Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Juan Carlos Onetti, o narrador de pesadelos

O jornalista, publicitário e, acima de tudo, sempre escritor, Juan Carlos Onetti (1909-1994), nascido em Montevidéu, Uruguai (sua mãe era de Quaraí, RS, na fronteira com a Argentina), falecido em Madri, é menos conhecido no Brasil do que deveria, apesar de seus livros terem sido traduzidos e publicados em língua portuguesa já no início da década de 80. Foi o caso de Junta-cadáveres e Deixemos falar o vento, lançados pela Livraria Francisco Alves Editora, na criteriosa escolha da Coleção Latino-Americana, coordenada por Bella Josef, Eliane Zaguri e Flávio Moreira da Costa, aliás, assinaturas que conferiam inteira credibilidade àquela iniciativa cultural.

Aí apareceram também Pablo Neruda, José Donoso, Ernesto Sábato e Ricardo Güiraldes, entre tantos outros monstros sagrados da literatura da América Latina, chamando a atenção do leitor brasileiro para o fertilíssimo veio onde despontavam, e logo chegariam ao nosso conhecimento, os nomes universais de Jorge Luis Borges, Gabriel García Marquez, Mario Vargas Llosa e Julio Cortázar.

Preso de consciência

Pois essa descoberta tardia de Onetti não se deveu a quaisquer cavilações de esconsas panelinhas literárias, porquanto no eixo Montevidéu-Buenos Aires, onde viveu e trabalhou por muitos anos como redator e diretor da agência de notícias britânica Reuters, em agências de publicidade e, mais tarde, como editor-chefe do aguerrido semanário uruguaio Marcha, empastelado pela ditadura instalada no país oriental, os romances e contos que publicara desde os anos 30 do século passado, foram recebidos com exemplar frieza pela crítica e indiferença do público. Onetti somente passou a desfrutar do mesmo interesse dedicado aos grandes autores latino-americanos depois de exilado na Espanha, em 1975.

Antes do exílio, entretanto, amargou alguns meses como preso de consciência, ao lado de vários outros jornalistas, intelectuais, políticos, estudantes e trabalhadores que ousaram desafiar a bestialidade, logo transformada em perseguição e torturas inomináveis, dos acólitos do golpe desfechado no Uruguai a 27 de junho de 1973, quando o então presidente Juan María Bordaberry, por ordem do comando supremo das Forças Armadas, assinou o decreto de extinção das câmaras legislativas. Um ato servil que escancarou as portas para o mais brutal dos regimes de exceção conhecidos na América do Sul.

Angústias existenciais

Resta o consolo que Onetti custou também a ser descoberto pelos amantes da literatura de qualidade no próprio Rio da Prata, onde viveu até completar 66 anos de idade. O reconhecimento de sua contribuição para a modernidade da ficção escrita na América Latina veio em 1980, em Madri, ao receber o Prêmio Cervantes, mesmo ano em que o Pen Club da Espanha lançava sua candidatura ao Prêmio Nobel de Literatura. Atualmente a obra de Onetti está traduzida em mais de vinte idiomas.

Homem taciturno e enigmático, Onetti criou uma cidade imaginária – Santa Maria –, referência perenizada em seus escritos que, baseada nas poucas indicações explícitas, supõe-se uma evocação nostálgica de sua cidade natal, Montevidéu, que por várias décadas dividiu fraternalmente com Buenos Aires, na outra banda do Prata. Os críticos também tiveram dificuldade para distinguir se os personagens Díaz Grey, Junta-cadáveres, Larsen e Brausen, recorrentes na obra de Onetti, são uma só ou diferentes pessoas. Resposta ainda oculta, diga-se a bem da verdade, pois o criador da saga e dos protagonistas sempre negou pistas que ajudassem a aclarar identidades e similitude de gestos, palavras ou angústias existenciais. Críticos renomados da literatura escrita em espanhol da América, como Emir Rodrigues Monegal e Jorge Rufinelli, amigos íntimos do escritor, examinaram-lhe a obra em profundidade mas pouco sacaram além da iluminada competência narrativa que lhe assegurou o mesmo pódio dos maiores escritores dessa parte do mundo.

‘Isto é puro Faulkner’

Rufinelli dizia que o uruguaio enredara a todos os seus leitores e críticos, quem sabe, a si próprio, na misteriosa trama de seu processo criativo. E dava a entender que se ‘ao fim e ao cabo o próprio Jeová jamais explicou como fez a luz no primeiro dia e criou o sol no quarto’, por que um simples mortal deveria dar mostras de maior coerência?

Pouco depois do aparecimento do romance de estréia, A vida breve, em 1950, lançado pela Editorial Sudamericana de Buenos Aires, Onetti conheceu Emir Monegal, Mario Benedetti, Manuel Claps, Idea Vilariño e outros intelectuais montevideanos unidos em torno da revista literária Número, magazine de claro viés cosmopolita transformado num marco do movimento artístico uruguaio.

Claps recordou que certo dia Onetti lhe confiou um capítulo de A vida breve para ser aproveitado na revista e, ao se encontrar com Héctor Murena no pátio da Faculdade de Filosofia e Letras de Buenos Aires, mostrou-lhe o manuscrito. O amigo leu aqui e ali e proclamou: ‘Isto é puro Faulkner’, ensejando o seguinte comentário: ‘Sim, mas é mais que Faulkner, é uruguaio.’ Daí em diante, para o grupo da revista Número, Onetti passou a ser um dos poucos autores nacionais cuja obra realmente tinha importância.

Criador magistral

Em fevereiro de 1962 viria o primeiro reconhecimento oficial dos meios cultos uruguaios ao conjunto da obra literária de Onetti com a outorga do Prêmio Nacional de Literatura, partilhado com Francisco Espínola. Na entrega do galardão, Espínola fez um longo discurso e quando chegou a vez de Onetti, este se levantou e disse: ‘Eu não falo, escrevo.’ Um biógrafo anotou que Onetti vivia e escrevia para si e, como queria Joyce, ia para o outro lado da mesa a fim de receber e ler suas próprias cartas. Seus livros continuaram saindo: Junta-cadáveres (1964), El astillero (1967), Novelas cortas completas (1968), até que, em 1970, a Aguilar fez o lançamento do volume Obras completas. Pouco depois começou a trabalhar no semanário Marcha, do qual se tornou editor-chefe, de resto, um dos jornalistas uruguaios mais temidos e odiados pelos golpistas. Onetti permaneceu na função até a clausura do semanário, a prisão e o exílio.

Com o recentíssimo lançamento do volume 47 contos de Juan Carlos Onetti pela Companhia das Letras, em primorosa tradução de Josely Vianna Baptista, temos à disposição toda a narrativa curta do magistral criador, na verdade uma obra em progresso iniciada em 1974 por Ediciones Corregidor, de Buenos Aires, responsável pela publicação da primeira edição de Cuentos completos, sendo o prólogo assinado pelo crítico Jorge Rufinelli. Na primeira edição eram 22 os contos recolhidos de várias revistas e suplementos literários publicados na Argentina e Uruguai, publicados entre 1933 e 1970.

Meu exemplar foi comprado em 1993, em Porto Alegre, numa livraria da famosa Rua da Praia.

Mosaico de fragmentos

Escrevia então Rufinelli que a leitura ordenada da narrativa breve de Onetti permitia a observação da profundidade das experiências encerradas nos temas escolhidos, num movimento centrípeto que intentava circunvagar vivências, histórias e circunstâncias para, em seguida, iluminar seus conteúdos. Na atual tradução, de Josely Vianna Baptista, a introdução é de Antonio Muñoz Molina (1994), na qual declara não ter parado de ler Onetti desde que o descobriu: ‘Em cerca de vinte anos essa é uma das poucas coisas que não mudaram em minha vida.’ E a confissão faz inteira justiça à admiração que um leitor aprende a cultivar em relação a determinados autores. Molina acrescenta que ‘um dos poucos traços que me unem a quem fui e já não sou é a leitura de Juan Carlos Onetti, e praticamente a única coisa que continua me acompanhando, de todas as que possuía nos tempos em que comecei a lê-lo, é esse exemplar de seus Contos completos que adquiri no Círculo de Leitores: um livro de capa preta, de letra bem pequena e folhas que estão ficando amareladas, assinado e datado na primeira página com aquela ambição de propriedade com que se entesouravam, então, os poucos livros que se podia comprar, num tempo que, visto de agora, quase parece outra época: dezembro, 1975′.

É oportuno refletir no significado dessa advertência de Molina: ‘Lendo Onetti, vamo-nos transformando, sem perceber, em algum de seus personagens.’ Tanto pode ser um homem solitário em seu quarto, deitado na cama, ou em pé, atrás de uma janela, ou debruçado numa sacada, sentado à mesa de um bar, ou junto das vidraças que dão para uma praça, que costuma ser a praça de uma cidade fluvial e provinciana chamada Santa Maria. Esse homem (ou mulher) conta histórias, fuma, bebe, observa e atribui a si e aos outros, vidas falsas que constituem os pontos de partida em torno dos quais se ramificam as narrativas.

Não há perigo, no entanto. Ao contrário, a aventura será intensa em prazeres e emoções. O desfrute dos escritos de Onetti faz-nos assomar o variegado mosaico de fragmentos que retratam, um a um, tudo o que a vida tem de estupidez, sensibilidade e beleza.

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Jornalista, autor de Edgar Allan Poe, Nunca estive realmente louco