Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornalismo não é propaganda

Em qualquer guerra ou conflito armado os combates não acontecem somente na terra, no mar e no ar. Além da destruição de vidas e de materiais, há uma outra forma de lutar tão importante quanto. É a contra-informação, e para isso todas as forças armadas do mundo, razoavelmente equipadas, têm equipes preparadas para atuar no campo psicológico, político, cultural, social-esportivo etc. em qualquer teatro de guerra. O objetivo maior desta forma de luta é conquistar ‘coração e alma’ das pessoas, sejam do próprio país e dos aliados, seja da população da região que se pretende invadir e ocupar. É uma tática antiga que foi desenvolvida principalmente, mas não só, por governos autoritários, ditaduras.

A Alemanha nazista, por exemplo, foi o país que melhor desenvolveu esta técnica, com Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda de Hitler, que tinha como lema a frase de que uma mentira, de tanto ser repetida, acaba se tornando verdade. Sob rígido controle do Estado, toda divulgação que interessava ao poder era veiculada à sociedade pelos veículos de imprensa, fossem do Estado, fossem privados. Sob a forma de censura direta ou indireta, as informações tinham sempre um objetivo militar, divulgando somente aquilo que interessava ao governo. Com a derrota militar e política da Alemanha nazista, essa forma de informar foi severamente criticada por quase todas as mídias do mundo. O importante era garantir a qualquer custo a liberdade de informação e de pensamento em qualquer sociedade e com isto evitar que a democracia não fosse outra vez subtraída. E, durante décadas, o mundo acreditou nisso. Lutou-se e morreu-se por este princípio em muitos lugares deste planeta.

Acabou-se o mito

Hoje, em especial desde o início do século 21, essa crença está sendo desmascarada de vez. E não por uma sociedade de tipo nazista, mas nas sociedades consideradas exemplos de democracia para o mundo. Não é mais segredo nem novidade o covarde e abjeto papel que a imprensa dos EUA teve desde o 11 de setembro. Apoiando as mentiras do governo Bush, sob um patriotismo extremo e vingativo, a mídia norte-americana mentiu, manipulou e criou informações para dar suporte psicossocial à invasão militar ao Afeganistão e ao Iraque, a título de combater o terrorismo e expandir os valores da democracia ocidental. Jornalistas aceitaram a censura imposta pelas forças armadas para que pudessem acompanhar os avanços da ocupação ao lado dos soldados. Foram exatamente os repórteres ‘embutidos’ que acabaram tendo um comportamento pouco ético e responsável, na medida em que tomaram nitidamente o lado do invasor nas ‘reportagens’ que fizeram. Deixaram de ser jornalistas para se transformarem em propagandistas.

Com um jeito mais de torcedor, tipo ‘Go USA!, go USA!, go USA!’, os embutidos só mostraram o que era permitido pelas forças armadas dos EUA. E pior. Grande parte concordava com o que estava fazendo, justificando a ação por ser um conflito militar de que os EUA participava e, por isso, era natural e esperado que defendessem e apoiassem o país. Então, o que foi mostrado ao público norte-americano e a outros países, pelas agências internacionais de notícias, foi apenas o permitido pelo governo e aquilo que os próprios jornalistas e veículos de imprensa dos EUA julgaram possível e factível de se mostrar. Uma autocensura reforçando a censura oficial.

Com isso, acabou-se o mito de imprensa livre no país. Ela só é livre até o momento em que os interesses da nação – não importa quais são os interesses, visto que a mídia norte-americana não questiona sua validade – não são confrontados. E mesmo quando parte da verdade veio à tona – como as mentiras sobre a existência de armas de destruição em massa no Iraque ou de que o ditador Saddam era aliado de bin Laden – nem assim parte considerável da grande mídia americana mudou o tom e as orientações quanto à linha editorial e ao comportamento frente aos fatos. Continuaram fiéis à bandeira, e não aos fatos.

A mesma toada

Continuaram fazendo a mesma coisa para garantir a ocupação militar anglo-americana no Iraque, mentindo, manipulando e divulgando apenas as informações que as ‘fontes oficiais’ do governo ou das forças armadas divulgavam em entrevistas ou por meio de releases. Mantiveram o mesmo tom e método nas tentativas da coligação anglo-americana, com respaldo da Comunidade Européia e da ONU, de desestabilizar o governo do Irã a partir de uma suposta capacidade nuclear do país em construir bombas atômicas. Manipulou-se informações a granel, para mostrar os iranianos como gente do mal, do mesmo modo como são mostrados os combatentes iraquianos que lutam contra a ocupação militar em seu país.

É uma visão simplista e maniqueísta do ‘bem contra o mal’, e o eixo do mal são os países muçulmanos, árabes ou não, que se rebelam contra a presença americana, inglesa e de alguns países europeus no Oriente Médio e no Cáucaso. Irã e Síria, neste momento, são exemplos do que de pior pode existir neste lado do mundo e é assim que são exibidos ao público norte-americano e mundial, por meio da grande mídia do país e das agências internacionais de notícias, que são as grandes fornecedoras de notícias à maioria dos veículos de imprensa do mundo ocidental, inclusive para o Brasil.

Agora, na invasão de Israel contra o Líbano, a pretexto de o Hezbollah ter capturado dois soldados israelenses, a toada continua a mesma. Para a maior parte da grande mídia americana, internacional e brasileira, os combatentes do Hezbollah libanês são terroristas e pronto. Assim como são os do Hamas e do Fatha, na Palestina. Pouco importam as reais causas deste conflito, das décadas de ocupação militar israelense na Palestina, dos conflitos quase centenários entre judeus e árabes na região desde o fim da Primeira Guerra Mundial (1914/1918).

O que a mídia não informa

Assim como não importa mostrar o que está por trás deste conflito. Em rápidas pinceladas, as invasões do Afeganistão e Iraque têm relação direta com a invasão do Líbano e uma possível invasão ao Irã e, quem sabe, da própria Síria. Americanos, ingleses, israelenses e alguns países do bloco europeu são os principais aliados nesta operação de controle e dominação de algumas nações do Oriente Médio e do Cáucaso, para garantir a exploração e a distribuição do que ainda resta de petróleo barato na região.

O projeto é controlar esta parte do globo com ocupações militares e a formação de governos títeres pró-americanos, ingleses e israelenses. Até a invasão ao Afeganistão e do Iraque, era Israel quem fazia o papel de guarda armada na região. Sempre apoiado pelos EUA, que fornecem o que de mais avançado existe em armamentos – Israel é o único país que usa os mesmos equipamentos militares de última geração que os EUA detêm –, as forças armadas israelenses mantinham palestinos e árabes sob constante ataque procurando evitar que suas organizações – Fatha, Hamas, Hezbollah – conseguissem maior mobilização, unidade e capacidade de combate. Quando da invasão ao Iraque, país árabe em confronto direto com Israel, a expectativa era de que com uma rápida vitória militar anglo-americana, o Iraque passasse a ser controlado pelos EUA. A resistência armada inesperada mudou os planos. A política externa e as forças armadas norte-americanas atolaram de vez frente à feroz luta dos combatentes iraquianos contra as tropas de ocupação. Isso a mídia não informa.

A mídia também não informa que, por sua vez, o Irã, outro rival de Israel, aproveitando o momento, começou a aparecer mais para os vizinhos ao se mostrar como um dos líderes contra a presença americana, inglesa, israelense no Oriente Médio. Por ser, também, um país produtor de petróleo e temendo sofrer a mesma invasão do Iraque, o governo iraniano conseguiu fazer acordos bilaterais com China e Rússia, para fornecer petróleo, gás e importar mercadorias. Assim, o Irã se sente mais seguro para se posicionar como um dos líderes da região na luta contra o Ocidente invasor e Israel. A Síria também tem papel anti-Israel, até porque reivindica as Colinas de Golan, ocupadas por Israel desde 1967 e anexadas em 1981, na invasão israelense ao Líbano em 1982.

Reportando o permitido

O que está acontecendo agora, com a tentativa israelense de destruir o Hezbollah, nada mais é do que uma avant-premiére do que poderá ser uma guerra de maiores proporções entre EUA, tropas da Otan e Israel contra Irã e Síria. O Hezbollah, amparado militarmente por Síria e Irã, na prática está assumindo o papel de defender os dois países que o apóiam. Assim como Israel, que está fazendo as vezes dos EUA, da Comunidade Européia etc. ao combater o Hezbollah. Este é o pano de fundo deste conflito e não só a questão regional e religiosa. E muito menos porque Israel quer reaver soldados capturados pelo Hamas na Palestina e pelo Hezbollah, no Líbano. Já se luta pelo controle da região, e se a guerra não avançou mais deve-se à resistência armada de combatentes no Iraque, no Afeganistão e no Líbano. Estão segurando o ímpeto imperialista e expansionista da coligação anglo-americana-israelense na região.

A mídia, frente a tudo isto, continua manipulando, criando e divulgando falsas informações, mantendo as versões maniqueístas e simplistas dos mocinhos americanos, ingleses e israelenses lutando e se defendendo dos ataques malignos dos ‘terroristas’ islâmicos. O que os repórteres ‘embutidos’, especialmente os dos telejornais, mostram é apenas informação oficial permitida.

Correspondentes como Marcos Losekan, da Globo, mal conseguem disfarçar sua posição pró-Israel nas transmissões da frente de batalha, sempre próximo dos soldados israelenses. A CNN mostra seus repórteres com coletes à prova de bala atuando diretamente da fronteira de Israel com Líbano, ao lado de soldados israelenses, reportando tudo aquilo que já foi falado pelas autoridade de Israel. Mostram entrevistas do primeiro-ministro israelense Ehud Olmert falando sobre a guerra, oficiais das forças armadas falando sobre a guerra, políticos a favor da guerra falando sobre a guerra, estudiosos e professores a favor da guerra falando sobre a guerra etc., e quando falam do que acontece no Líbano procuram justificar os bombardeios de Israel sobre a população civil libanesa. O número impressionante de vítimas civis, especialmente de crianças, é porque o Hezbollah usa a população civil como escudo humano. É ele o culpado, e não as bombas de fragmentação ou de 5 toneladas que Israel lança sobre vilas, prédios, escolas, estradas, hospitais.

A tarefa de um jornalista

A organização internacional de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch divulgou que não há indícios de que o Hezbollah esteja usando civis como escudo na luta contra Israel. Além disso, se há comprovado apoio de parte considerável da população libanesa e palestina ao Hezbollah, independentemente da religião, reconhecendo a capacidade de luta e a coragem dos combatentes na defesa do território do Líbano, se estivessem realmente usando civis como escudo, será que o apoio se manteria? Se parte da imprensa ocidental deixasse de lado as entrevistas oficiais de autoridades, os releases e fossem de fato para o campo de batalha, provavelmente as informações seriam outras.

O jornalista Robert Fisk fez isto. Durante uma semana, num carro, percorreu várias cidades e localidades bombardeadas pelos jatos de Israel, não raro com perigo de ser bombardeado, e conseguiu fazer uma reportagem mostrando um pouco do que realmente está acontecendo. O texto ‘Diario de una semana en la vida y muerte de Beirut‘ é uma reportagem digna de um jornalista, assim como a matéria ‘Bajo fuego en Beirut, en el carro de la muerte‘, do mesmo Fisk, ambas publicadas no sítio www.rebelion.org, servem de exemplos do que se espera de um repórter com dignidade.

Para reportar um fato, ele foi ao local, com outros repórteres, inclusive um norte-americano, e não ficou simplesmente repetindo como um papagaio o que as autoridade israelenses, americanas, inglesas, européias declaram. Essa é a tarefa de um jornalista. Investigar, mostrar as coisas como estão acontecendo, mostrar todos os lados, com ética, responsabilidade social e equilíbrio. Os outros fazem apenas propaganda. Igual a Goebbels.

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Jornalista