Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ex-guerrilheiro abre baú de memórias

Ottoni Fernandes Jr. era um estudante de Física que, aos 24 anos, militava na clandestina Ação Libertadora Nacional (ALN) até ser foi preso em 1970, no Rio. Seis anos e muitas histórias para contar depois, Ottoni foi solto. E virou jornalista.

O que muitos personagens daquela época querem esquecer, Ottoni faz questão de lembrar. No ano do 40º aniversário do golpe militar – e 34 anos após sua prisão –, ele lança o livro de memórias O baú do guerrilheiro – memórias da luta armada. Publicado pela Editora Record, o livro traz o registro de uma década difícil – mas extraordinária – da vida de Ottoni.

Um ano antes de ser solto, ele começou a guardar recortes, fazer anotações e coletar testemunhos sobre o período. Depois de liberado, decidiu relatar sua experiência em livro, mas as lembranças ainda eram muito recentes e, por isso, dolorosas. O trabalho, então, foi sendo adiado até que, anos depois, Ottoni decidiu reabrir o ‘baú’ do passado. Não que o tempo tenha apagado as feridas, mas com certeza deu a elas uma perspectiva mais consistente.

Em entrevista a este Observatório, o ex-estudante de Física fala sobre seu livro, relembra momentos marcantes do período ditatorial brasileiro, e conta por que decidiu entrar no jornalismo. Hoje comentarista na TV Gazeta em Brasília, Ottoni já trabalhou nas revistas IstoÉ e Exame, e no jornal Gazeta Mercantil.

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Por que você resolveu escrever um livro sobre um período tão traumático da sua vida?

Ottoni Fernandes Jr. – Foi um período dramático, mas riquíssimo de vivências. No livro, comecei a narrar os fatos em 1966 – quando cheguei a São Paulo, vindo do interior – até 1976, quando fui libertado da prisão. Apesar da ditadura, o final dos anos 1960 foi um período extraordinário. As mulheres saíram da toca em que a moral conservadora queria mantê-las; a bossa nova e o rock explodem para a juventude; o cinema e o teatro dão um salto. Aqui no Brasil surge o Oficina do Zé Celso Martinez Corrêa, o Arena, o Tusp. Glauber Rocha come solto, Chico Buarque, Caetano e Gil surgem na parada. Maravilhoso. Era uma geração de jovens nascida logo após o término da Segunda Guerra Mundial que não aceitava o conservadorismo político com ranços fascistas. A revolta e inconformismo dos jovens percorria o mundo. Nos Estados Unidos e na Europa protestava-se contra a intervenção americana no Vietnã. Era um tempo de revolta, de busca do novo, de imensa curiosidade intelectual.

Eu precisava mostrar este contexto e precisava mostrar como um grupo de jovens brasileiros, mergulhadores neste molho, não aceitaram a ditadura militar, começaram no movimento estudantil e daí partiram para a resistência armada contra a ditadura. Algo meio quixotesco, mas que faz parte das lutas da humanidade pela liberdade. Também escrevi o livro porque muita gente esqueceu desta passagem da vida política brasileira; porque a guerrilha foi derrotada e há uma tendência de acolher a versão dos vencedores, embora a ditadura tenha sido afinal derrotada.

Por que demorou tanto tempo para lançá-lo?

O.F.J – Em 1975, quando estava para sair da cadeia, comecei a pensar no livro e a guardar material de pesquisa – como diários, recortes de jornais, fotografias, documentos políticos e relatos de outros presos políticos. Mas decidi também que iria deixar a memória sedimentar, e fazer como Graciliano Ramos, que demorou 15 anos para escrever Memórias do Cárcere. Em 1993 achei que era chegado o momento. Fiz pesquisas e esbocei a estrutura do livro. Quando encarei o teclado do computador, doze capítulos vieram num jorro. Tudo baseado nas minhas vivências. No entanto queria explicar porque uma parte dos meus amigos e companheiros, que tinham ido para Cuba receber treinamento militar para a guerrilha, resolveram voltar para o combate no Brasil, apesar de todos os sinais de que o movimento de resistência armada tinha sido derrotado. Eles voltaram e foram assassinados. Parei de escrever, fui conversar com pessoas que estiveram com eles no treinamento em Cuba, ou que os encontraram no Brasil. Cheguei a uma conclusão, mas o cotidiano de trabalho e família me absorveu.

No ano passado, decidi concluir o livro, abri os arquivos e gostei muito do que havia escrito dez anos antes. Fiquei trancado em casa três meses, concluí a pesquisa e o livro e aí fui acolhido pela Editora Record, pela Luciana, Ana Luiza e Raquel, que trabalharam na edição com enorme profissionalismo e carinho.

Ficou satisfeito com o resultado final?

O.F.J – Fiquei. Todo autor gosta de sua cria, mas espero pela opinião dos leitores. Especialmente a opinião dos jovens de hoje, pois escrevi o livro pensando neles, para que soubessem como jovens de uma geração anterior meteram bronca, ousaram, sonharam e se indignaram contra um regime ditatorial, aparentemente sem chance de sucesso. No entanto, a medida do resultado não é objetiva. A vitória da democracia, no Brasil e em outros lugares, foi construída pelo esforço, pelo sangue de várias gerações, de muita gente que deu a sua contribuição e que, muitas vezes, permaneceu anônima. No meu ponto de vista, o livro tem uma estrutura narrativa instigante, com muita ação, um texto fluido, que ajuda a desvendar o que levou jovens daquele tempo ao caminho da revolta.

Em que circunstâncias você foi preso?

O.F.J – Fui preso em 21 de agosto de 1970, cerca de 7 horas da noite, na Tijuca, por uma equipe comandada pelo delegado [Sérgio Paranhos] Fleury, com meganhas dos Dops de São Paulo e do Centro de Informações da Marinha (Cenimar), um dos serviços de repressão mais barra-pesada da ditadura militar. Tinha 24 anos e estava militando clandestinamente no Rio de Janeiro, no chamado Grupo Tático Armado (GTA) da Ação Libertadora Nacional – um grupo de resistência à ditadura que foi comandado por Carlos Marighella, líder revolucionário que lutou pela liberdade desde 1935 e foi assassinado numa emboscada comandada por Fleury, em 4 de novembro de 1969. Eu estava sendo caçado pela ditadura e vivia com um identidade falsa, no Rio, participando de ações de guerrilha urbana contra a ditadura. Após a prisão fui sorteado para estrear a primeira ‘casa da morte’ montada pela repressão no Brasil; junto com Eduardo Leite, o Bacuri, fomos levados para um centro clandestino de torturas no bairro de São Conrado, onde ficamos por três dias. Até então, os militantes presos eram levados para quartéis militares, onde sempre deixavam algum rastro. Na ‘casa da morte’, não ficava nenhum registro. Foi em lugares como esse que torturaram e assassinaram dezenas de brasileiros e brasileiras.

O que você fazia antes de ser preso?

O.F.J – Eu era estudante de Física na Universidade de São Paulo e dava aulas de Física e Matemática num cursinho. Comecei a ser procurado pela repressão depois do AI-5, em 1968, e cai na clandestinidade em meados de 1969.

Como se deu a decisão de se tornar jornalista?

O.F.J – Depois de tudo que tinha enfrentado, não imaginava ser possível voltar a ser físico, fazer pesquisas ou dar aulas. Em 1976, ainda na ditadura, com a maioria da imprensa sob censura, pensei que, como jornalista, teria uma plataforma em que sempre estaria bem informado sobre a realidade brasileira e poderia, de outro lado, ajudar que os leitores compreendessem o país em que vivíamos. Tive a sorte de ser acolhido, apesar de ainda estar em liberdade condicional, na Editora Abril e na Gazeta Mercantil, onde havia espaço para fazer bom jornalismo, apesar da repressão.

Quando você olha para trás, para os anos de ditadura militar, o que sente? Como definiria este período na sua vida?

O.F.J – Imensas paixões, físicas e intelectuais. Generosidade e desprendimento. Às vezes com uma forte dose de ingenuidade. Foi duro, mas valeu a pena. Tenho clareza de que fizemos uma avaliação política incorreta de nossas chances de derrotar a ditadura, mas estávamos presos a um tempo histórico e é muito fácil criticar à distância, 40 anos depois. Em todo caso, não deixo de mostrar, em O baú do guerrilheiro, as fragilidades dos militantes e as dúvidas quanto à possibilidade de sucesso, mas tudo com a visão daquela época, do que era real, e não de hoje.

Quarenta anos depois, existem muitas publicações a respeito do período de ditadura militar. O baú do guerrilheiro se destaca dos outros livros? Qual é seu diferencial?

O.F.J – Existem livros muito importantes, com memórias ou análises, mas O baú do guerrilheiro revela muito o contexto da época, tem muito movimento e uma dose ponderada de reflexão. Acho que um trecho da orelha do livro – feita pelo competente jornalista, e meu amigo, Franklin Martins – é revelador:

‘São muitos os livros com depoimentos de militantes sobre a luta contra a ditadura militar, mas há poucos livros de memórias sobre o assunto. Existe uma diferença entre os dois gêneros. Os depoimentos, escritos num jorro quando as feridas ainda estavam abertas, eram obras voltadas para a ação. Buscavam influenciar a luta política da época. Denunciavam crimes do regime, justificavam opções políticas, depuravam sofrimentos ou anunciavam metamorfoses.

Já as memórias sobre aquele período, bem mais recentes, embora feitas do mesmo barro, têm outra natureza. São obras de reflexão. Debruçam-se sobre o que já passou, e passou há tanto tempo que não pode mais ser mudado – somente pensado e interpretado. Trata-se de uma diferença essencial. Distantes da luta política, não precisam adoçar aqui ou salgar ali o que aconteceu. Por isso, podem mergulhar em águas mais profundas, trazendo à tona fantasmas longamente adormecidos no fundo do mar.’