurociência pela Universidad Complutense de Madrid, Espanha e Universidade Federal da Bahia