Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

‘Filho do padre’, adversário do imperador

Prólogo no qual um deputado tuberculoso troca farpas com o venerável Duque de Caxias e funda um pasquim para desancar Sua Majestade, o imperador.

– Senhores…

Fez-se silêncio diante daquele fio de voz, saído do homenzinho de barbas grisalhas que acabara de se instalar na tribuna da Câmara dos Deputados. Poucos minutos antes, uma observação corria de boca em boca, em meio às rodinhas de parlamentares presentes ao plenário: era impressionante como o homem definhara nos últimos meses. Virara uma garatuja.

Os olhos miúdos haviam perdido o brilho característico e agora praticamente sumiam em meio às negras olheiras. Na outrora vasta cabeleira, uma entrada pronunciada alongava-lhe a testa e ajudava a conferir-lhe o ar de velhice precoce. A barba tomara conta do rosto magro e descera abundante sobre o peito, a ponto de os fios desgrenhados esconderem-lhe o nó da gravata. Tinha apenas 48 anos de idade. Parecia, no mínimo, ter vinte a mais.

Magreza, palidez, tosse constante. Os sintomas eram suficientemente reconhecíveis para que a palavra malfazeja passasse a ser murmurada pelos salões e corredores da Câmara, sempre sussurrada pelas costas do homenzinho, com as mãos em concha, acompanhada de olhares mútuos de receio:

– Tuberculose…

O deputado José de Alencar, romancista consagrado, com mais de quarenta livros publicados, consumia-se a olhos vistos. Retornara recentemente de uma viagem à Europa. Pedira licença ao Parlamento e partira para tentar encontrar, com a ajuda do clima do Velho Continente, uma cura para a moléstia progressiva, a fraqueza nos pulmões que o atormentava desde a adolescência. Foi em vão.

Seis meses depois, desembarcara de volta ao Brasil ainda mais abatido. Conhecido pela pontualidade britânica, passara a faltar sessões seguidas e a chegar atrasado com freqüência na Câmara dos Deputados, casa para a qual havia sido eleito, pela quarta vez, em 1876. A saúde, debilitada, dificultava as menores saídas à rua. Dizia-se que havia sumido do mapa. Deixara inclusive de freqüentar as rodas literárias da Livraria Garnier, à Rua do Ouvidor, onde escritores costumavam se reunir para passar tardes inteiras a falar mal da política e bem da literatura.

‘A última vez que o vi, achei-o cadavérico’, escreveu um conterrâneo, o ex-ministro de Negócios do império, José Liberato Barroso, em carta ao jornalista, também cearense, João Brígido [carta de José Liberato Barroso a João Brígido, datada de 11 de dezembro de 1877 e publicada na Gazeta de Notícias em 29 de novembro de 1929]. Poucos eram os amigos que ainda o visitavam no número 50 da rua Guanabara, Rio de Janeiro, onde, na companhia da mulher Georgiana Cochrane, uma descendente de escoceses de sangue e olhos azuis, recorria à homeopatia como último recurso para tentar debelar a doença.

Machado de Assis, então aplicado discípulo, dez anos mais novo que Alencar, era um dos únicos que apareciam por lá de quando em vez. ‘Senti-lhe a alma enojada e abatida’, escreveria Machado [Assis, Machado de. ‘A Estátua de José de Alencar’. Páginas recolhidas. p. 95]. Um jovem talentoso chamado Capistrano de Abreu, que cerca de um ano antes resolvera deixar o Ceará para arranjar emprego na imprensa da Corte por sugestão do próprio Alencar, era outro que sempre o procurava para alguns dedos de prosa. ‘Naturalmente reservado, conhecendo o que há de fictício nos cumprimentos e de artificial em certas admirações, ele não cedia ao primeiro contato’, recordaria, por sua vez, Capistrano [Abreu, Capistrano de. ‘Livros e Letras’. Gazeta de Notícias, 12 de dezembro de 1879].

Deprimido pela enfermidade, José de Alencar tornara-se um indivíduo ainda mais recluso do que sempre fora. Talvez por isso mesmo, seus discursos eram cada vez mais aguardados, cercados de grande expectativa por parte dos colegas de Parlamento. Nunca se destacara como um grande orador. A fala, é fato, soava débil, entrecortada por pigarros. A respiração igualmente difícil impedia-lhe maiores impostações na voz. Mas o conteúdo de seus pronunciamentos, apimentados por uma ironia já célebre entre os pares, era garantia de que, no plenário, todas as conversas paralelas cessassem, de imediato, à simples menção de que Alencar seria o próximo deputado a ocupar a tribuna.

Feridas antigas

Naquele dia, na sessão de 15 de março de 1877, não foi diferente. Alencar venceria as dores do peito e discursaria, sem descanso, por cerca de uma hora e meia. Ao longo de todo esse tempo, após o silêncio inicial da reverente assistência, arrancou sucessivos brados de apoio, bem como contínuos gritos de protesto disparados pelos colegas. Não era para menos. Alencar, como nunca, usou de artilharia pesada. Atacou, sobretudo, a corrupção que dizia estar institucionalizada no país, criticou a fragilidade dos partidos, recriminou a política baseada no interesse pessoal e no compadrismo. O Brasil, desde sempre, já era o Brasil.

– Senhores, a história inflige às vezes epítetos cruéis a certas épocas, a certos acontecimentos e aos homens que neles figuram. Estes epítetos perduram como um estigma. – discursou Alencar. – Receio, senhores, que se não houver uma reação de nossa parte, esta situação seja punida pelo sarcasmo de nossos filhos com o título de ‘situação dos compadres’ [Anais da Câmara dos Deputados. 15 de março de 1877].

Houve um visível desconforto em meio à bancada governista. A oposição, por sua vez, exultou.

– Creio, senhores, que foi de Hume este triste pensamento: ‘A corrupção é uma prova de liberdade’. Mas essa liberdade que só chega para os ricos é a mais torpe das tiranias para o cidadão honesto. Antes a tortura e o suplício do que semelhante gangrena moral – prosseguiu Alencar [idem].

A cada frase, o discurso subia uma oitava no tom. Além de corrupta, segundo José de Alencar, aquela era uma época marcada pela autocracia crescente. Com calculada provocação, o orador conseguiu fazer com que o Duque de Caxias, presidente do Conselho de Ministros, cargo equivalente ao de chefe de governo no parlamentarismo imperial brasileiro, saísse de sua modorra habitual e levantasse da cadeira de um pulo, tomado pela indignação e pelo espanto [Taunay, Visconde de. Reminiscências, p.212].

– Nós somos o único país do mundo regido pelo sistema representativo onde – permita-me o nobre duque que lhe diga, e nisso não vai a menor quebra de sua glória – a direção política, a iniciativa governamental é confiada a uma alta patente militar, a um guerreiro ilustre, mas completamente estranho às lutas parlamentares. Na própria Prússia, país militar, não é a espada de Moltke que governa, é a inteligência de Bismarck! [Anais da Câmara dos Deputados. 15 de março de 1877]

Em bom português, o Duque de Caxias, herói da Guerra do Paraguai, marechal que acumulava os cargos de senador, ministro da Guerra e chefe do Executivo nacional, estava sendo convidado por Alencar a voltar, em ritmo de marcha, para o quartel. Lugar de militar era na caserna, não na política, sugerira. A observação, inesperada, fez o plenário vir abaixo. Criou-se, de um instante para o outro, o pandemônio. A oposição, representada pelo Partido Liberal, berrou a plenos pulmões:

– Muito bem! Muito bem!

A maior parte dos representantes do Partido Conservador, situacionista, respondia com o mesmo alarido, mas no sentido exatamente contrário, inconformada com a crítica endereçada ao até então intocável Caxias. Especialmente porque disparada por Alencar, um correligionário conservador, eleito pela legenda governista:

– Protesto! Protesto! [Idem]

Caxias, reconheça-se, dizia não morrer de amores pela política. Veterano dos campos de batalha, no qual a espada fazia jorrar sangue de verdade, costumava definir o jogo parlamentar, com seus conflitos e acordos de ocasião, como uma mera ‘guerrinha de alfinetes’. Aos 74 anos, cabeça inteiramente branca, fatigado pelos consecutivos embates militares de que participara ao longo da história do país, sempre afirmara ter aceito a chefia do gabinete como um sacrifício pessoal, uma deferência a D. Pedro II, que pela terceira vez, sempre em momentos de crise, o convidara a assumir a presidência do Conselho de Ministros.

Mas se, por direito, Caxias era o chefe de governo, a eminência parda do império era mesmo o senador João Maurício Mariani Wanderley, o Barão de Cotegipe, o todo-poderoso ministro da Fazenda, que dividia com outro senador, José Maria da Silva Paranhos, o Visconde do Rio Branco, o controle absoluto do Partido Conservador e, por conseqüência, do governo imperial. Caxias, aliás, sucedera exatamente a Rio Branco na presidência do Conselho de Ministros. Era contra tal centralização por parte da cúpula do partido que se rebelava Alencar:

– A coroa não pode reduzir o Partido Conservador a dois homens, ao nobre Visconde do Rio Branco, que saiu, e ao nobre Barão de Cotegipe, que entrou sob a fiança e a guarda do ilustre Duque de Caxias. Se meu partido fosse essa multidão de duas cabeças, se o partido a que me honro de pertencer fosse assim julgado, eu o despediria de mim, eu não lhe faria outra censura senão a de mudar-lhe o gênero; não seria partido, e sim uma partida de homens, um acervo de ambições. [Idem]

Agora sob uma chuva de ‘apoiados’, até de alguns conservadores, Alencar avançou:

– O que não se tolera, senhores, é que em um país democrático se organize um partido aristocrático, ou antes, um partido autocrático; o que não se tolera é que em um governo de opinião se arregimentem maiorias como se formam batalhões, ainda mesmo comandados por um marechal laureado.

Alencar prosseguia, ainda mais cáustico, esgrimando contra Caxias, reabrindo antigas feridas, que já pareciam devidamente cicatrizadas:

– Não posso crer que um senador, muitas vezes ministro, aceitasse como um posto militar o lugar de presidente do Conselho, ele, que na sua mocidade, quando capitão ou major, estando de guarda em São Cristóvão, embainhou a sua espada ante os decretos do povo soberano. [Idem]

Aviso peremptório

Segundo relato do deputado Alfredo d´Escragnolle, o Visconde de Taunay, ao ouvir tal coisa Caxias pulou pela segunda vez da sua confortável cadeira de chefe do Conselho de Ministros [Taunay, Visconde de. Reminiscências, p. 212]. Alencar referia-se a um episódio histórico, ocorrido em abril de 1831, quando o então major Luís Alves de Lima e Silva, o futuro Duque de Caxias, aderira à revolta que resultou na abdicação de D. Pedro I. Homem da mais estrita confiança de Pedro II, Caxias não tinha motivo algum para querer lembrar que, 26 anos antes, havia participado de um levante contra o pai do imperador.

– Não é verdade! Foi por ordem superior! – exasperou-se Caxias, repetindo a justificativa mais à mão de qualquer militar pego em contradição ou flagrante delito ético.

– A história tem maior eco do que a voz respeitável do nobre duque… – fulminou Alencar.

Mais uma vez, estabeleceu-se a confusão no plenário. Em meio à balbúrdia, José de Alencar insistia no mesmo diapasão, a despeito da voz em frangalhos:

– Admito que o nobre Duque de Caxias seja o mais venerando chefe do Partido Conservador…

– E é! – apartearam vários deputados em meio à bancada governista.

– …mas não sendo esta uma situação militar, não podia Sua Excelência ser o presidente do Conselho! [Anais da Câmara dos Deputados, 15 de março de 1877]

Em meio à babel que se formou, o ministro da Fazenda, Barão de Cotegipe, o homem forte do gabinete, resolveu tomar para si as dores de Caxias. Na verdade, mordera uma isca. Alencar aproveitaria a oportunidade para estender as censuras também contra ele. Criticou, com veemência ainda maior, o déficit financeiro nas contas públicas do país. E lembrou que, para tentar conter o descontrole do Tesouro, a pasta de Cotegipe recorrera a empréstimos no exterior e ao aumento de impostos sobre os bens de consumo. Para Alencar, com isso, o Partido Conservador estava cavando sua própria sepultura política:

– Todos sabem que estes impostos são os que mais vexam as classes pobres – protestou. – O gabinete, portanto, vai lançar o ódio sobre o Partido Conservador, vai acarretar sobre ele a impopularidade e colocá-lo na posição de ser lançado qualquer dia fora do poder sob as maldições públicas…

– Apresente então Vossa Excelência outro meio! – rebateu o ministro da Fazenda.

– Eu não sou ministro! – respondeu Alencar, mordaz.

– Mas é conservador… – devolveu Cotegipe.

– Vossa Excelência não consulta seus correligionários em matéria de menor importância, quanto mais nessas! – contrapôs Alencar, para em seguida emendar: – Desculpe-me Vossa Excelência se o estou incomodando há uma hora e meia; Vossa Excelência tem me incomodado também, não pessoalmente, mas como correligionário, há quase dois anos.

– Não sabia! Mesmo na Europa, passeando? – ironizou o Barão de Cotegipe.

O ministro da Fazenda, conhecido pelos bons perfumes que usava, pelas camisas de seda e pelos charutos Havana que costumava fumar, revidara com uma pilhéria, sugerindo que a então recente viagem de Alencar ao exterior houvesse sido um passeio por uma ‘estação de águas’.

– Eu lia os jornais; lá tive notícia do primeiro empréstimo – explicou Alencar, sem titubear, e sem fazer menção à própria enfermidade.

– Vossa Excelência nas águas e nós cá no fogo! – foi a tréplica de Cotegipe. [Idem]

O taquígrafo da Câmara registrou as gargalhadas que se seguiram a tal chiste. Cotegipe perdera a razão, mas não perdera a piada. Afinal, sobre viagens ao estrangeiro pagas às custas dos cofres públicos, os representantes do governo não podiam reclamar. Desde maio do ano anterior, D. Pedro II estava fora do país. Partira para uma longa viagem de férias, após nomear o Duque de Caxias chefe do Executivo e deixar uma série de recomendações escritas à filha, Isabel, que, então, conduzia o trono no papel simbólico de princesa regente.

O monarca passaria, ao todo, dezesseis meses longe do Brasil, quase um ano e meio, em uma espécie de volta ao mundo, passeando pelos Estados Unidos, Canadá, África, Ásia e Europa. Entre as instruções deixadas para a filha, um aviso peremptório. Não queria saber de aborrecimentos políticos durante sua longa ausência: ‘Peço-lhe que me dirija somente os telegramas indispensáveis sobre negócios, se não quer que eu ande desassossegado’. [‘Conselhos de D. Pedro II à Regente D. Isabel’. Reproduzido em Vianna, Hélio. D. Pedro I e D. Pedro II: Acréscimos às suas Biografias, p.239]

Distância regulamentar

Alencar não perdoou Cotegipe. Se alguém merecia críticas por excursionar fora do país naquele momento de crise, esse alguém não era ele, Alencar, que buscara os ares europeus na vã tentativa de obter melhoras de saúde. A carapuça, com certeza, assentaria melhor na cabeça coroada do imperador:

– Quando a voz dos ministros e a voz de seus amigos procuram abafar, com flores de eloqüência, e às vezes com o riso e a argúcia, o brado da consciência pública, aquele que devia ter os olhos sobre nós contempla a grande catedral, maravilha de Milão, e talvez conta uma por uma as mil estátuas que adornam a suntuosa fachada – recriminou Alencar. [Anais da Câmara dos Deputados. 15 de março de 1877]

Mais uma vez, gargalhadas pipocaram no plenário. Segundo os registros taquigráficos daquela sessão histórica, ao descer da tribuna, José de Alencar foi efusivamente cumprimentado. Os liberais o saudaram pelas aguilhoadas que dera nos conservadores. Os conservadores – pelo menos a parcela dos que entenderam o recado dado por Alencar – também com ele se congratularam. Curioso foi notar que, entusiasmados com aquela catilinária, em meio a abraços e tapinhas nas costas, os nobres deputados esqueceram a distância regulamentar que, antes, haviam se imposto em relação ao tuberculoso e endiabrado orador.

***

Cinco dias depois daquela tumultuada sessão na Câmara dos Deputados, passou a circular pelas ruas do Rio de Janeiro o quinto número de um jornalzinho panfletário, chamado O Protesto. Fundado por José de Alencar em janeiro daquele ano, sem periodicidade fixa, o jornal trazia, estampada em sua primeira página, uma epígrafe de Juvenal, poeta latino que criticara os privilégios na Roma antiga: ‘Si natura negat, facit indignatio versum‘. Numa livre tradução, algo equivalente a ‘aquele que não é poeta por dons naturais, pode vir a sê-lo graças à indignação’. Indignação é o que não faltava ao pasquim de Alencar.

Muito apropriadamente, logo abaixo do logotipo, a publicação se auto-definia como um ‘jornal de três’, uma vez que sua ‘redação’ era composta apenas por um trio de jornalistas. Além do próprio Alencar, escreviam em O Protesto mais dois amigos dele, Félix Ferreira e José Lino de Almeida. Mas, da primeira à última página, os leitores reconheciam o mesmo estilo cáustico que vinha caracterizando os discursos do deputado José de Alencar na tribuna da Câmara.

Os alvos prioritários eram, invariavelmente, o Barão de Cotegipe, o Duque de Caxias e o próprio D. Pedro II. ‘O Protesto, como o diz o seu nome, não é uma propaganda, mas um desabafo; não é uma agressão; pode ser, quando muito, uma resistência’, dizia o editorial do primeiro número, vendido a duzentos réis na livraria Garnier.

Uma das seções mais divertidas e ferinas de O Protesto era intitulada ‘Beotices’. Nela, Alencar se fazia de tolo para melhor passar e, assim, espinafrava seus adversários sem peias na língua. ‘O Sr. Duque de Caxias é um presidente do Conselho neutro e irresponsável. O ilustre marechal preside; mas não governa, nem administra. Como é que a espada mais gloriosa do Brasil está reduzida a uma bengala do Sr. Cotegipe?’ [O Protesto. Número 4. 28 de fevereiro de 1877]

Não faltavam farpas venenosas lançadas também contra o beletrismo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, entidade apadrinhada por Pedro II e que reunia as maiores sumidades intelectuais da época: ‘Depois do grande alvoroço no Senado, o nobre Barão de Cotegipe foi à saleta e acendeu um cigarro. Não consta se o cigarro era de palha ou de papel. O Instituto Histórico trata de investigar’. [O Protesto. Número 5. 20 de março de 1877]

Contudo, os assuntos mais recorrentes nas páginas de O Protesto eram, sem dúvida, a regência da princesa Isabel e as viagens de D. Pedro II. ‘Nestes últimos anos, o imperador, talvez pelo tédio de um longo reinado, tem com suas viagens mostrado pelo exercício da realeza uma indiferença e desdém, que impressionam profundamente o brasileiro’ [Idem], escreveu Alencar, que nunca perdia a chance de ridicularizar a decantada ‘sabedoria’ de D. Pedro: ‘Confesso que tenho orgulho de ser súdito do maior sábio do mundo, mas também sinto meus ciúmes quando o vejo gastar sua sabedoria com a Turquia e o Egito, deixando-nos aqui na escola primária do Sr. Cotegipe’. [O Protesto. Número 4. 28 de fevereiro de 1877]

Livros interrompidos

Por esse tempo, chegara ao Brasil a notícia de que o imperador, ao visitar a Exposição Universal da Filadélfia, nos Estados Unidos, teria sido apresentado a Graham Bell, que lhe mostrara a mais recente invenção da época, o telefone. Diz-se que, ao experimentar o aparelho, maravilha da tecnologia, nem aí o imperador brasileiro perdera a oportunidade para demonstrar toda sua autoproclamada erudição:

To be or not to be! – consta ter sido a frase que D. Pedro II exclamou ao bocal da chamada ‘máquina de falar’. [Schwarcz. Lilia Moritz. As barbas do imperador, p. 376]

As inovações científicas apresentadas na exposição da Filadélfia, contudo, pareceram não ter impressionado a Alencar. ‘Nós temos coisa melhor’, havia escrito ele nas páginas do primeiro número de O Protesto. ‘O caso é que os Estados Unidos reconhecem que o nosso Brasil está muito mais adiantado em maquinismos engenhosos. O que é a sua célebre máquina de trinchar um porco em presuntos e tassalhos à vista dessa nossa de cortar um país em fatias de pão-de-ló?’ [O Protesto. Número 1. 05 de janeiro de 1877]

Dias depois, quando os jornais brasileiros passaram a noticiar que o imperador, já na Europa, visitara as ruínas gregas e romanas, Alencar viu a ocasião propícia para mais um remoque contra D. Pedro: ‘Compreende-se que Alexandre, o Grande, dormisse com a Ilíada sob o travesseiro e deplorasse não ter um Homero para cantar a sua glória. Mas que interessa à prosperidade deste nosso império que o monarca saiba de cor e salteado o texto daquele poema, e dê quinaus mestres acerca do templo de Apolo?’, provocou. ‘Não seria muito mais feliz este povo se o seu defensor perpétuo, que nos anunciam ter descoberto o verdadeiro sítio de Tróia, estivesse agora cogitando na difícil solução da crise financeira e perscrutando a causa dos males que nos afligem?’ [O Protesto. Número 2. 20 de janeiro de 1877]

Mais uma vez, coube ao Barão de Cotegipe dar uma resposta às diatribes de José de Alencar. Em uma sessão da Câmara em que Alencar esteve ausente, o ministro da Fazenda fez um longo e agressivo discurso. Nele, apontou o que considerava uma contradição explícita nas críticas do deputado ao Duque de Caxias: dez anos antes, saíra em livro uma biografia laudatória do marechal, então ainda marquês, de autoria do mesmo José de Alencar. O volume, hoje uma raridade bibliográfica, havia sido expurgado pelo autor da reedição de suas obras completas.

Ao ler na tribuna trechos da biografia intitulada O Marquês de Caxias, francamente favorável ao biografado, Cotegipe procurou fazer Alencar engolir, em seco, as próprias palavras. Acusou-o de incoerente e oportunista, por ter feito antes desbragados elogios em letra de forma a Caxias e, uma década depois, vir desafiá-lo de viva-voz no plenário da Câmara, cometendo ‘a mais grave ofensa’ jamais ouvida contra ‘o brioso líder da Guerra do Paraguai’.

No dia 13 de abril de 1877, Alencar resolveu sair da cama para voltar à tribuna e fazer sua defesa. Disse que, em vez de contradizer as críticas, o livro que escrevera sobre Caxias era, com efeito, a melhor comprovação delas. Não retirava uma única linha do que havia deitado no papel. A ressalva que fazia ao duque não estava no passado, mas no presente. ‘Deixai o fórum, deixai este campo de controvérsias, que não é campo de batalha para a vossa espada vitoriosa; fiquem aqui nas assembléias os obreiros da palavra para servirem esta pátria, que engrandeceste’, sugeriu Alencar a Caxias. [Anais da Câmara dos Deputados. 13 de abril de 1877]

Os jornais fluminenses repercutiam amplamente a querela que sacudia a Câmara. Penas de aluguel, financiadas por Cotegipe, aproveitavam para desancar José de Alencar. Ao referir-se a ele como escritor, ‘um autor romântico de folhetins’, procuravam desqualificar o deputado. Alencar defendia-se como podia. ‘Os fanáticos do Sr. Duque de Caxias começam a investir contra o herege que ousou olhar em face do ídolo, e não adorá-lo. Uma das retaliações é depreciar as obras literárias do autor de O Guarani. Isso não é para duques e seu séqüito; além de que o escritor já não se ocupa com tais desabafos, que são bons anúncios para o seu editor’, dirá numa nota da coluna ‘Beotices’, no quinto número do jornal O Protesto [O Protesto. Número 5. 20 de abril de 1877]. Quinto e último, por sinal.

Alencar, a essa altura, parecia já cansado de guerra. Fechou o incendiário jornal três meses após tê-lo fundado. O duelo verbal com o Duque de Caxias exauriu-lhe as forças. Foi um dos últimos embates políticos com os quais se envolveu. A partir daí, sua vida pública se resumirá a eventuais idas à Câmara e a alguns passeios esporádicos ao bucólico Passeio Público.

– Será que passarei à posteridade? – era a pergunta que mais repetia a um ou outro amigo de caminhada [Orico, Oswaldo. A Vida de José de Alencar, p. 207]. Entre eles, Machado de Assis, que, então com 38 anos, acabara de publicar Helena, terceiro romance de sua autoria, no qual a crítica literária apontaria indícios evidentes da influência do mestre José de Alencar.

‘A política era incompatível com ele, alma solitária. A disciplina dos partidos e a natural sujeição dos homens às necessidades e interesses comuns não podiam ser aceitas a um espírito que em outra esfera dispunha da soberania e da liberdade. Primeiro em Atenas, era-lhe difícil ser segundo ou terceiro em Roma’, escreveria, mais tarde, a propósito, Machado de Assis. [Assis, Machado de. ‘A Estátua de José de Alencar’. Páginas Recolhidas. p. 95]

Vaidoso de sua quilométrica obra, mas inseguro do papel que esta lhe reservaria no panteão da literatura brasileira, Alencar guardava alguns inéditos, organizados em pastas, trancafiados no fundo de uma gaveta de sua escrivaninha de trabalho. Livros interrompidos, idéias rabiscadas, projetos de romance a desenvolver. Não se animava a dar-lhes continuidade. Não sabia mais se queria vê-los publicados.

Mulas-sem-cabeça

Com o fim da circulação de O Protesto, um outro livro ficaria no meio do caminho. O romance Ex-homem, editado em forma de folhetim, isto é, em capítulos, nas páginas do jornal, foi para sempre deixado de lado. Era mais um desabafo do que uma obra literária. Uma espécie de prestações de contas de Alencar com seu passado. Tratava da história de um padre que tivera que renunciar ao amor pelas obrigações da batina. ‘Ex-homem é um neologismo. Literalmente exprime o que já foi homem’, explicava Alencar numa nota prévia ao romance inacabado, assinado com o pseudônimo de Synerius. [Alencar, José de. Ex-homem. OCJA. Vol.3. p. 1279]

Apesar do pseudônimo, os adversários reconheceram o estilo e espicaçaram o autor de Ex-homem. Sabiam que, para Alencar, escrever sobre sacerdotes e amores proibidos era quase uma expiação. Não havia, na Corte, quem não recordasse do velho senador Martiniano de Alencar, pai do escritor, antigo líder do Partido Liberal, político por vocação e vigário ordenado em Olinda. Pelos corredores da Câmara dos Deputados, além do de ‘tuberculoso’, José de Alencar amargara esse outro estigma. Um peso que o acompanhara por toda a vida, desde os tempos de menino na pequena e pacata Fortaleza.

Numa época em que se dizia que amantes de sacerdotes viravam mulas-sem-cabeça e pariam lobisomens, José de Alencar era conhecido, desde sempre, como ‘o filho do padre’.

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Jornalista