Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Jornalismo na veia

Ainda agora passei pela mesa de trabalho de Christian Carvalho Cruz e o que vi me motiva a começar esta apresentação de uma forma, digamos, fora dos cânones literários. Lá estava ele quieto, concentrado na tela do computador, um jeitão pacato que, sabe-se lá, esconde um tipo esfuziante, um temperamento colérico, uma personalidade solar, não me atrevo avaliar. Sei é que o Chris que eu conheço esparge silêncio quando trabalha. Vai burilando seu texto, linha por linha, passagem por passagem, numa espécie de solidão em que se enfia até colocar o ponto final na labuta. Aliás, labuta é uma boa palavra pro Chris. É um jornalista comprometido com o trabalho de todo santo dia. E zeloso com a profissão.

Pois então, quando ele se enfia na solidão aparente da sua escrita, fica assim tomado, concentrado, o olhar chega a ser um pouco frio. De repente – e já o surpreendi nesse de repente – vem um sorriso no canto da boca. Mas logo passa e o sujeito fica sério de novo. Batucando o teclado. Olhando a tela. Caladão. Já aconteceu de eu passar pela mesa dele, como fiz minutos atrás, para perguntar “e aí, Chris?”, enquanto ele escreve. A resposta vem na medida para espantar intromissão de chefe: “Estamos indo bem.” Três palavrinhas. Não mais. E nem duvido de que esteja indo bem. Creiam: este ritual pessoal de entrega, com alguns acréscimos e/ou pequenas variações, se repetiu inúmeras vezes na criação dos textos que compõem este livro.

Tempo de ruminação da notícia

Nascidos para serem a última página do Caderno Aliás, suplemento dominical do jornal O Estado de S. Paulo que repassa, aprofunda e analisa fatos noticiados na semana, os textos do Chris ampliam as possibilidades da reportagem, combinando as ferramentas do bom jornalismo com as narrativas da ficção. Na geração profissional à qual pertenço, falávamos em new journalism. Idos dos anos 70, quando comecei na mesma labuta. Outros conceitos foram sendo cunhados – jornalismo literário, jornalismo de autor, literatura da realidade – e também servem para nomear o trabalho deste repórter brilhante, cuja assinatura cada vez mais se fixa entre o que há de melhor na nossa imprensa.

E tem um dado fundamental: Christian Carvalho Cruz, este jovem paulistano nascido no Jaçanã, nos ajuda a renovar o compromisso com a qualidade da reportagem numa época em que o jornalismo tem sido constante e genericamente chamado de mídia, como se fosse um apêndice da indústria do entretenimento. Com o Chris não tem dessa. É jornalismo na veia. É sacar que a notícia não se resume ao fato. Que os fatos conduzem a boas histórias. E que toda história esconde um universo a ser contado.

Comecemos de fato pelo começo. As pautas destas reportagens nascem das nossas reuniões de ideias, os chamados “torós de palpites”, aqui no Aliás. Desde que o caderno foi criado, em 2004, não abandonamos o compromisso de começar a edição com pelo menos duas dessas reuniões, que se prolongam semana adentro numa espécie de “assembleia-geral permanente”. E sabem por quê? Porque não abrimos mão de falar, de comentar, de provocar um ao outro. O jornalismo do tempo real, aturdido que está com as novas fronteiras tecnológicas, parece abrir mão de uma coisa tão básica, e tão fundamental, que é a troca de ideias sem compromisso, o burilar da pauta, aquele tempo de ruminação de uma notícia que vai enchendo o repórter de ganas de apuração.

Apurar e observar

O Chris apura muito bem. Sai em busca de uns detalhes que até Deus duvida. Mas uma coisa que o Chris faz muito, muito bem, é observar. Ele pode ter dois dias para correr atrás de uma boa história, mas quando a encontra, e começa a desvendá-la, parece que tem o dom de esticar o tempo para justamente mergulhar na cena, abrir os ouvidos para o jeito com que as pessoas se expressam, sacar uma emoção aqui, um ato falho ali… Vejam isso:

“No dia em que se tornaria estatística de trânsito, Adriano da Fonseca Pereira, de 20 anos, acordou mais agitado que de costume, às 6 e meia da manhã. Se sonhou, não comentou. Sentado à pequena mesa redonda da sala, de costas para a máquina de costura da mãe e de cara para a parede, engoliu o pãozinho com manteiga de todos os dias e tomou chá com açúcar. Nunca gostou de café. Sua figura alta e esguia enchia o minúsculo e mal ventilado apartamento do Conjunto Habitacional Haia do Carrão, ex-favela, ex-Projeto Cingapura, periferia da zona leste paulistana. Em menos de 24 horas Adriano estará morto, jogado no asfalto, o tronco voltado para o meio-fio, as pernas finas retorcidas para trás e os olhos abertos, vítima de mais um atropelamento em São Paulo.”

Assim começa a “Crônica de uma morte à toa”, escrita e publicada no Aliás de 6 de setembro de 2009, a partir do noticiário em torno de um atropelamento fatal, agravado por omissão de socorro à vítima. Poderia ter parado por aí, não? Quantas notícias semelhantes causam o primeiro impacto, até alimentam alguma repercussão, depois somem da cobertura para mergulhar no esquecimento? Pois quem pôde ler esta reportagem em forma de crônica certamente deve constatar o que acabo de frisar: o Chris apura muito bem. E observa uma barbaridade.

Além do bloco de notas

Este me parece um dado relevante porque, assim como o poeta não deve perder a capacidade de se emocionar, o jornalista não pode perder a capacidade de ver. Simples assim. Há também um momento – e este momento vai depender das circunstâncias do trabalho – em que o repórter precisa de uma pausa para ajeitar as ideias, construir mentalmente as primeiras imagens do caso, vislumbrar um caminho por onde vai se embrenhar para contar a sua história, antes de se por a escrever. É um momento quase sagrado, não o submetamos ao frenesi da postagem de notícias online ou ao papaguear desenfreado de certas coberturas televisivas. Chris tem desses momentos, com o jeitão calado dele.

“Uma rosa não é uma rosa não é uma rosa não é uma rosa. Não a Versilia Pink. Rosa que é só rosa pode ser a vermelha cansada de guerra, com seu romantismo profundo, convencional e – sorry, românticos – aborrecido. Versilia Pink cheira a desejo, volúpia… e finesse. Luxúria chique para os olhos, digamos assim, com suas pétalas carnudas e um miolo úmido, resplandecente. Se as vermelhas são as rainhas das rosas, Versilia Pink é a outra. É a Ana Bolena de Catarina de Aragão, a marquesa de Santos da imperatriz Leopoldina. Tiro certo em decoração de festas de debutantes, quando papai e mamãe apresentam sua ex-menina aos apetites da sociedade, ou para tirar o ar sonso dos buquês de noivas pouco ousadas, ensina o florista da elite paulistana Vic Meirelles.”

Assim começa “A Vida em Rosa”, história engraçada e cativante contada e (reinventada) pelo Chris no Aliás, a partir da notícia de um primeiro processo judicial por pirataria de flores no país. Percebam que o fato funciona como uma espécie de âncora para o trabalho do autor, que afinal não se desprende da realidade, mas por outro lado a observação e a acurácia lhe permitem voar muito além do bloco de notas. Daí comparar a rosa de fina cepa a uma “Ana Bolena de Catarina de Aragão”.

“TV e no radio tampouco te perdónam”

Outro aspecto a ressaltar: os textos reunidos neste livro têm praticamente a mesma extensão. Ou seja, ocupam uma única página standard de jornal, na contracapa do caderno. Este condicionante impõe, a cada história (re)contada, um ritmo, uma cadência própria, exigindo tremenda capacidade de concisão do autor, que muitas vezes precisa “resolver” uma passagem complicada em um único parágrafo. Chris serve-se então de um leque de possibilidades narrativas, escolhendo a que melhor se adapta ao que tem pela frente para contar: pode optar por escrever em forma de carta, ou fazer com que a figura-chave da sua reportagem-crônica fale em primeira pessoa com os leitores, ou então combinar distintos personagens repentinamente envolvidos por uma trama do destino.

Por fim, outro “dom” do Chris: escrever com humor. Isso é tão difícil… O que se vê é muito escriba se achando engraçado, quando não é, e fica tudo por conta de condescendência do leitor – vá lá. Esse “dom” a que me refiro é a capacidade de um narrador provocar, em quem o lê, uma certa contração na altura do estômago, em seguida transformada numa pressão no peito e por fim extravasada numa gargalhada gostosa e quente. Chris faz isso conosco. Vejam lá como ele conta a história da dona Gaetana, com G mesmo, aquela senhora que acompanhava a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo da primeira fila, em qualquer concerto, suspirando pelo trompetista bonitão; ou como um torcedor brasileño que escreve para Maradona para lhe tirar um sarro, no melhor portunhol selvagem.

“Na TV e no radio tampouco te perdónam. Dizem que tu cara gorda faz lembrar a mal-humorada Mafalda, dos quadrinhos de Quino. Que desolación, Diego…”

“De tigre a bem-te-vi”

E esse humor bem talhado, sutil, inteligente, vai se reproduzindo em outras peças, como no perfil originalíssimo do publicitário Washington Olivetto, já tantas vezes perfilado na imprensa, na história dos iguanas que foram despachadas por Sedex, num encontro histórico com a cantora Elza Soares, “a maior operária da música brasileira”, ou na vingança de uma recauchutada e inteiraça Geisy Arruda, a moça acuada por alunos de uma universidade paulista por conta de um “vestidinho rosa fatal e fatídico”. Chris tem brindado os leitores de O Estado com tantas boas histórias que, sem exagero, já virou um programa de domingo. Para ser lido e relido a qualquer dia. Em qualquer hora.

Passem logo ao livro. E, se aceitarem uma sugestão, comecem mesmo por “De tigre a bem-te-vi”. Depois leiam as histórias na ordem que acharem melhor, mas este perfil inicial, sobre o último guerrilheiro anistiado a voltar ao país, é arrebatador e certamente não foi escolhido ao acaso para abrir o livro.

“Aí Neguinho vai dizer que agora consegue sentir a beleza de despertar com um bem-te-vi cantando na janela. Que todas as noites põe pedaços de mamão, banana e laranja no parapeito, de modo que o amigo continue vindo, sem falta, junto com a aurora…”

Isso é puro Christian Carvalho Cruz.

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[Laura Greenhalgh é jornalista, editora-executiva do caderno “Aliás” e dos suplementos de cultura no jornal O Estado de S. Paulo]