Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Globalização, soberania nacional e legitimidade moral

Causou furor o artigo de Alexei Barrionuevo publicado no tradicional New York Times no último dia 18 de maio, no qual o autor sugere que a legitimidade da soberania do Brasil sobre a floresta amazônica seria uma questão ‘discutível’. Alexei refere que ‘visto num contexto global, as restrições (do governo brasileiro sobre a área) refletem um debate mais amplo sobre direitos de soberania em oposição ao patrimônio mundial’.

Essa celeuma promete muitos capítulos emocionantes para os anos que virão e tem um valor inestimável como exemplo de uma lição valiosa, qual seja, a de que o tão temido fenômeno do imperialismo é uma criatura multifacetada que pode mostrar suas garras de muitas formas distintas e atacar por lados inesperados.

Aqui, no Brasil, a figura do ‘imperialismo’ é geralmente tomada como sinônimo dos interesses nacionalistas dos Estados Unidos, a maior potência econômica e militar do mundo. Muitos políticos e grandes companhias norte-americanas até podem ter grande interesse na ‘desnacionalização’ da Amazônia, mas pelo menos até o momento não é desse lado que os ataques à nossa soberania nacional estão surgindo, mas sim, da parte do Greenpeace, de ONGs esparsas e de líderes europeus – exatamente as figuras que nosso senso comum identifica como os bravos adversários tradicionais do imperialismo ianque.

Um imenso ‘santuário’

O artigo de Barrionuevo nos permite, por exemplo, tomar conhecimento da opinião de Marcelo Furtado, diretor do Greenpeace Brasil, que acha que o controle intensivo sobre a região se dá porque ‘o governo não está interessado que mais pessoas venham até a Amazônia para constatar a incompetência que está sendo exibida no sentido de reduzir o desmatamento’. A preocupação de Furtado, a meu ver, não procede. Se seu único medo é este, ele pode ficar absolutamente tranqüilo, pois qualquer Google Earth da vida pode lhe proporcionar imagens de satélite que o manterão informado sobre a extensão das áreas de desmatamento da região amazônica – para não entrar no mérito de que este país há uma Constituição Federal que assegura direitos que simplesmente não podem e não serão afastados pelas leis de caráter protetivo que o governo quer colocar em vigor.

Me impressiona que Marcelo Furtado tenha uma preocupação tão abstrata e improvável – a criação de uma ‘cortina de ferro’ na Amazônia – ao mesmo tempo em que se mostra absolutamente tranqüilo sobre um problema que é grave e que já está em pleno andamento: o da presença de estrangeiros pouco desejáveis na floresta amazônica. Apenas a título de exemplo, podemos citar os interesses corporativos mascarados de valorosas ONGs, os guerrilheiros colombianos, as rotas do narcotráfico internacional, os biopiratas e por aí vai. Em outras palavras, torna-se cada dia mais verossímil a possibilidade de a floresta amazônica ser transformada, nos anos vindouros, num imenso ‘santuário’ aberto à exploração internacional, cuja jurisdição invariavelmente será determinada pelos que tiverem mais dinheiro, mais armamento, interesses econômicos mais intransigentes e lobistas com as gravatas mais empertigadas.

Tese hipócrita

Que a Amazônia é patrimônio do mundo, me parece coisa difícil de discordar. Assim como também o são as generosas jazidas de petróleo da Califórnia ou do Oriente Médio, bem como as mais recentes descobertas científicas na área da saúde. Mas não me recordo de nenhuma pessoa sã ter sugerido, em qualquer ocasião, a ‘desnacionalização’ das riquezas européias ou norte-americanas.

Se há um verdadeiro patrimônio do mundo a ser defendido, este sem dúvida atende pelo nome de ‘vidas humanas’. Ora, se jamais houve desnacionalização, de qualquer coisa que fosse, em prol da qualidade de vida dos latino-americanos, parece imoral e vexatório (para dizer o mínimo) pretender criar essa nova e maravilhosa tese jurídica agora, no século 21, justamente em defesa dos interesses dos mesmos países beneficiados pelo estado de coisas anterior.

Numa época em que as próprias pessoas estão sendo continuamente impedidas de seu direito elementar de transitar pelo mundo no qual Deus as colocou, a tese da ‘desnacionalização de patrimônio da humanidade’ em prol do ‘bem-estar do mundo’ não poderia soar mais hipócrita.

Qualidade de vida para todos

O governo brasileiro não quer proteger sua soberania sobre a Amazônia por ‘paranóia’, mas sim, para resguardar um potencial trunfo econômico e científico que poderá ter em mãos nas próximas décadas. Tampouco pretende transformar a floresta numa impenetrável e nebulosa União Soviética esverdeada, mas sim, exercer o controle da área da forma mais elementar que existe – legislando, policiando e punindo.

Em linhas gerais, sou um entusiasta das ações do Greenpeace e, no debate ‘soberania nacional versus interesses globais’, estou francamente a favor do último. Mas com uma pequena condição: a de que esse globalismo venha para corrigir as mazelas sociais geradas como subproduto do modelo anterior, e não para que as velhas potências imperialistas – tendo se desenvolvido social, econômica e militarmente em níveis estratosféricos – ressurjam agora advogando um internacionalismo moralista em prol de interesses que venham em detrimento, precisamente, daqueles mesmíssimos povos que foram historicamente prejudicados pela ordem geopolítica de outrora.

A única globalização com estofo moral para legitimar-se, neste século 21, é aquela que estenderá uma adequada qualidade de vida para todas as pessoas do globo terrestre, independentemente da nacionalidade ou de onde vivam. E limitar a possibilidade de o Brasil colher os devidos frutos econômicos de seus recursos naturais, por certo, não contribuirá para isso.

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Advogado